Sociedade doentia

Quem vê o migrante como inimigo "não tem nada de cristão na cabecinha", diz Padre Paolo

Rômulo Cabrera De Ecoa Pablo Saborido/UOL

Na maior parte do tempo, o padre italiano Paolo Parise, 52, é um sujeito tranquilo, de fala mansa e opiniões ponderadas. Coordenador da Missão Paz, em São Paulo, uma das mais antigas instituições no país a receber imigrantes e refugiados de todo o mundo, ele só sai da linha quando o assunto são as injustiças sociais que, infelizmente, testemunha com frequência.

"A crise migratória atual faz transparecer, em todas as suas formas, as contradições do mundo. Ver o outro como um inimigo, uma ameaça, é um sinal de uma sociedade doentia. A mensagem cristã chama o outro de irmão. Mas até mesmo aqueles que se dizem cristãos parecem não compreender. Certamente não têm nada de cristão na cabecinha", diz.

Natural de Maróstica, no Norte da Itália, Parise veio ao Brasil pela primeira vez em 1991, mas foi só em 2010 que assumiu a gestão da entidade. Desde então, já passaram por lá mais de 60 mil pessoas de 132 nacionalidades. Quem chega recebe não apenas um lugar para morar, enquanto não se estabelece no país, mas atendimento jurídico, médico e psicológico, além de ajuda para encontrar emprego e oferta de cursos de língua portuguesa e profissionalizantes.

Atualmente, a casa comporta 110 pessoas de todas as idades, sobretudo quem chega em família com crianças pequenas. Para atendê-los, a entidade conta com 36 funcionários e mais de 110 voluntários.

Segundo a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), a existência de lugares assim é imprescindível no contexto da crise migratória atual. Ainda de acordo com a organização, 70,8 milhões de pessoas no mundo foram (e estão sendo) forçadas a deixar suas casas por diferentes tipos de conflitos: guerras, perseguições políticas, religiosas, étnicas, entre outras.

Forçados a sair

Paolo, que também veio de fora, abre portas e acolhe outros estrangeiros, mas faz questão de deixar claro que tem consciência da posição privilegiada em que chegou ao Brasil pela primeira vez, no início da década de 1990. O padre, afinal, é um imigrante, não um refugiado. Veio encaminhado pela Congregação dos Missionários de São Carlos, os escalabrinianos, que atua em 34 países no mundo e da qual o italiano faz parte.

Imigrantes e refugiados, é preciso ficar claro, não são a mesma coisa. Enquanto os primeiros deixam suas terras natais por opção, podendo voltar com segurança quando quiserem, quem procura por refúgio foge de uma situação de vulnerabilidade.

Além disso, o título de refugiado precisa ser legalmente reconhecido pelo país que recebe o estrangeiro. Só em 2018, foram feitas mais de 80 mil solicitações de reconhecimento no Brasil. No topo desta lista estão os venezuelanos (61 mil pedidos), seguidos por haitianos (7 mil) e cubanos (2,7 mil), segundo dados da Polícia Federal.

As crises política, econômica e social na Venezuela têm forçado milhares de pessoas a fugir de seu país. O Brasil, por sua vez, tem sido um dos principais destinos delas, que chegam por Roraima e Amazonas, estados que fazem fronteira com o país vizinho, e depois rumam para outras localidades, como São Paulo.

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL

Nos porões da sociedade

Paolo convive com migrantes (quem se desloca de sua terra natal, seja para fora ou ainda dentro do país) e pessoas em situações extremas há mais de 30 anos. Na década de 1980, então um jovem seminarista, fazia visitas regulares aos trabalhadores turcos, na Alemanha, e africanos, na Itália. À época, o ódio aos estrangeiros e os confinamentos destas comunidades em guetos já era comum.

"Essas pessoas viviam em situações precárias. Os turcos, em espaços muito pequenos, em péssimo estado, com gente dormindo empilhada. E os africanos, com pouco dinheiro, dormindo em barracos e explorados pelas máfias locais", lembra Parise.

Nada, no entanto, se compara às cenas de horror que viu no Brasil. Nos anos 2000, atuou na Zona Sul de São Paulo, que já foi considerada uma das regiões mais violentas do mundo pela ONU. Lá, trabalhou com migrantes internos, em especial os nordestinos.

"Eu estava há um ano lá quando um jovem de 15 anos foi morto dentro da igreja, com quatro tiros nas costas. Foram muitas cenas de violência além desta. Lembro também de uma cabeça cortada e fincada em um poste por grupos de controle de drogas, creio eu", diz.

Diante desse quadro, Paolo reuniu alguns jovens e passou a promover atividades culturais das quais participavam todo tipo de gente: dos pastores evangélicos a outros líderes comunitários. Eram festivais de arte, torneios de futebol e vôlei e intervenções artísticas nas avenidas da vizinhança. "Colocamos cruzes brancas na vias, em referência ao número de jovens mortos na região ao longo do ano", conta.

Nascia ali o "Evento Pela Paz", cujo objetivo era mostrar uma outra ótica do Grajaú e proximidades. "O bairro não era só violência. Existiam pessoas que queriam e eram da paz. A periferia, nesse sentido, tem laços de comunhão e companheirismo fortes, diferente dos grandes centros."

Por nove anos, Paolo Parise viveu no Grajaú, sua segunda passagem pelo Brasil. Antes já tinha vivido no litoral paulista, no Guarujá, em Vicente de Carvalho. Depois de idas e vindas entre Brasil e Itália, em 2010, retorna mais uma vez com o objetivo de preencher uma vaga deixada pelo antigo diretor do Centro de Estudos Migratórios, anexo ao imóvel da Igreja Nossa Senhora da Paz, na rua do Glicério, no centro paulistano.

Desde a década de 1930, a paróquia oferece abrigo a estrangeiros — no início, apenas italianos. Depois, passou a receber pessoas de outras nacionalidades também.

Com a chegada de Padre Paolo, o atendimento cresceu e foi integrado a outros serviços. Em 2012, nasceu, então, a Missão Paz, que inclui mais três núcleos. O Centro Pastoral e de Mediação dos Migrantes é responsável pelo serviços voltados aos estrangeiros. Já o Centro de Estudos Migratórios é um espaço com uma biblioteca especializada em migração. E há ainda a Igreja Nossa Senhora da Paz, que acolhe três paróquias: a do bairro, a dos italianos e a dos hispano-americanos.

Pablo Saborido/UOL Pablo Saborido/UOL
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Acolhimento é um processo

Na manhã do último 12 de outubro, 14 recém-chegados (12 venezuelanos e 2 africanos de Burkina Faso) se somaram às outras 72 pessoas que já estavam na Missão Paz há mais tempo. No mesmo dia, a casa recebeu a visita da venezuelana Samired Coromoto, 33, e seu filhinho Samir, 11.

No ano passado, ela precisou se submeter a uma cirurgia de tireoide e, por causa das condições precárias em que vive seu país, não conseguia os remédios necessários para completar o tratamento.

Foram 32 horas de viagem de Caracas, capital da Venezuela, a Pacaraima, no estado de Roraima. Lá ela permaneceu por cerca de 20 dias organizando sua documentação e recebendo vacinas antes de rumar para seu destino final, a capital paulista. Chegou aqui em novembro de 2018.

Em março, depois de quatro meses na entidade, conseguiu emprego, por meio dos programas de inserção laboral, como redatora em língua hispânica, numa empresa de mídia no centro da cidade. Atualmente, ela mora com Samir e outros familiares no bairro do Bela Vista.

"Eu sempre visito o refúgio para conversar com padre Paolo e funcionários da casa. Mesmo depois que saí, o padre mantém contato comigo e outros amigos venezuelanos. Ele dá conselhos, indica lugares para visitarmos e nos integramos à cidade", diz Samired.

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Sensibilidade que vem do berço

Paolo passou toda infância e parte da adolescência em Maróstica, um pequeno município italiano com não mais que 12 mil habitantes. Vem de uma família profundamente católica, praticante não apenas pelo elemento religioso, mas porque transformavam essa espiritualidade em ações cristãs concretas.

Ao lado da mãe Giuseppina Gazzola, 79, ele e as duas irmãs faziam visitas frequentes aos moradores da comunidade, em especial os doentes, os solitários, e as pessoas de idade avançada. "Levávamos doces e disposição para conversar por algumas horas."

Do pai Antonio Parise, Paolo diz ter herdado o compromisso com o trabalho e a justiça. "Até há pouco tempo, veja você, aos 83 anos, meu pai fazia parte de uma associação de aposentados de Maróstica, que atuava com a reciclagem e ajuda a instituições filantrópicas. Respirei esse ar de abertura para com o outro desde criança. Eu e minhas irmãs crescemos nessa filosofia de vida, eu diria, de uma maneira extremamente natural", conta.

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