Patrão de bolso

Milhões trabalham para aplicativos. Agora, tem gente querendo dar troco com app próprio. Como fazer dar certo?

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo

Há dois lados do trabalho por aplicativo no Brasil. De um, gera dinheiro para uma nação com 14,7 milhões de desempregados. De outro, há taxas, regras nem sempre transparentes e brigas na Justiça. Por isso, diaristas, donos de restaurantes, motoristas e empresários estão criando suas próprias plataformas tecnológicas para trabalhar. É uma corrida por uma terceira via, que pode mudar novamente o futuro do trabalho no país.

As alternativas vão de plataformas online, novos aplicativos a atendimento por WhatsApp. O objetivo é criar as próprias regras, melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores e ganhar mais. Para isso, há investidores dispostos a bancar concorrentes para gigantes como iFood, Rappi e Uber. No lugar de corporações, entram em cena negócios menores.

Em Sorocaba, interior de São Paulo, a empresa Goomer criou um cardápio gratuito para WhatsApp. Assim, o negócio saltou de 2 mil restaurantes desde 2014 para mais de 20 mil nos primeiros meses de pandemia. A Goomer vende programas para organizar pedidos, cardápios digitais, entre outros, por um valor fixo.

O CEO e cofundador Felipe Maia Lo Sardo diz que aplicativos são importantes, mas a convivência estimulou restaurantes a discutir a relação ou ir em busca de um novo relacionamento. A empresa calcula que R$ 38 milhões em taxas foram economizados por quem usou a plataforma criada por ele em 2020. "Começou-se a pensar: se o serviço e o cliente são meus, por que vou dividir o que ganho com um aplicativo?", diz.

O termo "uberização" é uma referência ao app de transporte Uber, mas está em serviços gerais, alimentação e entregas, mediados por um aplicativo ou plataforma. Também se tornou sinônimo de trabalho informal, com regras tecnológicas impostas a milhares de trabalhadores sem a existência de leis definidas. No mundo, gerou processos, protestos e ressentimentos.

"O sentimento dos motoristas com os aplicativos é de desesperança e dependência", diz o presidente da Associação Intermunicipal dos Motoristas por Aplicativo (Aimap) em Niterói, Fernando Vieira. A entidade financiou o Let's, um app próprio de carona.

De cada corrida, 7% vai para um fundo. O valor custeia o aplicativo, pode ser usado para problemas mecânicos e investido em projetos escolhidos em assembleia. Em 6 meses, o motorista é obrigado a sacar o dinheiro retido. Além de 3,6 mil motoristas associados, há 8 mil na fila.

Segundo ele, motoristas rodam até 16 horas para conseguir cerca de R$ 250 nos apps. "Temos um 'sócio' que não diz que é nosso sócio e leva até 40% de cada corrida", pontua. "Como não somos uma classe trabalhadora?", questiona.

O porta-voz da Let's, Diego Gaglione, explica que a desenvolvedora só trabalha com associações sem fins lucrativos. "As alterações de regras em busca de lucratividade têm efeitos catastróficos. Como não há contrapartidas, o serviço e o trabalho nos aplicativos tradicionais foram precarizados", diz.

Em março, o Tribunal Regional do Trabalho em Minas Gerais reconheceu o elo de trabalho entre um motorista mineiro e a Uber. No Ceará, em julho, outro motorista foi reconhecido como empregado formal do aplicativo. No caso cearense, a decisão ordenou o pagamento de direitos como 13º e FGTS. Apesar disso, em nota, a Uber afirma que há outras mil decisões judiciais que não reconhecem o vínculo trabalhista entre motoristas e a plataforma.

Se na Justiça a atuação por app gera pedidos de vínculo de trabalho, de seguros e arrecadação para a previdência, nas redes sociais gera críticas e reclamações contra as regras criadas pelos serviços.

A diarista Francielle Amanda, 30, trabalhou na pandemia graças à plataforma de serviços GetNinjas. De início, porém, foi surpreendida: era preciso comprar "moedas virtuais" para ter acesso à lista de clientes interessados em Bauru, interior de São Paulo. As primeiras custavam cerca de R$ 30. "Eram os únicos R$ 30 que eu tinha", diz. Ela pagou.

Na primeira semana, trabalhou bastante, mas era preciso comprar mais moedas para desbloquear serviços. Os pacotes com novas unidades, porém, custavam mais caro do que o inicial. O preço final ficava em quase um dia de trabalho. "Eu cobrava R$ 150 para trabalhar cinco horas, sem pausa para almoço", diz.

Uma vez, Franciele deveria limpar um lustre. "Se eu caio da cadeira, o aplicativo paga o seguro?", pergunta. Hoje, trabalha com carteira assinada e só faz faxina aos fins de semana. A clientela é feita via WhatsApp e YouTube. "Aplicativos são bons no começo, mas depois não compensam", avalia.

Para a procuradora do Trabalho Carolina de Prá Camporez Buarque, é ilegal "pagar para trabalhar" e a compra de moedas pode configurar como pagamento para participar de processo seletivo. "Além do MPT [Ministério Público do Trabalho], o trabalhador pode recorrer ao sindicato da categoria e também acionar a Justiça", afirma. Procurada, a GetNinjas afirmou que não poderia se pronunciar dentro do prazo estabelecido pela reportagem.

Em março de 2020, a Parafuzo foi criticada nas redes por oferecer a "faxina expressa" em que a diarista deve realizar até cinco tarefas domésticas em 1h30. Além dessa modalidade para trabalhar por menos tempo, a plataforma oferece outros tipos de serviços domésticos, em que a profissional recebe por um dia inteiro de trabalho.

Em uma diária convencional agendada no app, a diarista poderia receber R$ 150 para trabalhar o dia todo. No final do dia, poderia também se candidatar para o serviço expresso para o qual receberia R$ 31. O cliente paga R$ 19,90 e a diferença seria custeada pela empresa. O modelo foi criticado nas redes sociais por desconsiderar que é preciso de mais tempo para realizar cinco tarefas e por anunciar faxinas com valores tão baixos, o que pode transmitir uma imagem desvalorizada das trabalhadoras.

No mesmo ano, o MPT também entrou com uma ação contra a Parafuzo para a Justiça determinar que a empresa fosse responsável por oferecer produtos de proteção contra a covid-19. O processo aguarda decisão e é uma amostra do descompasso entre os criadores das plataformas tecnológicas e os trabalhadores. A Parafuzo diz que não comenta processos em andamento.

Para a pesquisadora Ludmila Costhek Abílio, a "uberização" deverá chegar a um número ainda maior de ocupações no futuro, mas tem facilidade em avançar em áreas com profissionais com menor remuneração e menos acesso a direitos. "Inicialmente, parece vantajoso, mas depois o valor do trabalho sofre um rebaixamento grande", diz.

Segundo ela, foi popularizada a ideia de que "melhor trabalhar do que estar desempregado". "No fim, vira uma defesa de que é melhor trabalhar sem importar quantas horas ou em quais condições. Se a gente embarcar nisso, é o futuro que se deseja pro trabalho criar uma sociedade cada vez pior, mais desigual e injusta", diz.

Há quem defenda uma legislação à parte para o trabalho por aplicativo, mas promotores e ativistas também avaliam que as leis existentes são válidas para resolver o caso. Por outro lado, investidores colocaram em novas plataformas tecnológicas suas apostas para extrair dinheiro de outra forma, mais justa.

A Odete, criada para diaristas, afirma não cobrar taxa das candidatas às vagas. A plataforma permite o cadastro e contração gratuita. O negócio opera em 384 cidades e tem cerca de 4 mil diaristas. O plano é que grandes empresas paguem consultorias, cursos de capacitação e doem para manter o negócio. Um investidor colocou dinheiro no negócio, mas o valor não foi divulgado.

É diferente dos shoppings virtuais (como os de comida) ou marcas de serviços (como os aplicativos de transporte). É como um classificado de jornal, no qual não se paga pelo anúncio.

Diferentemente de outras plataformas para serviços domésticos, a Odete afirma não multar diaristas que cancelam diárias e produz vídeos sobre produtos de limpeza, marketing pessoal e auxílio financeiro. "O próprio contratante e a empregada definem o valor do trabalho por WhatsApp, e nós não ficamos com nada. É sem amarras", diz Juliana Laureano.

Segundo as fontes da reportagem, a tendência é que plataformas como essa se multipliquem. Em breve, devemos ter mais aplicativos, novas regras, novas classes de trabalhadores e mais maneiras de gerar e ganhar dinheiro. A largada foi dada.

O que dizem as empresas

A Parafuzo afirma que não comenta processos judiciais em curso e, em relação à ação do Ministério Público do Trabalho, possui decisões judiciais favoráveis sobre o modelo de negócio e que prefere recorrer à Justiça para analisar o caso. A GetNinjas afirma que não conseguiria responder de maneira detalhada aos questionamentos da reportagem dentro do prazo estipulado.

A 99 afirma que os entregadores de comida e motoristas não mantêm vínculo empregatício com a empresa, de acordo com decisões em tribunais de justiça e do trabalho, mas que podem pagar despesas previdenciárias por meio da abertura de um MEI (Microempreendedor individual), têm seguro contra acidentes e central de atendimento 24 horas.

A Uber afirma que a taxa por corrida era de 25%. Hoje, é variável [de acordo com o site da plataforma, é de até 40%] e há "confusão entre os motoristas" porque "em algumas viagens" o valor da taxa pode aumentar ou diminuir. Segundo a empresa, existem mais de "mil decisões judiciais" que não estabelecem vínculo trabalhista entre motoristas e a companhia.

O iFood afirma que é urgente a discussão sobre regulamentar o trabalho em plataformas digitais sem comprometer a "autonomia e liberdade" para exercer a atividade. A empresa cita pesquisas de satisfação entre entregadores e afirma que não cobra comissões dos trabalhadores e que opera com um valor mínimo de R$ 5,31 por entrega, sem taxar gorjetas e com um canal de comunicação para tirar dúvidas.

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

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