Ser normal é que é louco

Em um mundo tão complexo e acelerado, atípico é a saúde mental não ser abalada diante de tantas exigências

Priscilla Auilo Haikal Colaboração para o VivaBem Catarina Bessell

Que atire a primeira pedra na Lua quem nunca sentiu a mão suar e o estômago embrulhar, numa agitação tamanha que parece impossível se concentrar por mais de 10 segundos na mesma atividade ou pensamento. Ou então quem nunca acordou e teve uma imensa dificuldade de sair da cama, sem ânimo para se mexer nem interesse de encontrar qualquer ser vivo.

É natural, todos temos nossos dias mais tristes ou enérgicos. Mas o que para alguns são quadros passageiros, desencadeados por episódios pontuais, para outros vêm se tornando condição frequente, que impede e prejudica não só a tão cobrada produtividade, mas o próprio viver. São sinais que estamos adoecendo e deixando de cuidar de quem faz com que tudo tenha sentido: a mente.

E não podemos deixar que essa falta de cuidados ocorra por causa de estigmas e tabus que envolvem o assunto, já que nos tempos atuais é cada vez mais normal as pessoas enfrentarem problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão, transtorno afetivo bipolar, esquizofrenia e outras psicoses.

De acordo com dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), antes mesmo do surto do coronavírus, os transtornos mentais já eram a razão de mais de um terço das incapacidades registradas no continente americano. As causas mais comuns eram quadros depressivos e de ansiedade, com o Brasil sendo o país mais ansioso do mundo: 9,3% da nossa população sofre com transtorno de ansiedade generalizada (TAG), fobias, ataques de pânico, fobia social, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e transtorno obsessivo compulsivo (TOC).

Projeções indicam que esses números devem aumentar ainda mais por conta do isolamento social e das mudanças no modo de se relacionar decorrentes da pandemia. Mesmo assim, a saúde mental e o bem-estar são áreas constantemente negligenciadas, rodeadas de estigmas e estereótipos pejorativos.

Não bastassem as dificuldades sentidas por quem é acometido por esses transtornos, ainda persistem rótulos que menosprezam a gravidade da situação ou então que invalidam os diagnosticados com esses distúrbios. Apatia, melancolia ou paranoia estão longe de ser "mimimi" ou frescura. Tampouco humor elevado e alucinações auditivas são chiliques ou motivo para temer alguém. São sintomas clínicos psiquiátricos que precisam ser compreendidos e tratados.

Não sirvo no seu rótulo

Durante muito tempo, tudo o que desviasse do padrão tido como ideal era loucura. Além dos que manifestavam sintomas (que hoje sabemos serem decorrentes de transtornos mentais), o estigma servia também a mulheres "histéricas" que preferiam estudar a cumprir com os deveres domésticos, opositores de regimes políticos e até pessoas atraídas sexual e afetivamente por outras do mesmo sexo.

Por ser difícil aceitar e entender quem destoa das normas difundidas por grande parte da sociedade, inclusive pelo estranhamento e incômodo que isso pode gerar, o que não faltam são reações adversas e preconceituosas diante do que está envolvido nessas diferenças. Ao retomar o tratamento dado aos considerados "anormais", sobram relatos de depreciação e de constrangimento por suas características e comportamentos, de maus-tratos e de exclusão e total afastamento do convívio social.

São fatores que envolvem a maneira como a própria comunidade lida com a diversidade e constrói suas representações. Isso engloba os direitos e deveres de cada um, a própria noção de cidadão, o papel social dos indivíduos em meio a aspectos que podem variar do vestuário até a possibilidade de uniões simultâneas ou entre pessoas do mesmo sexo.

Cada geração tem seu modo de viver e se relacionar, que está diretamente ligado às subjetividades de determinada época. Como parte integrante desse todo, é fundamental refletirmos se as práticas que resultam dessas combinações produzem sofrimento, censura e intolerância ou acolhimento, compreensão e pluralidade.

Não precisa sofrer para buscar ajuda

Por sermos seres dinâmicos, de hábitos e costumes em constantes transformações, é natural que novos tempos sejam acompanhados de outras visões, mudanças nos diagnósticos e avanços nas propostas de intervenção terapêutica. Por mais que a sensação de não conformidade e a dissonância interna sejam experiências comuns aos seres humanos, há várias formas de encarar os aspectos emocionais para melhorar a convivência consigo e com o mundo.

E não é preciso passar por aflições e angústias para iniciar um processo psicoterapêutico. Mesmo que ainda seja cercada de noções vagas e impressões descabidas, a psicologia se ocupa de estudar e tentar entender como chegamos a certos pensamentos e o que esses caminhos significam no funcionamento da nossa mente.

Ao refletir e compreender as razões que motivam os indivíduos, seus gostos, impulsos e interações com o meio e com os outros, alcançamos maior consciência e autonomia sobre nós mesmos, com recursos afetivos que favorecem a aceitação e a vivência com os demais. É um processo de aprendizagem que tem como núcleo a própria singularidade humana.

Para aqueles que percebem um desajuste dentro do seu modo de ser, que demanda suporte para lidar com padrões ou rupturas incômodas, apesar do sofrimento, é uma boa oportunidade de terapeutizar. Reconhecer essa necessidade de ajuda ainda é uma tarefa difícil de assumir e internalizar, pois segue acompanhada do temor de exclusão e da invalidação social praticada com quem é diagnosticado com doenças psicológicas.

É bastante importante que as pessoas recebam cuidados voltados para a saúde mental de maneira mais acessível e naturalizada. Trata-se de uma área muito ampla, com diversas linhas e técnicas voltadas para despertar a capacidade de autopercepção e a desenvolver meios de ponderar as atitudes e os sentimentos.

Tipos de psicoterapia mais comuns

  • Psicanálise

    Teoria e prática terapêutica fundada por Sigmund Freud no final do século 19, a partir de conceitos como inconsciente, impulsos primitivos e modelo estrutural dividido em Ego, Id e Superego. Usa como método a cura pela fala, baseada no método da livre associação para tratar traumas gerados no passado, muitas vezes origens de conflitos internos que provocam ansiedades, inibições e depressões. Por meio da introspecção, a ideia é provocar o paciente para que ele alcance essas reflexões e insights, de modo a entender as características mais profundas e intensas dos processos mentais

  • Analítica

    Teoria elaborada pelo psiquiatra Carl Jung, discípulo de Freud, que além de considerar os sonhos uma importante manifestação do inconsciente, utiliza o conceito de inconsciente coletivo, composto por arquétipos. São símbolos e representações que possuem o mesmo significado para diferentes pessoas, por causa da herança de valores compartilhados ao longo das gerações em situações típicas da vida humana

  • Cognitivo-Comportamental

    Com uma abordagem mais direta e objetivos definidos (exemplo: a cura de uma fobia), procura resolver um problema ou dificuldade por meio da identificação das maneiras que a pessoa constitui seus pensamentos e sentimentos e como age a partir deles. Costuma revelar impressões exageradas e irracionais, conhecidas como distorções cognitivas, que alteram o modo como o paciente interpreta o mundo. Propõe uma participação mais ativa, com práticas e exercícios para modificar essas noções internalizadas

  • Gestalt-terapia

    Fundamentada no conceito do aqui e agora, com foco no presente e no sujeito, leva em conta o que se manifesta durante a relação estabelecida entre o terapeuta e o paciente, por meio dos diálogos, postura e expressões faciais. Também trabalha a perspectiva de consciência e responsabilidade, de como a pessoa percebe a si mesma e o mundo, de modo que esse reconhecimento permita ao paciente alterar os incômodos e as dificuldades

  • Interpessoal

    Inicialmente criada para tratar pacientes com quadros depressivos, leva em conta fatores ambientais e circunstâncias do contexto social que interferem diretamente no humor, numa análise de como essas variáveis se combinam. A ideia é identificar padrões de relacionamentos e modificar as experiências por meio da melhora na comunicação e nas conexões interpessoais

  • Psicodrama

    É baseada na prática da encenação para lidar com os problemas. Pode ser feita em grupo e a ideia é criar um ambiente que facilite o reconhecimento das diferenças e a busca de soluções para o que é revelado. A proposta é colocar a pessoa em contato com questões que dificultam sua ação em situações cotidianas. Procura estimular a criatividade e a espontaneidade dos envolvidos, ampliando seus recursos disponíveis por meio do desenvolvimento emocional e acolhimento da dor psíquica

Não tema, o psiquiatra trata de vários problemas

Assim como nem tudo é o que parece ser, os psiquiatras não são os únicos profissionais que cuidam de transtornos mentais, e muito menos se limitam a só prescrever remédios. São apenas mais algumas noções equivocadas a respeito do tratamento da saúde mental, que segue cercado de muita desinformação e desconhecimento.

Fato é que num passado não muito distante havia motivos de sobra para temer as terapias aplicadas por determinados médicos, principalmente em relação ao que se considerava loucura. Mas assim como em outras áreas, graças às descobertas da ciência e das pesquisas científicas, hoje existem diversas alternativas e opções farmacológicas extremamente eficazes que permitem aos pacientes uma vida digna e com condições bastante favoráveis.

Você pode visitar um psiquiatra quando sofre com problemas de sono, por exemplo. Ou quando tem alterações no apetite ou mudanças frequentes de humor. A partir de uma conversa, que deve ser atenta e empática, o profissional consegue traçar um histórico médico detalhado e, junto com o paciente e os familiares, chegar na indicação mais adequada de acordo com o quadro.

Com informação de qualidade e orientações generosas, que levem em conta o respeito e o protagonismo dessa pessoa, é possível estabelecer uma relação de confiança que supere medos e mitos. A atuação do psiquiatra se baseia na prevenção, diagnóstico e formas de aliviar o sofrimento psíquico e físico, por meio de técnicas de meditação, exercícios físicos ou a prescrição de medicamentos.

Antes da pandemia, ao menos uma em cada dez pessoas tinha algum distúrbio de saúde mental, de acordo com a OMS. É uma incidência que deve continuar aumentando e que demanda de outros profissionais a capacidade de identificar esses sintomas afetivos e psíquicos, sejam clínicos gerais, médicos de família, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais.

O mesmo vale para os psicólogos, que mesmo sem diagnosticar doenças psiquiátricas e prescrever medicação, são parte fundamental da avaliação e do tratamento. A partir da análise de atitudes, ideias e sentimentos, conseguem contribuir para que os pacientes identifiquem aspectos emocionais e do comportamento que são a origem de seus sofrimentos.

Acompanhe como funcionam os principais medicamentos receitados pelos médicos

  • Ansiolíticos

    É como são chamados os calmantes e os benzodiazepínicos. Agem potencializando a ação do neurotransmissor GABA, principal depressor do SNC (Sistema Nervoso Central), responsável por diminuir a atividade cerebral, induzir ao sono e lentificar o funcionamento do SNC. Com isso, o indivíduo passa a não sentir os sintomas físicos e psíquicos da ansiedade: tremor, sudorese, taquicardia, pensamento acelerado, dificuldade de concentração e sensação de desprazer. Vale destacar que não é recomendado o uso prolongado dos benzodiazepínicos, pois podem causar tolerância e dependência, mas isso varia conforme a reação de cada organismo

  • Antidepressivos

    Agem principalmente em dois neurotransmissores que são responsáveis por regular nosso humor: serotonina e a noradrenalina. Nada de "alegria química", eles regularizam o temperamento para que não se torne prejudicial. Se a pessoa tiver uma perda ou um problema difícil, ela vai continuar sentindo tristeza e chateação por aquilo. O mesmo vale para momentos de alegria ou êxtase. A diferença é não ser acometido por um sofrimento profundo, numa dimensão injustificada ou sem razão aparente, de forma a impedir a concentração, a realização de atividades cotidianas, ter perda de apetite, crises de choro, sensação de culpa ou desinteresse extremo, entre outros sintomas. Podem ser usados para outros transtornos, como ansiedade, mas por demorarem mais para fazer efeito (cerca de quatro semanas), são combinados com benzodiazepínicos

  • Antipsicóticos

    Bloqueiam diferentes tipos de neurotransmissores. Os mais utilizados são os que agem nos receptores da dopamina, hormônio ligado ao bem-estar, motivação e sensação de recompensa. Atua para inibir as percepções comuns de quem apresenta quadro psicótico: alucinações auditivas (vozes que ofendem e até mandam o paciente comenter ações como se matar) e delírios, muitas vezes de cunho persecutório, na qual a pessoa acredita ser vítima de uma trama ou conspiração, que está sendo espionada, difamada ou que há um complô contra ela

Cada qual com a sua dose

Apesar de ser algo recente em nossa sociedade —menos de um século —, o uso de psicofármacos transformou completamente o tratamento das doenças mentais. Tanto é que a introdução dos neurolépticos (de efeitos antipsicóticos) no final da década de 1950 desencadeou uma mudança conhecida como revolução farmacológica da psiquiatria. Isso porque a eficácia e benefícios com o uso dos remédios deram a chance de reinserção social desses pacientes e favoreceram uma abordagem mais digna e ética com quem tem os transtornos.

Anteriormente, além das internações de longa permanência, os métodos envolviam choque insulínico para provocar comas induzidos, lobotomia, eletrochoques e até banheira com gelo —hoje somente a eletroconvulsoterapia continua sendo usada e em casos específicos, quando a medicação não surte o efeito esperado, mas com choques em medidas adequadas e uso de anestesias.

Mesmo que as terapias utilizadas tenham evoluído bastante, ainda há resistência e temor em relação à prescrição dos fármacos, muito por conta de estigmas ultrapassados e de desinformação a respeito dos efeitos colaterais —muitas pessoas temem que eles causem dependência ou até que a substância nunca mais vai sair do corpo. O que pode acontecer, e varia muito de acordo com a classe da medicação, são náuseas e desconfortos gástricos, cefaleia, fadiga, e no caso das mulheres, alguma alteração no ciclo menstrual.

Outro fator que faz com que muitas pessoas abandonem a medicação é o tempo de ajuste da dosagem e da substância utilizada. Essas trocas são frequentes e extremamente necessárias para chegar à melhor resposta possível de cada organismo. Como cada corpo reage de um jeito, é um processo que exige paciência durante a adaptação e deve ser bem explicado para o paciente, dos benefícios às chances de efeitos colaterais.

No caso de uma depressão, os remédios demoram até quatro semanas para começar a fazer efeito, sendo que a dose inicial costuma ser maior para conseguir tirar a pessoa da condição aguda. A medicação é mantida de seis meses a dois anos, mesmo que não haja mais sintomas. Quanto mais tempo ela ficar bem, maiores as chances de interromper o uso e não haver recaída ou novos sintomas.

São variáveis que dependem das características do paciente, da doença mental em questão e dos efeitos dos medicamentos. A recomendação é sempre tentar manter a menor dose possível para que o indivíduo fique bem e esteja seguro e bem informado quanto a todas as mudanças.

Respeito é bom e a mente gosta

Por que há tantos anos a sociedade prefere afastar ou prender aqueles que se mostram em desacordo com o que é enquadrado como ideal de crenças e costumes? De que forma a exclusão e os maus-tratos poderiam beneficiar quem não respondia aos padrões de normalidade?

Tivemos que esperar até quase o século 21 para que houvesse a combinação de descobertas científicas (e opções farmacológicas) com noções humanizadas nos cuidados para que a inclusão e o respeito passassem a fazer parte dos tratamentos de transtornos mentais.

Foi somente agora, num tempo de excesso de estímulos e um cotidiano que nunca desliga, em que a dispersão e a dificuldade de atenção são vistas como sintomas, que a abordagem começa a mudar. Nessa mesma época em que crescem os índices de depressão, acompanhados dos padrões irreais de sucesso, desempenho ou estética, que presenciamos outras formas de lidar com as doenças psíquicas.

Aos poucos as privações são substituídas pelo protagonismo do paciente, pelo estímulo ao pertencimento e pela manutenção das relações com pessoas e lugares significativos. A atenção psicossocial se volta para dar o suporte necessário para que ele esteja e participe de maneira ativa do mundo. Parte de um modelo presente em políticas públicas, a exemplo do que é desenvolvido nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), serviços de base comunitária que atuam a partir de uma rede de cuidados, com equipes multiprofissionais que trabalham para vencer o estigma e produzir a inclusão social.

Não é um esforço que cabe exclusivamente à comunidade médica. Vai desde a escola ter condições de receber e acolher um estudante com autismo até uma empresa contratar um funcionário com esquizofrenia. Abrange outra maneira de encarar e aceitar as diferenças, a partir de uma perspectiva que colabore para promover meios dignos para todos, sem distinção. Requer sermos mais solidários com as pessoas e suas dores, em vez de produtores desses sofrimentos.

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