"Eu sei me impor"

Luiza Batista terminou o ensino fundamental aos 50 anos e hoje luta pelos direitos das domésticas

Débora Britto de Ecoa, em Recife Clara Gouvêa/UOL

Mal havia terminado de conceder a entrevista à reportagem de Ecoa, Luiza Batista, 63, líder nacional das trabalhadoras domésticas, parou para ouvir o drama de uma mulher que a procurava. A moça foi contratada por um deputado, membro de uma família de políticos pernambucanos. Lá, sofre uma série de humilhações, como xingamentos. Gostaria de ter certeza de que seus direitos trabalhistas estão sendo recolhidos pelo empregador, mas não sabe como fazer a conferência. Quer pedir demissão, mas tem medo e precisa de apoio.

"Esse tipo de situação é muito comum. Chegam aqui pessoas que estão em condições de exploração há 20, 30 anos...", diz Luiza, que, desde 2016, é presidente da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas). "As conquistas legais são boas no papel, mas na prática ainda é muito pouco porque as residências são invioláveis. Quem vai fiscalizar?"

A Fenatrad representa uma das categorias profissionais mais numerosas no Brasil. São mais de 7 milhões de pessoas, número que leva o país para o topo do ranking de nações com maior população de empregados domésticos segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Nove em cada dez são mulheres e mais da metade é negra.

No escritório onde funciona o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas em Pernambuco, do qual ela também é presidente, Luiza oferece orientação jurídica a milhares de mulheres. O trabalho vai desde o simples aconselhamento até o acompanhamento de processos. Além disso, em 2017, foi lançado o aplicativo Laudelina, desenvolvido graças a uma parceria entre a Fenatrad, a ONG Themis, a ONU Mulheres Brasil e o Google, que financiou o projeto. Por meio do programa, as trabalhadoras podem se informar melhor sobre seus direitos e deveres.

A sindicalista Luiza sabe bem o que é não ter garantia alguma na vida. Começou a trabalhar ainda criança, aos nove anos de idade, em condições hoje consideradas análogas à escravidão. O pagamento se resumia a duas cestas básicas por mês, com as quais ajudava a mãe a sustentar a família.

Clara Gouvêa/Arte UOL

Exploração na infância

"A minha memória como trabalhadora começa aos nove anos de idade. Quando o meu pai faleceu, era trabalhador rural, sem dinheiro nenhum, minha mãe não teve direito à pensão nem nada. O dono do engenho expulsou a gente e fomos morar na rua, literalmente.

Passamos uma semana, e uma senhora que tinha um terreiro de candomblé nos acolheu e depois fez um mutirão com os filhos de santo para construir um barraco para mim e minha mãe na cidade de Chã de Alegria, em Pernambuco. Hoje é cidade, na época era município de Glória do Goitá.

Com nove anos eu fui trabalhar numa residência, onde passei seis meses. A patroa era muito intolerante, mesmo sendo professora. Eu não conhecia luz elétrica e, quando ela me mandou acender a lâmpada e eu perguntei pelo 'fosco' - pois eu não sabia pronunciar a palavra fósforo -, ela me chamou de burra, imbecil, idiota. Repetiu isso várias vezes, e eu só olhava para ela e chorava.

Eu não tinha salário, minha mãe na época estava fazendo tratamento para tuberculose e não tinha renda. Eu trabalhava só pela cesta básica que ela dava à minha mãe a cada duas semanas. Ela disse que minha função seria brincar com uma menina de cinco anos. Só que a menina passava a manhã toda na escola e eu ficava para limpar o jardim. Quando a menina chegava, dormia um soninho, eu ajudava também a arrumadeira a passar cera no chão. Quando a menina acordava, a gente ia brincar, só que ela era danadinha. Um dia ela me deu uma mordida e eu dei um tapa nela.

Isso me rendeu uma surra de fio de ferro da patroa. Eu tinha nove anos. A minha mãe, quando me viu toda marcada, disse 'minha filha, você vai embora. A gente pede esmola, mas eu nunca fiz isso com você, não vou admitir que ninguém faça'. Então isso me marcou muito. Quando me lembro, ainda tenho raiva, ainda sofro. Eu sou uma pessoa que as coisas me marcam, só que não ficam presentes na minha vida.

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

Fomos vender, minha mãe e eu, milho assado. Passamos um bocado de tempo sobrevivendo assim. Nessa época estávamos vivendo no Recife, na Ilha João de Barros, num barraco de tábua, coberto de palha de coco. Era tudo assim na ilha. Quando tinha uma casa coberta com telha 'brasilit' ou de barro, a pessoa era considerada rica.

Apareceu um trabalho quando eu tinha 13 anos e fui. A nora da minha patroa, Dona Inácia, era professora e uma pessoa maravilhosa, a quem devo muito. Ela me tratava com muito amor e carinho.

Um dia minha sandália quebrou na hora em que eu estava indo para a escola. Eu fiquei com vergonha de entrar, e ela disse que eu entraria, sim. Eu tinha medo de os colegas mangarem de mim. Ela pegou minha mão, entrou comigo e disse para a turma: 'Luiza, ao contrário de vocês aqui, é filha de uma viúva que não tem nada, empregada doméstica. A sandália dela quebrou quando ela vinha, portanto ninguém vai brincar, mangar ou debochar de Luiza porque quem fizer isso eu tiro ponto'. Eu passei a manhã toda na sala de aula. No dia seguinte, ela tinha levado uma sandália japonesa para mim. Foi uma pessoa de quem eu só tenho boas recordações."

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"Eu não sou da família"

"Sou doméstica aposentada, mas a minha primeira assinatura na carteira de trabalho foi como cobradora de ônibus. Um dia, sofri uma queda e precisei dar entrada na Previdência Social. Quando vi, minha carteira, que até então não tinha sido devolvida para mim, estava assinada há só seis meses. E eu trabalhava há dois anos lá! Enfrentei o empresário.

Naquela época o sindicato existia, mas estava interditado porque era ditadura militar. Não tinha piso, as empresas pagavam o que queriam. Toda semana tinha desconto no salário. A partir dali eu vi que, como mulher, se a gente quer pelo menos se fazer notar, tem que se firmar mesmo. Depois desse episódio, voltei a ser trabalhadora doméstica. E, a partir daí, só aceitei trabalhar com carteira assinada. Estávamos em 1979 e isso já era lei.

Tive uma patroa que era uma pessoa excelente, mas tinha um filho que era um horror. Pedi demissão, mas no mesmo prédio tinha um casal de dentistas com quem eu comecei a trabalhar. Fiquei dois anos com essa família. Quando se mudaram, passei a trabalhar na casa dos pais do meu ex-patrão. Quando ele foi embora, deu baixa da carteira em um dia e o pai dele assinou no outro. Então nessa casa foi onde eu me aposentei. Passei 26 anos e foi meu último trabalho.

Em um dos lugares onde trabalhei já adulta, eu enfrentei um câncer de mama. Me tratei e voltei a trabalhar. Certo dia, eu estava fazendo feijoada para a família da patroa e disseram: 'Luiza é como uma pessoa da família'. E eu respondi: 'Espera aí! O que existe aqui é respeito. A senhora paga os meus direitos direitinho, mas eu não sou da família. Não sento à mesa com vocês, não durmo na área social, não participo das decisões. Não estou no plano de saúde nem no testamento. Então eu não sou da família'. Aí ela disse que, depois do câncer, eu estava ficando atrevida."

Depois do câncer, a volta à escola

A atuação em prol das outras trabalhadoras de sua categoria começou em 1999, quando Luiza criou, ao lado de outras mulheres do bairro Passarinho, zona norte de Recife, o Espaço Mulher. Desde então, o grupo se reúne para conversar sobre os problemas que enfrentavam no trabalho e para batalhar por melhorias na região. "Nossa comunidade cresceu muito: a gente conseguiu uma escola municipal e agora estamos lutando por um anexo para as crianças. Estamos brigando por um posto de saúde também", diz.

Foi uma das amigas do grupo que, anos atrás, fez uma proposta transformadora a Luiza: voltar para a escola. "Eu tinha parado no ginásio [atual segunda etapa do ensino fundamental] e Edicleia Santos, amiga e cofundadora do Espaço Mulher, disse para voltarmos a estudar. Fazia então um ano que eu tinha me separado. Ainda não tinha feito reconstrução de mama depois do câncer, estava para baixo. Mas acabei aceitando a ideia e, aos 50 anos, concluí o ensino fundamental."

Em sala de aula, Luiza conheceu a então Presidente do Sindicato das Domésticas de Pernambuco, Eunice do Monte. "A fala dela me inquietou muito. Passei a noite pensando que eu era aposentada porque é lei, mas que isso não caiu de mão beijada. Não foram os políticos, mas as mulheres que lutaram pensando no coletivo. Acordei decidida. Perguntei a uma colega se, mesmo não trabalhando mais, poderia me filiar ao sindicato", conta.

Desde então, Luiza só tem estado mais ativa. Representando a Fenatrad, já viajou para fora do país em eventos da OIT e frequentemente participa de agendas nacionais importantes. Foi em um desses encontros, o Fórum Pernambucano de Mulheres, em Recife, que ela diz ter se descoberto feminista. "Posso não ser aquela feminista de academia, que tem um linguajar rebuscado, mas do meu jeito tosco eu acho que sei usar as palavras. Eu sei me impor."

Lei das Domésticas

Em 2013, a Proposta de Emenda Constitucional 72, mais conhecida como a PEC das Domésticas e popularmente chamada de Lei das Domésticas, garantiu aos trabalhadores domésticos a jornada de trabalho de 8 horas por dia, totalizando 44 horas semanais, com direito a horas extras.

Com a regulamentação, os trabalhadores domésticos formais - que têm carteira assinada - passaram a ter todos os direitos assegurados por lei, inclusive Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego e adicional noturno. Na opinião de Luiza, porém, a PEC é boa no papel; já na prática, a realidade é outra.

"Você pode até perguntar se isso funciona na prática. Minha resposta é 'muito pouco'. Isso porque a residência é inviolável, e a gente sabe que ninguém vai produzir prova contra si mesmo. A gente sabe que na periferia a autorização é um pé na porta, mas nos bairros ricos é tudo cheio de cuidados.

E são principalmente pessoas negras. Isso é herança maldita da lei da abolição. Foi aí que se formaram as favelas, os bolões de pobreza, ocupando um espaço que a elite jamais pensou em domiciliar naquelas áreas.

Muitos se tornaram escravos da gratidão. Aqueles que ficaram nas casas que o senhor tratava bem, aqueles que pediram para continuar por um prato de comida e uma roupa. É o que eu chamo de escravidão pela gratidão de ter trapos de roupa, um prato de comida e um buraco para dormir.

A gente vê que o trabalho doméstico tem uma relação direta com a escravidão, com as sinhás, com as amas. A categoria é desvalorizada porque as trabalhadoras são, em grande maioria, mulheres negras, pobres, analfabetas ou semialfabetizadas.

Eu acredito que a forma de mudar essa situação é a educação, ela é a base de transformação da sociedade, e informação também é poder. Uma trabalhadora doméstica, se tiver informação sobre seus direitos, vai saber dialogar com a patroa. Se a patroa disser isso, ela vai poder afirmar o que a lei diz. Ela tem o poder de transformar a vida dela mesma.

O desenvolvimento de uma nação começa justamente pela educação. Porque muitas mães colocam filhos nas escolas, mas em casa não ensinam o filho a pedir desculpas, a dizer por favor, obrigada. Isso não é obrigação da professora na sala de aula. Eu terminei o ensino fundamental com 50 anos, mas já sabia pedir licença, desculpas, já sabia pedir por favor e dizer obrigada. Quem me ensinou isso foi minha mãezinha, analfabeta, que não sabia nem escrever o próprio nome. Educação é a transformação da sociedade e é muito mais do que a sala de aula."

Clara Gouvêa/Arte UOL Clara Gouvêa/Arte UOL
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