Mulher Passarinho

Em uma kombi, ela criou um dos maiores movimentos de mulheres da periferia de Recife

Débora Britto Colaboração para ECOA, em Recife (PE) Clara Gouvêa/UOL

O Morro da Conceição, periferia de Recife (PE), tem um histórico de organização social e política, especialmente na década de 1980. Foi lá que a líder comunitária Edcléia Santos, 62, conheceu a luta por moradia e pelos direitos das mulheres. Hoje, Cleia, como é chamada por quem a acompanha, é cofundadora e coordenadora do grupo Espaço Mulher, que reúne cerca de 30 mulheres negras, trabalhadoras domésticas ou donas de casa, que vivem no bairro do Passarinho, zona norte da capital pernambucana.

O grupo nasceu em meio às reivindicações de Cleia e outros moradores por melhores condições de moradia, já que viviam numa área de risco do Morro da Conceição. O envolvimento dela ganhou impulso em 1987, durante um programa do Governo Federal de distribuição de tíquetes de leite — o contato com a rede de mulheres que tinham os filhos cadastrados ajudou a trajetória social e política de Clélia.

Foi quando ela estava esperando sua vez de retirar o auxílio que encontrou a amiga Vera Guedes. Foi a convite dela que Cleia participou pela primeira vez de um espaço de discussão sobre condições de vida, moradia e segurança das mulheres do morro. Na época, tinha 30 anos.

Cleia ajudou a fundar o bairro onde vive. Foi lá que construiu a casa própria onde criou a família. Dos quatro filhos, perdeu dois, um deles em meio à violência. Foi lá que, há 21 anos, ela e mais nove mulheres do Passarinho criaram um dos principais movimentos feministas da periferia de Recife. Tudo isso dentro de uma Kombi.

A aproximação com o ativismo, mesmo comunitário, foi o que deu asas a Edcléia. A partir das reuniões, construiu um caminho de empoderamento, liberdade e inspiração para outras mulheres como ela, negras, trabalhadoras domésticas e mães de jovens negros.

A primeira vez que eu saí sem filho, sem marido, só com as mulheres, foi para a inauguração de um grupo lá em Paulista, cidade vizinha a Recife. Parecia que eu tinha saído da gaiola! Eu fiquei encantada. Foi daí que começou minha militância" Edcléia Santos, líder comunitária e coordenadora do Grupo Espaço Mulher

Clara Gouvêa/UOL

Nascimento de Passarinho

A cobrança por moradia segura no Morro da Conceição resultou no loteamento do que viria a se tornar o Passarinho, construído numa área doada pelo governo estadual. Esse movimento, que começou no conselho de moradores do bairro, acabou por envolver outras duas comunidades. Ao todo, 800 famílias foram pioneiras em desbravar a mata fechada cedida pelo governo.

"O governador então disse que tinha uma terra que podia doar. Viemos em um caminhão cheio de gente. Isso aqui era tudo mata fechada. Só tinha um rio e um casarão, onde hoje funciona a escola municipal", relembra.

Quando, enfim, conseguiram que o governador à época, Miguel Arraes (PSB), cedesse um novo pedaço de terra para os moradores da Conceição, as promessas de um bairro com estrutura para receber as famílias começaram a enfraquecer. Em vez de todas as ruas asfaltadas, água encanada, posto de saúde e escola, os moradores receberam apenas as ruas principais feitas e a água. De resto, tomaram para si mesmos a tarefa de construir as casas, asfaltar as ruas e buscar o cumprimento do mínimo para viverem com dignidade.

O problema de infraestrutura também estava presente na questão do transporte. O acesso à cidade, por muito tempo, foi realizado apenas por meio da informalidade. Na época, as kombis dominavam e eram uma opção para quem vivia longe do centro. Foi em uma delas, que levava todos os dias as mulheres que trabalhavam como domésticas nos bairros ricos da cidade, que Edcléia e outras mulheres formaram o grupo "As Kombeiras", enquanto conversavam sobre suas vidas, as casas sendo levantadas e as dificuldades da vida em Passarinho.

"Íamos conversando sobre a questão das mulheres na comunidade, a água que faltava, a luz, o calçamento... Aí um dos maridos das meninas disse que a gente só conversava coisas de mulher e que seria bom a gente fundar um grupo de mulheres," conta.

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL
Clara Gouvêa/UOL

As Kombeiras

O momento no qual estavam na Kombi era um dos poucos que aquelas mulheres tinham para conversar e se divertir. Passaram a comemorar aniversários, Natal, Ano Novo? tudo na Kombi. Até que um dia, Neide, uma das dez mulheres que sempre iam juntas, decidiu dar ao grupo o nome de "As Kombeiras", que nasceu oficialmente em janeiro de 1999.

Para Edcléia, desde o início o grupo tinha potencial para falar além de questões pontuais. "No começo, não conversamos sobre política. Falávamos sobre o trabalho em casas de patrões, na maioria das vezes. Só que teve um dia que sugeri que fizéssemos um pequeno projeto para conversar durante dois dias sobre a saúde da mulher," conta.

Como nunca tinha escrito um projeto, Cleia pediu ajuda de Vera Guedes. A resposta foi outra lição, que Cleia conta com orgulho até hoje. "Eu pedi e ela respondeu que quem deveria escrever era eu. Como eu havia dito que não sabia, ela insistiu e me ensinou a fazer, passo a passo. Menina! Eu passei noites escrevendo, não dava certo, refazia. Levava para ela, ajeitava", afirma.

Logo em seguida, apresentaram o projeto para o movimento de luta por moradia e, assim, começaram a dar a primeira formação para mulheres da comunidade do Passarinho.

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

Transformar o mundo, um bairro de cada vez

A trajetória de Edcléia se confunde com as lutas que trava, diariamente, para transformar o bairro em que vive em um lugar com acesso a direitos para todas as pessoas. Mas não só. Ela traz também a luta das mulheres para o universo da comunidade onde criou raízes.

Depois de alguns anos e devido a conflitos e inexperiência de algumas participantes, os encontros e atividades das Kombeiras esfriaram. Mas Cleia não aceitou e, por sua conta, começou a motivar as mulheres a se reunirem.

"A gente se reunia lá em casa, no conselho, na igreja ou na praça. A gente não tinha sede ainda. Eu fui no sindicato das domésticas, porque eu já conhecia a presidente, e elas tinham um projeto chamado Sindicato nos Bairros. Começaram a fazer reunião aos domingos, que é o dia que as trabalhadoras domésticas estão em casa. Isso foi nos fortalecendo", afirma.

Em 2002, Cleia sugeriu que mudassem o nome do grupo. A ideia veio dela mesma, a partir das necessidades e dinâmicas das mulheres. "Eu pensei em Espaço Mulher porque é um espaço onde a gente pode falar, conversar, contar nossos segredos, rir, cantar. Um espaço nosso", relembra.

Depois disso, o Espaço Mulher começou a receber projetos de ONGs feministas e fazer trabalhos comunitários, na base, com crianças e mulheres. Essa experiência abriu portas para que outras iniciativas apoiassem o grupo financeiramente.

Em 2008, realizaram o evento Beleza Negra, uma das primeiras atividades para valorização das mulheres negras da comunidade. O despertar para as condições e consequências de ser mulher negra surgiram nas discussões sobre feminismo.

"Essa é uma ação para a gente se reconhecer como mulher negra, porque a gente se levanta de manhã e, muitas vezes, nem olha para nós mesmas. Vai lavar prato, fazer comida, arrumar menino, vai levar menino na escola. A gente faz mil e quinhentas coisas e não olha para a gente", celebra Cleia.

"O Beleza Negra é uma ação para a gente se reconhecer como mulher negra, porque a gente se levanta de manhã e, muitas vezes, nem olha para nós mesmas. Vai lavar prato, fazer comida, arrumar menino, vai levar menino na escola. A gente faz mil e quinhentas coisas e não olha para a gente."

Edcléia Santos, líder comunitária e coordenadora do Grupo Espaço Mulher

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

As lutas em Passarinho

São as mulheres as que mais sentem o impacto da ausência de políticas públicas. Por isso, ao mesmo tempo em que se fortalecem, as mulheres de Passarinho precisam lutar por diversas outras questões, desde educação até a saúde da população no bairro.

A escola não tem vagas suficientes para as crianças da comunidade. Muitas precisam sair e buscar estudo em bairros vizinhos. O transporte segue sendo uma dificuldade. "As crianças, independentemente da idade, têm que sair da comunidade porque só há uma única escola municipal aqui," diz Edcléia. Sem creche, muitas mulheres não podem trabalhar fora. Apesar disso, o bairro tem a característica de ter mulheres que são as chefes de muitas famílias.

O posto de saúde que existe hoje tem capacidade de atender 4 mil pessoas por mês e não é suficiente para a demanda. No bairro, vivem cerca de 20 mil pessoas. "Tem várias áreas próximas que estão descobertas de atendimento. Nós conseguimos, ano passado, que um médico passasse a atender de forma itinerante as áreas que o posto não cobre", afirma.

A demanda por um posto maior, com atendimento 24h, dialoga com a lacuna do transporte público. Os ônibus, que passam na comunidade, só circulam de dia. "Aqui a gente tem hora para adoecer. Não podemos adoecer tarde da noite, porque não tem transporte. Se você tiver seu carrinho, tudo bem, se não tem que amanhecer para conseguir chegar à UPA mais próxima", conta a líder comunitária.

A dificuldade é expressa, inclusive, em outro aspecto: aplicativos de transporte classificam o bairro como área de risco e os moradores, quando necessitam, sequer conseguem chamar um carro.

O saneamento básico é outro assunto negligenciado pelo poder público. A queda de braço com a Prefeitura já se estende por anos, mas Edcléia não desiste. Enquanto houver o Espaço Mulher, todas essas lutas por melhoria no bairro são das mulheres, ela afirma.

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL
Clara Gouvêa/UOL

Como nasce uma liderança?

As companheiras de Cleia ressaltam o quanto conhecer a coordenadora do Espaço Mulher foi o ponto de partida para cada uma se empoderar dos próprios direitos. O exemplo da mulher que, apesar de receber vários 'nãos', continua animando outras mulheres a se organizarem e se fortalecerem.

"Fazer com que essas mulheres se reconheçam mulheres negras, periféricas, vivendo em uma comunidade não é fácil. Sabemos de todos os preconceitos que essas mulheres enfrentam.

Quando perguntada como ela, a mulher Cleia, não a ativista, consegue se cuidar para fortalecer outras, a emoção é mais forte.

"Tem hora que cansa, dá vontade de chutar o balde. Mas não é uma luta só de Cleia. Apesar de me fortalecer, sei que não sou só eu. O Espaço Mulher não trabalha só a questão de Cleia, mas de Marina, Joelma, Vânia e de Luiza, por exemplo, uma mulher que nunca tinha saído para canto nenhum e hoje é presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco."

O trabalho, que pode parecer pequeno, tem consequências grandiosas. Aos poucos, a cada mulher, uma transformação quebra um ciclos de opressão e falta de oportunidade. "Trabalhar a autoestima, o empoderamento e auto conhecimento dessas mulheres, tudo isso vem lá do Morro da Conceição, quando eu fui convidada pela primeira vez e nunca mais saí. Isso me fortaleceu e vejo que o trabalho é uma semente para cada uma de nós aqui", reflete.

Feminismo a partir das periferias

Para Cleia, trabalhar em periferia é diferente de fazer movimento no centro. Depois de anos em movimentos de mulheres, ela segue cada vez mais certa de que é preciso virar uma chave quando se fala de construção feminista. Para ela, a periferia precisa ser apoiada e entendida nas suas características próprias. Sendo uma mulher negra, ela também traz a ancestralidade para o debate.

"Nós, mulheres negras, temos na nossa ancestralidade não isso de ninguém solta a mão de ninguém, não, a gente segura. Sempre segurou. A gente não deixa nenhuma negona sozinha, quando a gente vê lascada. Estamos sempre nos apoiando. Quando uma está deprimida, passando por problema, a gente vai lá e bate na porta, traz para a reunião. Nosso trabalho é todo dia, sem parar", afirma.

Enquanto conversa, Cleia vai trançando tecidos que dão forma a coloridos colares que expõe em uma das paredes do grupo. O trabalho como artesã foi outra descoberta na história do Espaço. Para algumas mulheres, foi a desculpa para se aproximar do grupo. Mas a verdade é que muito mais do que o artesanato, o que une as mulheres na sede do grupo é o apoio, a escuta e trocas que acontecem ali.

Joelma Santos, 50, deficiente física devido à paralisia infantil, chegou ao grupo em um processo de depressão profunda. Isolada, não saía de casa, nem conversava com ninguém sobre o que sentia. Quando chegou ao Espaço Mulher, no entanto, sua vida mudou.

Ela ainda convive com a depressão, mas redescobriu como cuidar de si e tomou gosto por construir com as companheiras. Durante as tardes, quando não há o que fazer em casa, seu primeiro pensamento é ir para a sede encontrar as colegas, bater papo, costurar juntas.

Para pagar o aluguel e manutenção da sede, o Espaço Mulher hoje conta com parcerias de organizações feministas em Pernambuco para realizar projetos e também com a venda de camisas, itens de decoração e peças de artesanato confeccionadas por mulheres do grupo.

Atualmente, o desejo de Cleia para o Espaço Mulher é que ele se torne um ponto de encontro, acolhimento e fortalecimento de mulheres e meninas, com alfabetização para as mais velhas e oportunidades para as mais jovens continuarem a luta por liberdade.

Clara Gouvêa/UOL Clara Gouvêa/UOL

Veja também

Raul Spinassé/UOL

Salvadora de Marias

Major que atende 5.700 mulheres vítimas de violência na Bahia diz que a polícia está doente

Ler mais
Clara Gouvêa/UOL

"Eu sei me impor"

Luiza Batista terminou o ensino fundamental aos 50 anos e hoje luta pelos direitos das domésticas

Ler mais
Tuane Fernandes/UOL

Fé inclusiva

Abandonada pela mãe por ser trans, ela criou projeto para incluir travestis e transexuais na Igreja Evangélica

Ler mais
Topo