Cidades inteligentes

De carros autônomos a veículos voadores, elas mudarão o que sabemos sobre mobilidade. E já estão entre nós

Rafaela Borges Colaboração para o UOL

O ano era 2002, mas o período retratado na distopia cinematográfica "Minority Report - A Nova Lei" foi uma leitura do que poderia ser o ano de 2054. No longa sobre uma sociedade monitorada, apareciam em destaques as cidades inteligentes, com casas conectadas, automóveis capazes de rodar sem motoristas, acessos a locais por leitura facial e amplo uso de inteligência artificial.

Ao menos quando o assunto é mobilidade, as tecnologias que vão possibilitar a criação de cidades inteligentes já estão prontas, ou em estágio bastante avançado de desenvolvimento. Se apenas os recursos tecnológicos fossem requisito, esses espaços seriam viáveis muito antes do previsto na ficção.

Este episódio da série Transporte do Futuro mostra o que são as cidades inteligentes, que vão possibilitar a proliferação do carro autônomo, dos veículos voadores (eVtols) e até mesmo o ganho de escala do automóvel elétrico.

Getty Images

O que são cidades inteligentes

A cidade inteligente pode ser chamada também de cidade conectada. Nesses espaços, a internet sem fio estará nos carros, ruas, casas, prédios, escritórios e transporte público para criar integração. "O maior beneficiário tem de ser o cidadão", diz Cominotti.

Para a Ford, que concluiu em 2020 uma experiência de cidade inteligente em Ann Arbor, no Estado de Michigan, nos EUA, as cidades inteligentes exigem a integração de diferentes soluções em um ambiente dinâmico e em constante mutação para atender às necessidades de todos (residentes e visitantes).

Cominotti vê a implementação desses sistemas inteligentes como algo primordial, uma vez que a população muda cada vez mais para o ambiente urbano. "Em 2014, 54% da população mundial vivia nas cidades. A previsão é de que, em 2050, esse número atinja 70%", diz a especialista.

De acordo com ela, as cidades inteligentes, além da mobilidade, contemplam aspectos como saúde, habitação, energia elétrica, esgoto e água. Quando o assunto é mobilidade, nesses espaços, as pessoas devem ser capazes de se deslocar de um ponto ao outro em qualquer parte da cidade usando uma série de modos, perfeitamente integrados e com opção de pagamento simples.

Mentor de tecnologia e inovação para sistemas autônomos da SAE Brasil, Jonathan Marxen cita uma iniciativa que já está em aplicação na Alemanha. Por meio de aplicativos e uso de conexão no transporte público, é possível traçar uma rota para saber o exato momento em que se vai chegar a um local.

Com a conexão, a rota é transferida ao smartphone em tempo real, com informações sobre eventuais atrasos de ônibus e trens e, se for o caso, recálculo da rota, para reduzir o tempo de viagem.

Getty Image

Mobilidade mais segura e limpa

Para que as cidades inteligentes saiam do papel e sejam viáveis, o principal recurso de infraestrutura é a internet rápida. A tecnologia 5G, com sua alta velocidade e baixa latência, permitirá que veículos se conectem uns aos outros, e a todo o entorno.

Automóveis poderão "conversar" com postes, vagas de estacionamentos e residências. Com isso, haverá melhoria na qualidade de vida, redução em acidentes de tráfego e até da poluição nos centros urbanos.

Mas há questões éticas sobre as cidades inteligentes - questões levantadas pelo filme "Minority Report". "Os processos precisam ser democráticos, sem invadir a privacidade das pessoas", diz a arquiteta e urbanista Carolina Cominotti, mentora de mobilidade humana da SAE Brasil.

Cominotti cita exemplos polêmicos na China e no Canadá. "Em Toronto, há uma iniciativa coordenada pelo Google", explica. Para a especialista, iniciativas têm de ser guiadas por governos, não deixadas totalmente nas mãos de uma única empresa privada.

Já na China, há iniciativas de cidades inteligentes que estão rastreando as condições financeiras da população, em um caso de invasão de privacidade. "É algo distópico, mas está acontecendo", afirma a arquiteta.

Cidades inteligentes estão entre nós

Getty Images

Ann Arbour (EUA)

A Ford fez parceria com a prefeitura da cidade para coleta de dados e estudo sobre soluções de mobilidade. Para isso, usou até mesmo dados do censo para rastrear o comportamento da população. De acordo com a montadora, um dos resultados importantes da experiência, finalizada em 2020, foi conseguir unificar dados de diversos órgãos em uma única central, passo importante para viabilizar as cidades inteligentes.

Getty Images

Dusseldorf (Alemanha)

A Audi instalou em alguns locais da cidade faróis inteligentes e conectados, que conversam com os carros. Eles transmitem ao veículo informações sobre seu status, permitindo ao carro chegar ao local no momento em que o farol está verde.

Getty Images

Ulm (Alemanha)

Em parceria com Daimler, TomTom e Nokia, a Bosch coordena estudos sobre postes conectados, que são capazes de "ver" além dos sensores e radares do automóvel. Por meio da conectividade, transmitem aos carros os dados e imagens que ele não pode enxergar.

Getty Images

San Jose (EUA)

Outra iniciativa da Bosch está sendo aplicada na cidade americana. A sistemista alemã, em parceria com a prefeitura local, faz estudos sobre o comportamento do tráfego para implementar os resultados no desenvolvimento da tecnologia autônoma de condução.

Divulgação

Woven City

A Toyota foi além no conceito de uma cidade conectada: vai fazer uma do zero. Aos pés do Monte Fuji, a construção tem início marcado para 2021 e inicialmente vai abrigar cerca de 2 mil funcionários da montadora e suas famílias.

"Woven City", algo como "Cidade de Tecido" ou "Cidade Interligada" na tradução literal para o português, terá energia elétrica proveniente de células de hidrogênio e um "ecossistema totalmente conectado", de acordo com a Toyota.

A marca considera o projeto um "laboratório vivo" e revelou que irá convidar parceiros comerciais e acadêmicos, além de cientistas e pesquisadores de diversos países, para trabalhar em projetos na cidade inteligente.

O tráfego na cidade deverá ser organizado de acordo com três categorias de mobilidade: uma área exclusiva para veículos mais rápidos; outra para veículos mais lentos, pedestres e equipamentos para deslocamento individual; e outra apenas para deslocamento a pé.

Getty Images Getty Images

Carros vão perder protagonismo

Quando surgiram os carros, a crença era de que eles seriam a solução para a mobilidade. Mas o tempo passou, e eles geraram congestionamento nas vias urbanas. Agora, aos poucos, vão perdendo o protagonismo na escala de prioridades do transporte. Isso porque, além de aprimorar a segurança e reduzir a poluição, as cidades inteligentes também têm como objetivo anular os índices de congestionamento.

Na escala de prioridade das cidades inteligentes, o primeiro lugar é dado aos pedestres. Na segunda posição aparece o transporte coletivo, segundo a arquiteta e urbanista Carolina Cominotti, da SAE. A redistribuição do espaço das cidades deve priorizar faixas de ônibus inteligentes e conectadas, totalmente integradas aos sistemas de trens e metrôs.

Em terceiro lugar, aparecem veículos sem motor, como bicicletas e patinetes. A conexão das estações de compartilhamento desses veículos com smartphones do usuário é uma iniciativa que vem não apenas sendo testada, mas já bastante utilizada em diversas cidades - inclusive em São Paulo.

O transporte de cargas aparece no quarto lugar dessa hierarquia e os veículos motorizados (carros e motos), na quinta e última posição.

Getty Images

Elétricos, autônomos e cidades inteligentes

A mobilidade individual em veículos motorizados tende a perder o protagonismo nas cidades inteligentes. Mas, ainda assim, empresas de diversos setores estão trabalhando em soluções para esse modal.

O carro autônomo chegará ao nível 4 em 2021 (entre os modelos a trazer essa tecnologia está a recém-apresentada nova geração do Mercedes-Benz Classe S). Nesse estágio, é capaz de rodar em rodovias sem intervenção humana.

O próximo passo é que esses carros ganhem as cidades. Porém, para isso, não basta a tecnologia embarcada nos automóveis. O entorno precisa se preparar. Vagas de estacionamento conectadas, para receber esse tipo de carro, estão previstas.

A Bosch, por sua vez, prepara uma solução que será determinante para a tecnologia autônoma trabalhe de maneira eficiente. Os postes conectados usarão 5G e câmeras de alta resolução para captar imagens que não podem ser vistas nem pelos sensores e radares do veículo.

Por meio da conectividade, essas imagens serão transferidas aos mapas dos automóveis, usando realidade aumentada para mostrar mais detalhes da via ao carro autônomo. A internet também será instalada em pontos de recarga para veículos elétricos, transmitindo a ele informações sobre estações livres nas cidades.

Mas nem só de conectividade será feita a cidade inteligente. Nelas, está prevista a instalação de placas sob as faixas das vias, para possibilitar a recarga da bateria dos carros elétricos por meio de indução - enquanto o automóvel roda.

Getty Images

Entrave à evolução de mobilidade

A tecnologia 5G já está disponível em muitos países. Porém, a conexão a bordo nos veículos, que os transformará em smartphones, precisa ser aprimorada. Apesar de soluções como internet a bordo e até inteligência artificial para executar funções, esse recurso ainda é embrionário nos automóveis, e deve levar alguns anos para chegar a um estágio avançado.

Além disso, é preciso aplicar o wi-fi nas cidades, possibilitando a interação do automóvel com o entorno. O processo de ampliação da conectividade em vias está mais avançado em rodovias. Até no Brasil já há algumas com torres de internet em áreas amplas - a Arteris é uma das pioneiras nesse processo.

A conectividade nas cidades, embora já tenha algumas iniciativas (veja quadro), deve ser implementada apenas em uma segunda etapa, após a conclusão do processo em rodovias.

Marxen aponta ainda a gestão das cidades inteligentes como uma outra questão a ser resolvida. Embora o processo deva ser coordenado por governos, a tendência é que estes contrantem empresas para gerenciar todos os processos. O problema é que ainda não se sabe como monetizar essas companhias.

Além de montadoras, como Mercedes e Ford, também estão realizando experiências com cidades inteligentes sistemistas (a exemplo da Bosch) e diversas empresas de tecnologia (como Nokia, Osram e TomTom).

Série Transporte do Futuro

Carros voadores

Eles terão preços de carros de luxo e caberão na sua garagem

Ler mais

Autônomos

O que falta para dispensarmos de vez a necessidade do motorista?

Ler mais

Elétricos

Como veículos não precisarão mais parar para abastecer (ou carregar)

Ler mais

Conectados

Veículos estão se tornando 'inteligentes' e virando grandes smartphones

Ler mais
Topo