A vida dele dentro de mim

Silvia Poppovic perdeu o marido, seu melhor amigo, há dois meses. Chora todo dia, mas quer viver por ele

Luciana Bugni Colaboração para Universa, em São Paulo Julia Rodrigues/UOL

Marcelo descobriu que tinha leucemia em novembro de 2021. Fizemos um tratamento clínico que não deu certo: a ideia era segurar a leucemia para tentar prolongar a vida dele. Em junho de 2022, o médico disse que teríamos que tentar o transplante de medula óssea. Aos 77 anos, era um teste passar pelo procedimento, mas as condições físicas dele eram tão boas que a equipe médica deu o aval, e ele estava pronto para transplantar.

Começamos a buscar a medula compatível: das quatro filhas dele, duas já tiveram filhos, o que impede a doação, e uma tinha mais de 40 anos. A mais nova, Ana, minha filha com ele, tem 22 anos e era compatível. Foi uma grande alegria.

Passei dois meses dentro do quarto do hospital com o Marcelo após o transplante. De manhã, à tarde, à noite, não colocava a cara nem no corredor. Ele era muito comprometido com o tratamento, tinha uma resiliência incrível. Deu certo: houve a pega da medula.

Estava se recuperando em casa, mas a imunidade seguia baixa. Ele teve uma apendicite que acabou evoluindo para outros problemas respiratórios e renais, não aguentou e morreu [o médico Marcelo Bronstein, marido de Silvia, morreu em 25 de novembro de 2022].

"Ele foi intubado e me falou: 'Foi um prazer te conhecer'"

A primeira coisa que gosto de dizer é que o transplante de medula óssea é um procedimento muito delicado, mas tem grandes chances de sucesso. Conosco funcionou. O que o levou foram intercorrências que aconteceram depois de o processo ter dado certo.

Mas tudo isso foi muito frustrante. Foi tanto sofrimento, teve tanta dureza, foi tão complicado... Durante o tempo todo, Marcelo tinha controle da situação. Esteve lúcido sobre o que acontecia e envolvido com a própria recuperação. O que ele lutou não foi brincadeira [Silvia faz uma pausa, chorando]. Marcelo foi muito, muito forte. Ele gostava da vida. Viveu bem e sempre falava pra mim que nós tínhamos muita cumplicidade nesses 27 anos de relacionamento. Afirmava que há coisas piores que a morte. Uma delas é levar uma vida sem dignidade.

A gente nunca se consolou sobre o que acontece porque realmente achávamos que ele ia sobreviver, mas quando ele foi ser intubado, dessa última vez, me falou: "Olha, foi um prazer te conhecer". Ele falava essas coisas, como "você foi muito importante na minha vida". Mas eu dizia que nem precisava falar disso porque estaria melhor em breve.

"Eu escolho a vida"

Marcelo era um médico muito respeitado pelo trabalho que fazia. Tinha uma baita repercussão internacional, foi homenageado pelos quatro continentes, e eu não estou exagerando. Quando eu o conheci, já era essa figurona: eu tinha 40 anos e ele, aos 50, estava no auge. Ele tinha muitos interesses: era uma pessoa que gostava de medicina, era professor na USP [Universidade de São Paulo], gostava muito de música clássica, se aprofundava, ouvia todos os concertos... A gente viajava pelo mundo atrás de óperas.

Ele também estudava Segunda Guerra, então vimos muitos filmes juntos. Tivemos uma vida cheia de trocas. Esses dois quadros que estão na sala são do mesmo artista [estão na imagem no início desta reportagem]. Compramos antes de morar juntos. Sabíamos que um dia os quadros ficariam lado a lado. Ficou lindo, não ficou?

Depois que ele se foi, decidi: vou viver por ele e por mim. Marcelo está aqui dentro de mim completamente presente. Tenho um espaço faltante que é alimentado por lembranças boas.

Também por sofrimento. E muitas vezes com choro, com saudade. Com verdade.

Mas tenho uma expectativa de vida grande ainda. Eu escolho a vida.

A essa altura não posso perder a coisa mais importante, pela qual o Marcelo batalhou tanto: o prazer de viver.

"Nossa, que viuvez, hein?"

Depois de um mês resolvendo coisas práticas, fui viajar com minha filha. Teve gente que disse: "Nossa, que viuvez, hein?" Essas pessoas têm um preconceito tão grande... Elas não entenderam que vou ficar sem ele o resto da minha vida. Estão achando que é só por dois meses que vou viver o luto. O luto dura para sempre. Não tenho culpa nenhuma em relação à doença do Marcelo porque eu cuidei dele de todas as maneiras que sabia e podia. O que eu tenho é pena que ele foi embora, entendeu? Eu tenho muita pena.

Isso vai ficar a vida inteira dentro de mim: a minha relação com ele, o meu amor. Viver, profundamente, a presença que a ausência traz. É uma ausência gigante —um buraco, um enorme espaço que fica dentro de você. E isso fui ocupando com pequenas coisas.

Por exemplo, o meu buraco sangra quando, à noite, não tenho com que conversar sobre pequenas e grandes coisas. Desde o fato mais banal, rotineiro. O que nós vamos fazer hoje? Devo ficar nesse apartamento ou morar em outro lugar? São decisões que sempre tomei com ele, um fazendo contraponto ao outro.

Tudo isso é entrar em contato com o luto. A falta enorme que faz, a saudade gigante, a vontade de chorar. E eu choro. O grande desafio não é se reinventar, é se adaptar a uma nova vida sem o outro, com o outro dentro de você fazendo falta. Como trabalho isso para não se afogar?

Aprendi nesses dois meses da ausência dele que uma rede de apoio é fundamental: amigos, irmãos, parentes, as pessoas te ajudam cada um à sua maneira.

"Me sinto batendo os braços, como asas"

As mulheres podem ter um pouco de medo de se reconectar com o mundo sozinhas. Mas elas não estão sozinhas: você perdeu o marido, que era muito importante, mas tem filho, tem pai, tem irmão, tem amigos. O que não dá é para passar por tudo isso sem ninguém por perto.

Gosto da minha companhia, mas saí para almoçar com uma amiga ontem, aceitei o convite de outra para viajar. Não me dei uma faixa de autossuficiente que ia passar o aniversário sofrendo [Silvia fez aniversário no dia 25 de janeiro, quando estava na Europa]. Também não entro nessa de 'sou uma coitada'. Minha filha ficou aqui nesse período, mas mora no interior, onde faz faculdade. Ela vai viver a vida dela.

Quero viver bem, estar bonita, me vestir do jeito que gosto. Cada dia é muito precioso para a gente perder. Eu paro um pouquinho, choro um pouquinho e volto também. Se eu, com 68 anos, não tiver a sensibilidade e a maturidade para, com muita humildade, viver esse momento e aprender com ele, quando vou ter? Minha vida também está indo. Mas me sinto ainda batendo os braços, como se fossem asas. Sim, estou viva, mas como vou sobreviver?

"Quero honrar a memória dele"

Não tenho a ilusão de refazer a vida afetivamente. Nada disso. Hoje quero honrar a memória dele. Estou cuidando dele ainda, entendeu? Cuidando das coisas dele, das homenagens, vou ter que enfrentar o guarda-roupa, a papelada toda.

Estou em transição. A viuvez é se acomodar nesse papel. Você pode casar de novo ou se tornar uma mulher que não se vê como viúva porque já assume outro, pode voltar a ser solteira ou se encontrar nesse papel da viúva sofrida que se fecha para o mundo. Essa vivência é uma passagem que ainda não sei onde vai dar, no meu caso. Mas acho que está dando coisa boa porque tenho vitalidade.

Só faço questão de não me comprometer com melancolia porque eu tenho responsabilidades. Com minha filha e comigo.

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