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Thelma lembra provas que teve de vencer, antes do BBB, para ser a única negra da turma a se formar em medicina

Thelma Assis em depoimento a Ana Bardella De Universa

Uma panela, um prato, um copo e dois talheres.

Precisava dar um jeito de acomodar esses utensílios de cozinha junto das roupas e acessórios na minha única mala abarrotada de coisas.

Era um domingo de fevereiro de 2006, e meus pais rodavam pela nossa casa, no bairro do Limão, em São Paulo, enquanto ajudavam a preparar minha mudança. Desde que recebi a carta confirmando que tinha ganhado uma bolsa integral para o curso de medicina na PUC de Sorocaba, no interior do estado, minha vida virou de cabeça para baixo.

Foi graças ao esforço dos meus pais que cursei o ensino fundamental em uma escola particular. Minha mãe era funcionária pública. Meu pai trabalhava em uma gráfica. Do ensino médio para frente, eles não conseguiram mais bancar meus estudos e passei a frequentar um colégio público.

Depois, prestei um processo seletivo e consegui uma bolsa de 50% em um cursinho pré-vestibular. Sabia, desde pequena, que queria ser médica. No entanto, por ser um curso concorrido, não consegui entrar na faculdade na primeira tentativa. E nem na segunda.

Enquanto isso, além de me dedicar aos estudos, dava aulas de balé e fazia panfletagem para ajudar a pagar as mensalidades. Em casa, meu sonho era prioridade. Foi por isso que, na terceira tentativa, quando recebi a confirmação de que seria bolsista integral através do ProUni, comemoramos tanto. Na época, a mensalidade do curso custava cerca de R$ 2.700.

Destino: uma pensão de trabalhadoras

Precisei escolher uma acomodação que estivesse dentro do meu orçamento. Eu e minha mãe acabamos optando por uma pensão feminina próxima do campus.

Então, eu estava prestes a sair da capital. Quando o fim da tarde caiu, com a mala pronta, caminhei com meus pais até o ponto de ônibus e fomos de lotação para o terminal Barra Funda. Chorei muito no caminho. Por um lado, era a oportunidade de ingressar na profissão que eu tanto desejava. Por outro, estava com 21 anos e nunca tinha passado mais de cinco dias longe dos dois. Estava com o coração apertado.

Chegando ao terminal, tivemos que nos despedir. Nosso dinheiro não era suficiente para que eles me acompanhassem até outra cidade. Então, a partir dali, subi no ônibus e continuei meu caminho sozinha.

Só quando cheguei à rodoviária de Sorocaba foi que me dei conta do quanto a bagagem estava pesada: caminhei por 20 minutos carregando a mala pela alça, parando de vez em quando para recuperar o fôlego. Mas a adrenalina estava tão forte que não me incomodei.

Quando finalmente cheguei ao meu novo e temporário lar, conheci o espaço onde passaria as semanas seguintes. Não era uma acomodação voltada para estudantes, mas para mulheres que trabalhavam em fábricas nas redondezas. Meu quarto, estreito e simples, tinha duas camas e um armário pequeno para guardar a mala. A cozinha do lugar, dividida entre as outras moradoras, era bastante apertada. Como minha colega de quarto, uma senhora idosa, não estava lá, tive tempo de respirar fundo e deixar as coisas arrumadas antes de dormir.

Tinha esperado muito tempo por isso. Tentei pegar no sono, mas virei algumas vezes na cama antes de conseguir relaxar. Eu sabia que era aquela era minha única chance. Queria começar com toda a dedicação possível para ter bons resultados e valorizar minha bolsa de estudos.

Eu não cogitava, nem por um segundo, a possibilidade de falhar.

A história se repete

Assim que acordei, entrei na fila para tomar banho porque não queria me atrasar. O banheiro da pensão era compartilhado entre umas dez mulheres. Queria estar bonita, então escolhi uma das minhas roupas preferidas: calça jeans e blusa azul. Passei maquiagem e, como era de costume, alisei o cabelo com uma prancha. Ainda levaria oito anos até que eu assumisse meu cabelo da forma como ele é.

Fui andando até a faculdade, a 20 minutos da pensão. Chegando lá, seguindo as orientações, me reuni com um grupo de mais nove alunos e começamos a discutir o caso de um paciente.

Por causa da divisão das aulas em pequenos grupos, foi somente ao final da primeira semana que constatei um fato do qual já vinha desconfiando: eu era a única pessoa negra entre as cem da minha turma. Observando os corredores, notei que não passávamos de dez alunos negros no campus inteiro, que tinha mais dois cursos —um de biologia, o outro de enfermagem.

Quando você é negro, a sensação de entrar em um ambiente e perceber que é o único ali é recorrente. Eu, que já tinha feito aulas de balé clássico e passado dois anos no cursinho, não imaginei que agora que seria diferente. Só pensei, com certo desconforto, que mais uma vez a história se repetia.

Dois ônibus pra ir, dois pra voltar

Conforme as semanas passaram, senti a necessidade de sair da pensão. Não podia fazer barulho e nem deixar as luzes do quarto acesas à noite, em respeito à senhora com quem dividia o quarto. Preferia estudar na biblioteca da faculdade. Saía de lá quando ela já estava para fechar, por volta das 22h. Só voltava para a pensão para dormir.

Precisava, como os outros alunos, dividir um apartamento, para que pudesse ter um pouco mais de conforto. Mas não consegui fazer isso com as pessoas da minha sala. Quando surgia alguma vaga para dividir, era inviável pelo preço, que chegava ao triplo do dinheiro que podia gastar. Jamais conseguiria ir para um lugar chique.

Só concretizei meus planos quando me deparei com um anúncio em um mural, colocado ali por duas meninas, de outras faculdades, que buscavam alguém para o apartamento delas. Logo me mudei. Não era o ideal, mas o que cabia no bolso: pegava dois ônibus para ir até a faculdade e dois para voltar, o que me tomava duas horas do dia. Eu recebia do governo R$ 300 de bolsa e gastava R$ 250 para dividir um quarto. O restante dos gastos era custeado com esforço pelo meu pai.

E essa não era a única desvantagem em relação aos meus colegas. Os livros usados no curso eram caros e eu não podia comprar. Então precisava selecionar as páginas que pretendia usar e tirar xerox. Também por isso continuei frequentando a biblioteca exaustivamente.

Para ajudar na minha alimentação, meu pai comprava comidas não perecíveis e me dava aos fins de semana, quando conseguíamos nos encontrar. Nestes dias, eu cozinhava o suficiente para a semana inteira. Só alternava as marmitas com as idas a um restaurante Bom Prato, que tem preços mais acessíveis, com almoços a R$ 1.

O racismo te paralisa

Seis meses depois, a situação mudou. Me aproximei de três meninas da faculdade que moravam em um condomínio lindo, bem do lado do campus. Consegui ir para lá também, dividindo um dos quartos. Viramos melhores amigas.

Conforme a turbulência do primeiro ano se dissipou, minha vida ficou mais estável. Os colegas de faculdade, por exemplo, não eram racistas comigo. O único episódio de preconceito que vivi ali partiu de um professor: em uma das aulas, provavelmente no terceiro ano, ele disse que pessoas negras tinham mais aptidões para esportes do que para atividades intelectuais.

O racismo tem disso: ele chega de forma tão inesperada que paralisa. A gente demora até processar que está vivendo aquilo, ainda mais quando acontece em um ambiente importante, como a faculdade. Ali existia uma relação de hierarquia e de respeito da minha parte, então tive um bloqueio. Só consegui entender o que realmente aconteceu algumas horas depois.

Desistir? Não, obrigada

O ano mais conturbado da minha graduação foi o quinto. Eu estava encarando a rotina de uma residente de medicina quando meu pai descobriu um linfoma. Precisei ir para São Paulo às pressas algumas vezes para ajudar minha mãe nos cuidados com ele. Como filha única, existia uma espécie de dependência emocional dos meus pais sobre mim.

Além disso, ele precisou parar de trabalhar. E eu ainda não tinha uma fonte de renda, já que a faculdade demandava a minha presença em período integral. Ainda assim, não passou pela minha cabeça desistir. Só me permito abrir mão de algo quando estou convicta de que aquilo não é para mim. Se a desistência for me gerar frustração, então eu sigo até o fim.

Para contrabalancear a turbulência, tinha do meu lado o Denis, meu namorado e futuro marido, que tinha conhecido há menos de dois anos. Vendo minha situação, ele passou a me ajudar financeiramente. Foi graças a esse apoio que pude continuar estudando e consegui realizar meu sonho.

Finalmente, em 2012, chegou a hora da formatura. Mais uma vez, as coisas não seriam fáceis: queria muito participar da festa, mas não tinha dinheiro para pagar. Então trabalhei na comissão de alunos que organizava o evento para conseguir um desconto. Ainda assim, faltava uma parte do valor. Pedi à minha mãe que fizesse um empréstimo e garanti que pagaria assim que estivesse trabalhando.

Carreira, lágrimas, canudo

Foi um momento muito especial, que durou três dias. Tivemos um jantar em homenagem aos pais e professores, a colação de grau e o baile. Na hora de receber o diploma, me levantei para pegar o canudo com os olhos marejados e apontei para minha mãe, chorando, em um ato de gratidão. Foi graças a ela que nunca desisti de nenhum sonho. Ela, é claro, também se emocionou.

Toda a minha família participou da festa e foi divertidíssimo, porque eles nunca tinham comparecido a um evento do tipo. Fui a primeira pessoa da minha família a me formar em medicina.

Meu pai, que estava melhor após a primeira sessão de quimioterapia, aproveitou muito, assim como minha mãe. Foi uma noite inesquecível. Uma vitória tão importante quanto outra, que eu ainda não sabia que estava para chegar.

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