Reconquistei a independência

Após quase morrer na estrada, a atriz Ludmila Dayer descobriu esclerose, mergulhou e emergiu transformada

Ludmila Dayer em depoimento a Adriana Negreiros, do UOL Pedro Curi/Divulgação

Em fevereiro de 2021, eu dirigia em uma rodovia em Los Angeles quando notei meus pés dormentes. Não sentia mais o pedal. Em questão de milésimos de segundos a dormência chegou às mãos e deixei de sentir, também, o volante.

Eu estava sozinha, a uma velocidade aproximada de 100 km/h, e não conseguia controlar o carro. Então me entreguei. "Vou morrer", pensei. "É isso. Vou bater o carro e morrer".

O sentimento era de total vulnerabilidade, desamparo e surpresa — afinal, aquilo veio do nada. Não conseguia entender por que meus pés e mãos estavam dormentes, o motivo de não ter controle sobre mais nada.

Então, de uma maneira que não sei explicar, consegui embicar o carro para a direita e parar no acostamento. Àquela altura, já podia sentir as mãos novamente. Aos prantos, telefonei para a minha mãe — assim como eu e meu marido, ela também mora em Los Angeles.

Nas pistas, os carros continuavam a trafegar em alta velocidade. O barulho dos motores e dos pneus dos veículos deslizando sobre o asfalto soava enlouquecedor. Com minha mãe do outro lado da linha, só chorava, chorava e chorava.

A sensação era de que nunca mais eu seria capaz de sair dali.

"Calma, filha. Eu posso ir ao seu encontro", minha mãe dizia, tentando me tirar daquele estado. Ao mesmo tempo em que chorava, eu rezava. Pouco a pouco, fui me acalmando e, depois de alguns minutos, pude retornar para a pista.

Quando finalmente cheguei em casa, saí do carro decidida a nunca mais dirigir.

A descoberta

Aquela não foi a minha primeira crise de pânico. Mas foi a primeira em que, por causa dela, minha vida correu risco.

Não que, antes, eu não sentisse que fosse morrer. Sentia, mas de um outro jeito. Os sintomas do pânico se confundem com os de um infartofalta de ar, taquicardia, pressão no peito. Eu os enfrentava de maneira mais intensa desde 2019.

Em 2020, outros sintomas somaram-se aos do pânico. Passei a ter perdas de memória, dificuldade de concentração, fadiga crônica. Também comecei a ter problemas na visão e dores musculares tão intensas que me tornei incapaz de subir escadas. Sofria dificuldades para andar e até para falar — as palavras não acompanhavam o pensamento.

Minhas limitações físicas e motoras foram se agravando rapidamente. Na época, estava envolvida com a edição do meu filme, o documentário "Eu", em que investigava justamente a minha saúde mental. Não havia como editar sem enxergar; decidi, então, parar de trabalhar e cuidar de mim.

Após uma série de exames, soube que tinha o vírus Epstein-Barr em estado crônico. Além de sintomas como cansaço e dores, o vírus provoca, também, ansiedade e pânico. Na sequência à descoberta do vírus, recebi outro diagnóstico, provavelmente relacionado ao primeiro: esclerose múltipla, o que explicava parte das minhas limitações físicas.

O tratamento

O diagnóstico não me assustou. A verdade é que, logo após saber do vírus, passei a estudar sobre o tema com afinco. Li uma porção de livros técnicos e logo aprendi sobre a possível relação entre a infecção e a esclerose — tanto assim que a sugestão para que examinássemos se eu tinha a doença partiu de mim, não dos médicos. Eu sabia, também, que o diagnóstico não era o fim do mundo, que o processo era reversível.

Os médicos me recomendaram um tratamento focado na alimentação. Até então, eu comia muita porcaria. Além disso, engolia na pressa, falando, não pensava que o alimento ia entrar dentro de mim e me fornecer nutrientes. Passei, então, a olhar para a comida com gratidão. Fiz um trabalho de conscientização alimentar, aprendi sobre nutrição e sobre o valor de cada alimento.

Como estava em um estágio inicial da doença, meu corpo respondeu bem ao tratamento. Foram seis meses me livrando de um estado inflamatório por meio da alimentação. Foi uma desintoxicação tão poderosa que meu corpo, por assim dizer, resetou. Fortaleci o sistema imunológico e ele parou de atacar.

Antes de receber o diagnóstico, quando ainda não atribuía uma causa aos meus sintomas, senti medo. Mas, ao entender contra o que eu estava lutando, a insegurança passou.

No meu processo de autoconhecimento, aprendi que tudo começa na mente. É preciso manter-se positiva para que o tratamento flua mais rápido, dê certo. Na luta contra a doença, só havia espaço, na minha mente e no meu corpo, para a cura. Foquei nisso. Sou obstinada em tudo o que faço.

A dor

Meu marido foi a pessoa mais importante para mim nesse período. Meu porto seguro. Ali, tive a maior confirmação do amor dele por mim. Aprendi sobre o poder da família e a importância das relações sinceras. Esse aprendizado fez com que eu mudasse minha vida por completo. Antes, o trabalho era minha prioridade. Hoje, a família vem em primeiro lugar.

Nunca havia tido senso de família. Na minha vida, essa imagem foi quebrada. Não tive, por exemplo, nenhuma convivência com o meu pai, enquanto crescia. Não temos uma relação difícil, porque não temos relação. Mas também aprendi que é preciso trabalhar inclusive, essa ausência de relação — aceitar que a ausência paterna, na minha trajetória, faz parte de quem sou. E processar essa falta para seguir adiante.

Isso não me impede de sentir uma imensa gratidão imensa por ele. Sem meus pais, eu não estaria aqui. Hoje sei que as pessoas dão o que têm para dar, e precisamos agradecer a elas por isso. Afinal, a pessoa está dando a você tudo o que tem.

Nos meses em que me voltei para mim e decidi não dividir o que estava vivendo —porque, afinal, estava confusa, precisando de recolhimento—, amigos me julgaram. Chamaram-me de egoísta. Naquela hora doeu, mas entendi o seguinte: o que pessoas falam sobre nós não nos define. É sobre elas.

A aceitação

Tenho dificuldade em lidar com redes sociais. Elas me geram ansiedade. No momento, estou ativa por causa da divulgação do filme "Eu", disponível na plataforma Aquarius. Mas, findo esse período, vou dar um tempo.

Essa questão das redes sociais me acompanha há tempos, todos os projetos da minha produtora são voltados à saúde mental. Fiz um curta nos Estados Unidos sobre detox digital. Quando se cresce da maneira como cresci, sob os holofotes, com expectativas depositadas sobre si, é fácil perder-se da própria essência. As redes sociais têm inúmeras vantagens, mas há nelas muita ilusão, imagens falsas, um glamour que não existe na vida real.

Meu cotidiano é simples. Vivo em um rancho, no meio da natureza. Passo o dia descalça, cuidando das plantas e dos cachorros que resgatei da rua. Se não tenho compromisso, passo semana sem fazer as unhas. A vaidade já me consumiu — agora, não mais. Não me levo mais tão a sério, não tento provar minhas conquistas, ou que estou certa.

A natureza me ensina muito sobre simplicidade. Gosto de observar o movimento do vento, as árvores dando frutos, os ninhos, os bichos que se alimentam de outros bichos, as cores das estações. A natureza é de uma engenharia perfeita. Se meu corpo faz parte da natureza, ele também vai funcionar perfeitamente.

A independência

No início de 2022, um grupo de amigos que eu não encontrava fazia tempo me convidou para jantar. Meu marido estava viajando. Eu queria vê-los. Mas o trajeto entre a minha casa e a deles incluía a autoestrada em Los Angeles onde, um ano antes, eu quase morri. Desde aquela ocasião, eu nunca mais havia pegado na direção.

Mas decidi ir. Dirigindo. Antes, certifiquei-me de que não voltaria tarde, para não enfrentar a autoestrada no escuro. No trecho de ida, telefonei para minha mãe. "Estou bem, estou conseguindo", eu disse.

O jantar foi maravilhoso. Mas o retorno foi mais tenso do que a ida. Decidi não colocar nenhuma música no carro, queria me concentrar totalmente na rodovia. Quilômetro após quilômetro, fui vencendo a jornada, dizendo a mim mesma que, no final, ia dar certo.

Quando desliguei a chave do carro, em casa, desabei. Veio-me à mente a lembrança do dia em que, recém-saída da adolescência, eu tirei a carta de motorista. Na ocasião, chorei de felicidade, celebrei a conquista da independência.

Naquela noite em Los Angeles, chorei —de alegria e alívio— pelo mesmo motivo.

Perto de completar 40 anos, eu havia reconquistado a independência perdida.

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