Maternidade na pele

Os desafios, as descobertas, as dores e as alegrias das mulheres que vivenciam a maternidade inter-racial

Júlia Flores De Universa

Quando Samara Felippo soube que a filha Alícia tinha sido chamada de "negrinha marrenta" por um grupo de adolescentes, correu em direção à menina "como uma leoa". "Me deu um nó no peito, fiquei atordoada, segurei os braços dela e perguntei se estava bem. Ela respondeu que sim, mas, no fundo, eu que estava mexida", relembra a atriz em conversa com Universa.

Na ocasião, Alícia estava defendendo um amiguinho de comentários maldosos e acabou sendo ofendida pelo grupo de jovens. "A primeira coisa que perguntei foi se ela tinha entendido o que acontecera. Ela disse: 'Sim, mamãe'. Isso me deu força para continuar; era importante ela saber identificar situações de racismo —de nada adiantaria passar a mão na cabeça e dizer que aquilo nunca mais se repetiria. É preciso nomear a violência e ensinar a criança a ser forte para combatê-la", pontua a atriz.

Samara é mãe biológica de duas crianças negras, Alícia, de 12 anos, e Lara, de 8, frutos do seu relacionamento com o jogador de basquete Leandrinho. Para ela —mulher branca, padrão, cisgênero, de classe média—, vivenciar uma situação de preconceito racial como a descrita acima estava fora de contexto até o início da maternidade. "Renasci com as minhas filhas. Saí da bolha de privilégios em que estava inserida e me tornei aliada de uma luta que devia ser de todos: a luta antirracista."

Para Samara, assim como para a maioria das mulheres que decidem ter filhos, a maternidade foi um divisor de águas em sua história. A diferença é que a parentalidade inter-racial é marcada por desafios e dores que, muitas vezes, não só dividem, como também mudam o curso da vida de muitas famílias.

Foi o que aconteceu com o casal Rita Damasceno e Roberta Tavares, que teve a vida transformada pela chegada de Diego, adotado aos 7 meses de vida. Ou com a atriz Giovanna Ewbank, mãe de Títi, Bless e Zyan, que "mudou completamente de percepção social" a partir da adoção de duas crianças do Maláui.

Isso sem falar de quando a inter-racialidade acontece entre minorias. É o caso da atriz Bruna Aiiso, filha de uma mulher negra e de pai descendente de japoneses.

Quais os caminhos traçados por essas famílias? E, especialmente, quais são os desafios vividos por essas mães e por seus filhos e filhas todos os dias?

Fotos: Bruna Bento Fotos: Bruna Bento

'Meu black é lindo!'

Rita Damasceno, 50 anos, atriz; e Roberta Tavares, 41, profissional do comércio exterior, são mães de Diego, 5

"Nós nos conhecemos há cerca de 20 anos, e a maternidade sempre foi um desejo nosso. Queríamos adotar uma criança e ficamos na fila por um ano e meio até o momento em que recebemos a notícia de que o Diego tinha chegado.

Durante o processo de adoção, procuramos o máximo de informação sobre as questões raciais. Estávamos preparadas para nos tornarmos mães de uma criança negra e esperávamos até mais de um filho [o que é comum no Brasil: irmãos na fila de adoção].

O Diego 'nasceu' para a gente aos sete meses. Apesar de toda a preparação, desde que ele entrou nas nossas vidas, tudo mudou.

Podemos enumerar algumas vezes em que estávamos no parque próximo à nossa casa e estranhos chegaram perguntando se ele era nosso filho. 'Sim', respondíamos. 'Mas de verdade? Da barriga?', insistiam.

Isso sem contar as situações em que fomos a shoppings e restaurantes frequentados pela classe média paulistana e nos tornamos o foco das atenções. Quantas vezes ele não era o único cliente negro no estabelecimento?

Na tentativa de furar nossa bolha de privilégio branco, procuramos uma escola que tivesse mais pessoas pretas, mas não adiantou. Ainda falta representatividade nesses espaços. O Diego é um dos únicos alunos negros do colégio. Mas decidimos nos aliar a uma liga antirracista para tentar reverter o cenário.

Nas paredes da nossa casa, espalhamos fotos e pôsteres de artistas e personagens negros, como Nelson Mandela, Pantera Negra, Gilberto Gil, entre outros. É importante que o Diego se veja representado e saiba que existem outras pessoas da cor dele para se inspirar

Além da representatividade, tivemos que nos atentar às questões de ordem física, como a diferença nos cuidados com a pele e com o cabelo. A pele dele resseca muito mais fácil do que a nossa, por isso sempre a hidratamos. Com relação ao cabelo, demorou para aprendermos como cuidar, que tipo de produto usar, qual corte fazer.

Mas, desde sempre, repetimos, quase como um mantra: 'Filho, seu cabelo é maravilhoso!'. 'Eu sei, meu black é lindo!', responde Diego, hoje com 5 anos.

Por causa de tantos questionamentos que recebemos, decidimos escrever um livro com a nossa história, para que Diego pudesse entender e exemplificar para os 'amiguinhos' a sua história. A obra se chama 'A Caça ao Tesouro ou Adoção, uma Escolha' e foi ilustrada por um amigo da família.

Nós somos um casal LGBT, mas essa não é nossa principal bandeira hoje. Por causa do nosso filho, entendemos que o antirracismo vem em primeiro lugar. Se a gente combater essa guerra, o resto é consequência. Lutamos nessa batalha contra o ódio com amor, porque as pessoas precisam reconhecer que a gente existe. Somos uma família e somos uma família amorosa. Nada incomoda mais um preconceituoso do que isso."

Fotos: Bruna Bento Fotos: Bruna Bento

Somos mulheres brancas, privilegiadas e, por mais que fôssemos simpáticas à causa, só pudemos entender como o racismo ainda atinge a sociedade quando nosso filho chegou.

Roberta Tavares, mãe de Diego

'Privilégios não vão proteger nossos filhos do racismo'

Giovanna Ewbank, de 35 anos, é atriz e mãe de Títi, de 8, Bless, de 7, e Zyan, de 1

"A Títi foi uma grande surpresa na minha vida e me fez mãe —mesmo eu achando que não queria e que não estava pronta para isso. O meu encontro com ela, em 2016, foi surreal. Quando aconteceu, não pensei em nada além do amor. Não me atentei às preocupações que deveria e iria ter a partir daquele momento. Foi literalmente amor à primeira vista. E nada mais.

Depois, percebi que precisaria ressignificar muitas coisas e também aprender muito mais do que eu imaginava existir. Seja um simples cuidar do cabelo crespo ou da pele negra —que tive que aprender do zero—, ou então viver a porrada que é o racismo e toda a sua estrutura.

Lembro até hoje quando comecei a procurar uma escola em que minha filha não fosse a única aluna preta, ou notar, ao entrar em um restaurante, que nenhum negro estava sentado à mesa. Essas percepções não existiam para mim antes da chegada da minha filha.

Sofro por isso, por não ter enxergado essa estrutura antes do amor pela Títi ter me aberto os olhos. É por isso que é tão importante discutir o racismo, porque com essa discussão, também de nós, brancos, é possível modificar e poupar dor e preconceitos.

Com Bless foi totalmente diferente. Nós planejamos tê-lo, queríamos muito encontrá-lo, estávamos sempre muito atentos aos sinais que a vida nos dava. E, em uma de nossas dezenas de viagens para o Maláui, aconteceu. Batemos os olhos nele e sentimos.

Eu me cerco de mulheres pretas e me coloco em um lugar de escuta e aprendizado para poder levar conhecimento aos meus filhos, mas, principalmente, para a minha filha, que hoje tem referências de mulheres pretas maravilhosas!

Se você perguntar quem a Títi quer ser no faz de conta, ela vai responder: 'a Iza'. Ou vai te mostrar tiktokers negras, ou vai citar a Dolores, do filme 'Encanto'. É lindo ver o orgulho que ela tem de ser preta, de amar a sua cor e de se reconhecer.

Falamos o tempo todo sobre preconceito, em todas as suas formas. Lemos livros que mostram como o racismo acontece na escola, nos grupos de amigos. O tema já é algo que eles conhecem por meio das histórias.

No entanto, neste ano, falamos mais especificamente sobre o racismo na vida deles. O Bless é mais questionador e já perguntou por que as pessoas têm cores diferentes. A Títi sempre teve muito orgulho e amor pela sua cor, questiona menos.

O racismo está ao lado, e eles já foram vítimas na internet. É preciso que falemos dele. Espero que eles estejam mais preparados e orgulhosos de quem são e de suas origens quando isso acontecer diretamente com eles, porque vai acontecer. Nossos privilégios não vão proteger nossos filhos do racismo.

Eu e Bruno [Gagliasso, marido de Giovanna e pai das crianças] damos nossas vidas para que estejam fortes e empoderados nesse momento. E amor. Muito amor, porque o amor é também sobre acolhimento."

Eu, como mulher branca, provavelmente não vou conseguir suprir todas as demandas emocionais da minha filha, mas me preparo diariamente para suprir todas as que estiverem ao meu alcance.

Giovanna Ewbank, mãe de Títi, Bless e Zyan

Fotos: Bruna Bento Fotos: Bruna Bento

'Perguntavam se minha mãe era minha babá'

Bruna Aiiso, de 35 anos, atriz e filha de Eliana, 62, também atriz

"O meu caso conta uma história diferente de parentalidade inter-racial: minha mãe é uma mulher negra que se casou com um descendente de japonês.

Me lembro de, quando criança, viver algumas situações de racismo. Caso a gente entrasse no mercado, por exemplo, todas as atenções se viravam para ela. Na rua, perguntavam se ela era minha babá ou se trabalhava para a minha família. Olhavam com estranhamento no momento em que ela dizia ser minha mãe biológica.

Recentemente, passamos por uma situação de racismo. Fui convidada para participar de uma ação de Dia das Mães de uma marca americana de cosméticos. Quando descobriram que eu era filha de uma mulher negra, o convite foi desfeito.

Acho que a sociedade avançou bastante na discussão das pautas identitárias —o que fez, inclusive, que eu me visse como uma mulher amarela. Mas ainda há um caminho a trilhar.

Eu, hoje, ao passo que tento revisitar minha cultura e ancestralidade asiática, busco discutir o racismo com a minha mãe. Na infância, nunca sofri preconceito por ser quem sou, até porque a criança miscigenada é vista como 'fofa'. Mas vivi de perto o que ela passou e como reagiu, sempre com orgulho de sua cor e alheia às críticas.

Lembro que tínhamos uma casa de férias no interior de São Paulo, e os nossos vizinhos demoraram para entender que minha mãe era a dona da propriedade. Sempre questionavam se ela era a empregada doméstica responsável pelo local. Ela revirava o olho em resposta.

Imagino que, se eu fosse negra, minha criação seria diferente. Precisaria ter sido ensinada sobre como reagir caso um policial me abordasse na rua, como lidar com racismo, entre outras coisas. Tenho consciência dos meus privilégios e, mesmo que eu e minha mãe não sejamos parecidas fisicamente, foi da dona Eliana que herdei a força e a coragem de lutar por ser quem eu sou."

Fotos: Bruna Bento Fotos: Bruna Bento

Mãe de 'japoiana'

Eliana, de 62 anos, mãe de Bruna Aiiso

"Eu ficava constrangida pela forma como as pessoas abordavam o fato de ela ser asiática e eu, preta. Perguntavam se era eu que cuidava dela, ou onde eu tinha roubado aquela criança... E por aí vai.

A Bruna é fruto de uma união que terminou. Quando eu tinha 26 anos, eu e o pai dela, Tino Aiiso, nos casamos. Ele é descendente de asiático e já era um choque para a sociedade, naquela época, lidar com um casal inter-racial —para as nossas famílias, pelo contrário, nunca houve problemas.

Quando engravidei, aos 28, fiquei curiosa para saber como a Bruna seria: se ia puxar mais para o pai ou para mim. No momento em que ela nasceu, com cabelo arrepiado e bumbum roxo, não tivemos dúvidas de com quem ela se pareceria.

Costumo dizer que ela é 'japoiana', a mistura de japonesa com baiana, e que come sashimi com farinha. Nunca tive problemas com a criação e com os cuidados que ela necessitava enquanto criança asiática. O instinto materno sempre falou mais alto e fui me virando.

Eu acho a Bruna linda e sei que as características que ela herdou de mim não estão na aparência, mas no jeito; ela é tão batalhadora quanto eu."

@fotosdamandy @fotosdamandy

Ser uma mãe antirracista

Samara Felippo, de 43 anos, atriz e mãe de Alícia, de 12, e Lara, de 8

"Mesmo sendo ex-mulher de um homem negro, o Leandrinho [jogador de basquete e pai das filhas de Samara), a primeira vez que me deparei com o racismo foi quando a Alícia, então com 7 anos, disse que queria alisar o cabelo porque todas as amiguinhas dela tinham fios lisos. Aquilo me deixou triste, afinal, o black dela é maravilhoso.

Foi quando nos demos conta de que o mercado de cosméticos não atende às pessoas pretas. Decidimos criar um canal no YouTube para abordar o assunto, e foi assim que surgiu o Muito Além dos Cachos, um espaço em que eu, Alícia e Lara falávamos sobre beleza negra.

O mercado e a sociedade não se preocupam com o público negro. Lembro que, quando tentei comprar toucas de natação para as minhas filhas, não encontrei.

Às vezes, quando elas estão irritadas, me perguntam por que não têm o cabelo liso como o meu. Daí, para tentar mudar a cabeça delas, mostro algumas atrizes, filósofas, médicas, cientistas e mulheres negras bem-sucedidas para que se inspirem.

Eu, enquanto mulher branca, podia ter ficado no meu lugar de conforto. Antes, eu ficava. Apressava as meninas para arrumarem o cabelo logo, não procurava os produtos certos, entre outras coisas. Mas decidi sair da bolha branca hegemônica.

Hoje, busco circular em um meio menos padrão —o que ainda é difícil, principalmente pelas questões socioeconômicas do Brasil. Quando morávamos no Rio de Janeiro, elas estudavam em uma escola que só tinha alunos negros. Hoje, em São Paulo, busquei um colégio diverso.

Trago todas as pautas de um jeito natural. Minha função é dizer que, sim, infelizmente elas vão passar por situações de racismo, só que elas precisam ser fortes para entender que o problema não está nelas, pelo contrário.

A educação antirracista tem que vir de casa, e meu papel é enaltecer a beleza da mulher negra.

A maternidade foi algo que mexeu tanto comigo que decidi criar uma peça de teatro sobre o tema. Atualmente, estou em cartaz com 'Mulheres que Nascem com os Filhos'. Sem dúvida, ser mãe de duas crianças negras me fez renascer e abrir os olhos para um mundo em que pude enxergar a dor do outro.

Gostaria que muitas mulheres não precisassem da maternidade para entender o machismo e que a gente não precisasse ter filhos negros para nos tornarmos aliados da luta antirracista."

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