Do lado de cá da fronteira

Jornalista que fugiu do chavismo na Venezuela acolhe refugiados no Brasil e os ajuda a recomeçar a vida

LILIAN CARAMEL (TEXTO) E GABI DI BELLA (FOTOS) COLABORAÇÃO PARA ECOA, EM SÃO PAULO (SP) Gabi Di Bella / UOL

No início dos anos 2000, quando trabalhava para um dos principais diários da Venezuela, o independente 'El Universal', Yasmín Monsalve conheceu bem o dano que o discurso de populistas pode causar à imprensa que os fiscaliza.

A jornalista fazia reportagens em Caracas, onde nasceu, mas mesmo escrevendo sobre assuntos descontraídos do mundo das artes, populares a atacavam com agressões verbais quando saía às ruas para trabalhar.

Foi a época da reeleição para o segundo mandato do presidente Hugo Chávez, marcada por protestos, greves, golpe e contra-golpe. "Era um risco sair com o crachá de imprensa. Muitos atacavam com xingamentos e ameaçavam os repórteres", lembra.

Yasmín também tinha medo das barricadas violentas da oposição. Os grupos bloqueavam as ruas com móveis, lixo e entulhos e queimavam tudo o que viam pela frente — eram as chamadas "guarimbas", palavra vinda de jogos de infância que significa esconder-se em local seguro para autodefesa em um pega pega.

À noite, havia confrontos frequentes entre a Guarda Nacional e moradores da capital. A polícia disparava diretamente contra prédios residenciais no centro da cidade e os moradores revidavam jogando garrafas.

Mais de 20 anos se passaram. Famílias inteiras cruzaram - e ainda cruzam diariamente - as fronteiras do Brasil em busca de uma oportunidade.

Yasmín agora está do lado de cá, e se dedica a receber e acolher seus conterrâneos que fogem da mesma opressão que a levou a deixar o país.

Gabi Di Bella / UOL

Voluntária e ativista

Em 2005, quando o marido foi convidado para trabalhar no Brasil, Yasmín suspirou aliviada. O casal, com os dois filhos, estabeleceu-se, então, em São Paulo. Desde que chegou, a jornalista, de 57 anos, fez algumas reportagens como freelancer, mas seu trabalho principal sempre foi o voluntariado, além do ativismo.

Ela já organizou protestos na Avenida Paulista e no Parque do Ibirapuera contra violações de direitos humanos em seu país e cobrando por eleições limpas, como a de 2018, que elegeu Nicolás Maduro para o segundo mandato, mas não foi reconhecida pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

Na Venezuela, a crise humanitária iniciada por volta de 2013, ainda no governo Chávez, transbordou para uma crise migratória sem precedentes. De acordo com dados da Polícia Federal, mais de 760 mil venezuelanos entraram no Brasil entre 2017 e meados do ano passado.

Conforme o boletim mais recente da 'Operação Acolhida', força-tarefa de apoio aos migrantes criada pelo governo federal, Curitiba, Manaus, São Paulo, Dourados e Chapecó são os municípios que mais recebem refugiados.

O povo venezuelano ficou refém de uma gangue que devastou o país. As pessoas têm que deixar tudo para trás, muitos chegam traumatizados.

Yasmín Monsalve, jornalista

Gabi di Bella/UOL Na foto: Yasmín Monsalve e Blanca Montilla, fundadoras da Casa Venezuela

Na foto: Yasmín Monsalve e Blanca Montilla, fundadoras da Casa Venezuela

500 imigrantes por dia

Hoje, Yasmín não descansa ajudando conterrâneos que cruzam a fronteira - o país recebe, em média, 500 deles todo dia que chegam, principalmente, por Roraima. Há seis anos, ela é voluntária da ONG Casa Venezuela, que fundou com a também venezuelana, a advogada Blanca Montilla, estabelecida no Brasil há mais de 20 anos.

Articuladas, elas conseguem emprego para cerca de 200 migrantes todos os meses graças a uma rede estruturada de organizações nacionais e internacionais e empresas da qual participam. No Instagram da entidade, sempre divulgam vagas por todo o país.

A dupla conta que a burocracia e demora para revalidar o diploma no Brasil é um dilema para muitos refugiados. "Conheço engenheiras elétricas que trabalham como cabeleireiras por aqui", conta.

Nos bancos de dados da "Operação Acolhida", estão cadastrados milhares deles com experiência em construção civil, cozinha e balcão, mas também advogados e administradores. Muitos seguem para outros países a partir do Brasil; outros acabam nas ruas ou vivem de bicos.

"O fluxo não para! Muita gente jamais imaginou que as coisas chegassem a este ponto", frisa Yasmín enquanto registra venezuelanos recém-chegados no Centro de Integração do Imigrante, na Barra Funda, em uma manhã de sábado, uma das primeiras atividades da Casa Venezuela neste ano.

Gabi di Bella/UOL Gabi di Bella/UOL

Entre arepas e tortillas

Bastante ocupada com o voluntariado, Yasmín tem pouco tempo para seu hobbie preferido: cozinhar. Ela estudou gastronomia no Instituto Gastronômico das Américas e gosta de preparar arepas, espécie de tortilla de milho branco, Asado Negro, carne assada com calda caramelizada, e cachapas, panquecas simples de milho amarelo.

Quando tem tempo, aceita encomendas e prepara as iguarias típicas para colegas.

Sobre seu maior projeto de vida, conta que é batalhar para encontrar vagas com salários dignos já que nem todos os postos que conseguem oferecem remunerações decentes. Apesar de considerar seu trabalho uma grande responsabilidade, promete que vai continuar totalmente dedicada à causa.

Meu sonho mesmo é que meu país volte a ser uma democracia. E que as pessoas possam voltar a viver em paz.

Yasmín Monsalve, jornalista

Trabalho e comida

Cerca de 100 famílias foram buscar cestas básicas Roupas de segunda mão ou cadastrar-se para oportunidades de emprego no Centro de Integração do Imigrante no sábado em que Ecoa esteve lá. Mães solteiras, indígenas, casais e crianças estavam por lá.

Bárbara Azócar, de 30 anos, foi a primeira a chegar com um carrinho de feira para guardar os alimentos da cesta. Há dois anos no Brasil, ela sobrevive da renda de faxinas que faz toda semana. Ela veio de Puerto La Cruz, cidade paradisíaca da costa venezuelana, no Mar do Caribe, onde está uma das maiores refinarias de óleo do país.

Bárbara tenta finalizar o ensino médio e seu plano é graduar-se em enfermagem. Com a ajuda de Yasmín, no Centro do Imigrante, inscreveu-se para cursos de português. Sobre a situação no seu país natal, Bárbara reclama, sobretudo, da inflação de alimentos.

Em 2022, a inflação anual da Venezuela foi de 234%. Apesar de ser uma das taxas mais altas do mundo representou um alívio já que a crise hiperinflacionária iniciada em 2017 e que, em 2020, atingiu 2.960%, vem arrefecendo nos últimos anos.

Gabi Di Bella / UOL Gabi Di Bella / UOL
Gabi Di Bella / UOL

Maria Soares, indígena de Pueblo Pemon, também trabalha fazendo faxinas e está tentando reconstruir a vida em São Paulo com a filha e dois netos.

Ela chegou há um ano, vinda de San Jose de Guaribe e conta que tem uma neta com quatro bebês em Boa Vista, sem recursos para viajar para se juntar à família em São Paulo. Assim como Bárbara, a indígena foi ao Centro do Imigrante buscar alimentos.

Yasmín já ajudou a Casa Venezuela, única ONG paulista de inserção laboral dos refugiados, a promover eventos que reuniram mais de 5 mil deles, onde foram oferecidos serviços como apoio psicológico, regularização de documentos e até doações de sapatos.

No momento, ela e Blanca procuram por um espaço, sob regime de comodato, para instalar a entidade, que vem funcionando na casa de Blanca. "Queremos montar uma biblioteca e um espaço para mostrar nossa cultura", conclui a jornalista.

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