POR MELHORES CIDADES

O arquiteto dinamarquês Jan Gehl defende metrópoles com mais espaços públicos para pedestres e ciclistas

Lia Hama Colaboração para Ecoa, em São Paulo Divulgação

"Brasília é fantástica quando se observa de helicóptero, mas é uma catástrofe para quem vive nela", afirma o arquiteto dinamarquês Jan Gehl, 85 anos, um dos mais celebrados nomes do urbanismo mundial. Professor aposentado da Academia Real de Belas Artes da Dinamarca, ele é fundador da Gehl Architects, empresa que dá consultoria para diversas cidades ao redor do mundo com o objetivo de melhorar a qualidade da vida urbana. Suas ideias sobre mobilidade, sustentabilidade e bem-estar estão reunidas no livro "Cidades para Pessoas", publicado em 38 países, no qual defende metrópoles com mais espaços públicos para pedestres e ciclistas e menos estímulo ao uso de automóveis.

Desde que foi fundada, em 2010, a Gehl Architects executou projetos em Londres, Moscou, Sydney, Melbourne, Amã, São Francisco, Seattle e Nova York. Nesta última, uma das principais realizações foi ter transformado um trecho da Times Square em espaço exclusivo para pedestres. O laboratório de estudos foi Copenhague, que fechou sua principal via, a Stroget, para carros em 1962. Com uma ampla rede de ciclovias, a capital dinamarquesa é referência em mobilidade urbana: mais da metade da população usa bicicleta para ir ao trabalho ou à escola.

Em entrevista a Ecoa, o arquiteto fala sobre o impacto da pandemia na vida das metrópoles, as críticas por executar projetos em locais com realidades muito distintas das de países nórdicos, as visitas ao Brasil e o que considera ser o maior legado de sua carreira: os livros.

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ECOA - Como a pandemia afetou a vida nas cidades?

Jan Gehl - Vimos as pessoas utilizando mais os espaços públicos, onde podiam caminhar livremente e respirar ar fresco mantendo distância umas das outras. Elas começaram a pedalar mais e a evitar o transporte público por causa do risco de contaminação. O uso de bicicletas aumentou e houve queda na utilização de ônibus, trens e metrôs, que ainda não voltou aos níveis pré-pandemia. Imagino que o uso de carro também tenha aumentado, já que permite o isolamento, mas não tenho números sobre isso.

Houve mudanças significativas no jeito de viver das pessoas?

No auge da pandemia, havia muito pânico e diziam que era preciso mudar o mundo inteiro. Eu respondia: "Fiquem calmos. Tivemos muitos desastres na história, incluindo pandemias, guerras e terremotos, mas sabemos que, quando o problema acaba, as pessoas rapidamente voltam à vida normal". A história nos mostra que as cidades são muito resistentes. No momento em que os aviões de guerra vão embora, a população deixa os escombros e retoma sua rotina. O mesmo aconteceu com a covid. É difícil acreditar que, dois meses atrás, tínhamos restrições na Dinamarca. Com o fim delas, após dois anos seguindo as orientações do governo, os dinamarqueses voltaram a viajar de avião, frequentar estádios de futebol e ir a festivais de música. Já nos esquecemos da pandemia.

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O senhor costuma apontar Brasília como um exemplo do que não deve ser feito no planejamento de uma cidade. O que há de errado na capital brasileira?

Brasília foi a primeira cidade a usar as ideias de planejamento urbano do [arquiteto e urbanista franco-suíço] Le Corbusier, por isso ficou tão famosa. Quando eu era estudante de arquitetura no final dos anos 50, nós venerávamos Brasília e seu modernismo. Mas então percebemos que, na verdade, era a primeira de uma série de cidades sem bons espaços públicos para as pessoas. O espaço público não está no centro do planejamento feito por Lúcio Costa.

Brasília é fantástica quando vista do alto, de helicóptero: desenhada como uma águia, com os edifícios do governo na cabeça e as áreas residenciais nas asas. Mas, no nível dos olhos, é uma catástrofe: as avenidas e calçadas são largas demais, não foram pensadas para a escala humana. Já lugares agradáveis como o parque de diversões Tivoli Gardens, em Copenhague, parecem uma bagunça vistos do alto, mas, no nível dos olhos, são fantásticos. Queremos ir para lá.

Que cidade latino-americana o senhor considera um bom exemplo de planejamento urbano?

As cidades antigas. Antes da arquitetura modernista produzida a partir dos anos 50, elas eram feitas pensando nas pessoas, nas ruas, nas praças e nos parques. Com o modernismo, de repente todo mundo começou a criar formas arquitetônicas engraçadas sem prestar atenção no espaço que havia entre elas. As cidades antigas hoje são muito procuradas porque têm bons espaços para convívio público. O que estamos fazendo agora é retomar esses quarteirões, ruas e praças que existiam no passado.

Estou aposentado da universidade e do escritório. Nos últimos cinco anos, tenho dado palestras, escrito livros, publicado em outros países e viajado o mundo para promovê-los. Me perguntam: 'Você não gostaria de vir para cá para receber uma medalha?'. Eu digo: 'Claro'. Quando você se aposenta, tem tempo para aceitar esses convites.

Jan Gehl, arquiteto dinamarquês

Que cidade brasileira o senhor considera agradável?

Não conheço o Brasil o suficiente. Estive em Salvador (BA), onde há bairros antigos bonitos e construídos em escala humana. Também admiro Curitiba (PR), que tem uma política séria de planejamento urbano e um bom sistema de transporte público, com corredores de ônibus. Na América do Sul, visitei Bogotá e Medellín, na Colômbia, que buscaram não repetir os erros do modernismo.

Alguns críticos apontam que o senhor é dinamarquês e, por isso, não entende os problemas das cidades brasileiras. Como responde a isso?

As pessoas que moram no Brasil não são da espécie Homo sapiens? Pertencemos à mesma espécie em todo o planeta: temos os mesmos cinco sentidos, as mesmas sensações, os fundamentos são iguais. Estive no Oriente Médio, onde há diferenças na cultura, na geografia e no clima, mas, na essência, somos todos humanos. Podemos tomar as mesmas medidas em qualquer lugar do mundo para tornar as cidades lugares melhores para se viver. Quando trabalhamos em Nova York, nos diziam: "A Big Apple é diferente da Europa. Nós funcionamos 24 horas por dia, então esqueça suas ideias europeias, elas não vão funcionar aqui". Então usamos ideias europeias, fechamos a Times Square para carros e, de repente, todo mundo gostou.

De onde veio a inspiração para o projeto da Times Square?

Muitas das ideias vieram de Copenhague, que começou a humanizar a cidade já em 1962, quando sua principal via, Stroget, foi fechada para carros. Há 60 anos a cidade vem trabalhando para oferecer melhores espaços públicos para as pessoas caminharem e se locomoverem de bicicleta.

Divulgação/ Jan Gehl Divulgação/ Jan Gehl

Dei aulas na universidade por 40 anos. Participei de inúmeras conferências, fiz grandes projetos, mas a coisa mais importante foi escrever livros porque hoje eles espalham essa mensagem no mundo inteiro.

Jan Gehl, arquiteto dinamarquês

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Projeto de Jan Gehl em Amã

Entre os projetos dos quais participou, qual seu favorito?

Trabalhei muito em Sydney e acabei me tornando um cidadão horário da cidade. Só dois arquitetos dinamarqueses conseguiram isso: eu, que ajudei no planejamento urbano, e Jorn Utzon, que projetou a Opera House da cidade. O que fizemos em Nova York também foi interessante. Mas o que trouxe mais satisfação foi um espaço público que criamos em Amã, na Jordânia, numa região com poucas opções de lazer onde moram refugiados palestinos. No lugar de um estacionamento, criamos um espaço de convivência. Gostei porque não foi numa cidade rica como Nova York, mas numa de poucos recursos. Espaços públicos são para todos, mas são especialmente importantes para jovens carentes.

O senhor ainda pedala por Copenhague?

Não, estou velho demais. Na minha idade, você não pode sofrer uma queda. Se cair, pode ter complicações sérias de saúde. Então o mais sábio a fazer é caminhar e pegar transporte público.

É otimista em relação ao futuro das cidades?

Tenho razões para ser. Vi tantas delas que melhoraram seus espaços públicos, incluindo Copenhague, que era um lugar desagradável, cheio de trânsito de automóveis e poluição. Hoje, 50 anos depois, é agradável tanto para idosos, como eu, quanto para jovens, como meus netos. Mas não foi algo que aconteceu de graça. Nós pressionamos o poder público e conquistamos uma cidade melhor.

Fizemos um grande projeto para a cidade de Londres, mas muito pouco do que havia sido planejado foi executado de fato. Tudo ficou parado quando Boris Johnson assumiu a prefeitura da cidade [2008-2016]. Londres merece algo melhor, certamente não é uma cidade agradável comparada com outras metrópoles de mesmo porte.

Jan Gehl, arquiteto dinamarquês

Qual o seu recado para os brasileiros que desejam viver em cidades melhores?

O ex-prefeito de Bogotá Enrique Peñalosa diz ser um paradoxo que a humanidade saiba tanto sobre o habitat de gorilas, elefantes e baleias e tão pouco sobre bons lugares para o Homo sapiens viver. É um paradoxo que passemos horas assistindo filmes sobre os animais e onde vivem e não saibamos o que acontece em nossa própria cidade. É preciso conhecê-la e pressionar o poder público para que melhore as condições de vida nela.

Se ficarmos sentados, o lobby da indústria automobilística e dos conservadores vai ganhar. É preciso ser ambicioso para tornar sua cidade amigável aos ciclistas: aprenda com exemplos de outras cidades e mostre à sociedade e aos políticos. Não é algo dado que as cidades sejam bons lugares para se pedalar e caminhar. Em muitos lugares há grupos que organizam pedaladas às sextas-feiras para protestar por melhores condições para os ciclistas. Esse ativismo é necessário. Os políticos não farão a mudança por conta própria.

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