Elas são mães e prostitutas

Pela lei, trabalhar fazendo sexo é um ofício informal como outros, mas a Justiça nem sempre entende assim

Luiza Souto Colaboração para o UOL, no Rio

A prostituição não é crime no Brasil. Consta na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), criada pelo Ministério do Trabalho, e só é considerada ilegal quando existe exploração sexual.

Aos olhos da lei, a profissão funciona como um trabalho informal como qualquer outro. Aos da sociedade, é diferente. Ainda há uma pesada carga de estigmas.

Mães prostitutas precisam lutar na Justiça para manter a guarda dos filhos, recebendo sentenças de teor machista e preconceituoso.

Foi o que aconteceu com a paraibana Fátima Medeiros, que viveu 30 dos seus 57 anos na prostituição. Ela diz ter perdido a guarda da filha caçula por causa disso.

A juíza ainda sugeriu que eu mudasse de profissão. Isso foi devastador. Tanto que minha filha foi diagnosticada com transtorno bipolar. E, quando completou 18 anos, o próprio pai a entregou para mim, porque não aguentava vê-la chorando.

Fátima em entrevista a Universa

Fátima afirma que sempre gostou de trabalhar com sexo, pois lhe permitia horários flexíveis, uma fonte de renda rápida e mais lucrativa do que o salário que recebia na indústria têxtil.

Assim conseguiu sustentar as duas filhas, hoje uma designer de sobrancelhas de 39 anos e uma analista de mídia de 29, ambas frutos de relacionamento com antigos namorados.

Mas, por sete anos, ela teve de visitar a caçula sob supervisão de assistentes sociais. Até os 8 anos da menina, ela dividia a guarda com o ex-companheiro.

Fátima não quis mais que a criança ficasse com o pai ao saber que a madrasta sofria violência doméstica.

O pai então entrou com uma ação afirmando que Fátima não era adequada para criar a filha devido à profissão. E ele ganhou na Justiça.

O Conselho Tutelar entregou a criança ao pai durante o processo, para investigar possíveis riscos. Fátima só podia vê-la sob vigilância.

Profissão de prostituta é evidenciada

O caso de Fátima não é isolado. Em 2020, a Terceira Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu manter uma menina de 11 anos em uma instituição do Rio Grande do Sul pelo fato de a situação dos pais lhe oferecer risco.

O pai é descrito na sentença como um usuário de drogas e uma pessoa desequilibrada. A mãe, como alguém que poderia oferecer risco à integridade da menina. Um dos motivos seria seu envolvimento com prostituição.

"Em nenhum outro processo dessa natureza a ocupação da pessoa é usada para justificar essas mesmas decisões", diz a advogada Mariana Régis, especializada em direito da família pela Ucsal (Universidade Católica do Salvador).

Ela frisa que não há previsão jurídica que tire a guarda da criança de uma mãe que escolheu ser prostituta. A exceção são casos de negligência, que nada têm a ver com a profissão em si. Mas, na prática, o risco de isso acontecer é grande.

O Código Civil brasileiro estabelece que o juiz tem plenos poderes para qualificar condutas maternas como motivo grave que atentam contra o bem dos filhos e decretar a unilateralidade da guarda.

A indicação de que essas mães são prostitutas não é citada por acaso. A disputa por guarda é uma disputa de imagem em uma sociedade machista, baseada em moral cristã que julga mulheres que trabalham com sexo para considerá-las inaptas para o exercício da guarda.

Mariana Régis, advogada

Informalidade

O Brasil tem mais de 11 milhões de mulheres criando filhos sozinhas, segundo uma pesquisa recente Fundação Getúlio Vargas. Os números mostram que 72,4% delas não contam com uma rede de apoio e 45% não têm carteira assinada.

Estão nessa situação de informalidade a paraibana Pam Winston, 28, a paulistana Hadassa, 38, e a maranhense Luza Maria Silva, 51. Todas elas escolheram ser prostitutas para dar uma vida melhor aos filhos.

Luza tinha 12 anos quando saiu do Maranhão para João Pessoa para estudar. Mas aos 15, foi convidada por uma vizinha para trabalhar num cabaré. Com a quantidade de dinheiro que ganhou logo na primeira noite, viu que era ali onde queria ficar.

Engravidou aos 17 da primeira paixão. Ao ter a criança, saiu da prostituição e passou a atuar como doméstica, numa tentativa de seguir com a família dita tradicional. Mas o relacionamento não deu certo e ela escolheu voltar para o trabalho sexual.

Ela teve mais três filhos, e os quatro puderam estudar, concluir faculdade e realizar sonhos. Luza se formou em ciências contábeis em 2018 na mesma faculdade onde o terceiro filho estudou administração.

"Colamos grau juntos", orgulha-se ela, que é sócia-fundadora da Apros-PB (Associação das Prostitutas da Paraíba).

Os quatro filhos são de pais diferentes. Sem rede de apoio, Luza pagou babá e creche para ter onde deixar as crianças no horário de trabalho e, nas horas vagas, levava a família à praia, ao parque e a festas de criança. "Como qualquer outra mãe solo", ela diz.

"Mesmo com a faculdade, nunca quis trocar de profissão, porque se fosse trabalhar em outro lugar para ganhar um salário mínimo não teria conseguido criar meus filhos com conforto."

As crianças falavam que eu não podia brincar porque era filha da prostituta, mas isso nunca me afetou e sempre apoiei minha mãe. Tanto que se minha filha, hoje com 11 anos, quiser seguir por esse caminho quando crescer, a única coisa que poderei fazer é apoiar.

A jogadora de futebol Kaith Louise da Silva, 27, caçula de Luza

"Meu lado materno não tem nada a ver com a profissão"

Moradora do Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, Pam Winston, 28, também diz apoiar a filha, de 10, caso queira seguir os seus passos.

A paraibana conta que cresceu com o pai e a madrasta sob uma educação rígida. Estudiosa, conquistou uma vaga em história na Universidade Federal da Paraíba, mas o pai, formado em letras, não a deixou estudar longe de casa.

Ela tentou emprego na capital João Pessoa, mas sem oportunidade, aos 18, mudou-se para a casa da mãe, na Maré.

Trabalhou como estoquista em supermercado e analista de cartão de crédito, ganhando salário mínimo, até ver anúncio num jornal de uma agência de modelos precisando de acompanhantes.

"Sabia que era putaria, e fui testar com uma amiga." E ela gostou.

Logo depois engravidou de um vizinho, que não era cliente, mas sabia de sua profissão. Continuou atendendo por quatro meses, enquanto morou com o ex, mas resolveu parar.

Após o nascimento da criança, atuou como cuidadora, diarista, babá. Separada e com o pai da menina ausente, decidiu voltar para a prostituição.

Não senti remorso por voltar depois que tive filho. Meu lado materno não tem nada a ver com a profissão. Trabalho normalmente. Tenho que estender a roupa, fazer comida, fazer trabalho de escola da minha filha. É uma rotina comum.

Pam, que deixa a filha na casa da avó paterna quando está trabalhando

"Não vendemos o corpo. Vendemos nosso tempo"

A história se repete na casa de Hadassa, que mora só com o filho, de 9, em Perus, zona norte de São Paulo. Hoje ela divide o tempo entre atender os clientes —online ou em hotel— e ir ao parque com a criança.

"A gente passa muito tempo juntos. Tem semana que não trabalho para ficar com ele, e saímos bastante. Assim consigo administrar o tempo. Levo na escola, ao futebol, ao karatê. Acho que proporciono uma vida melhor para meu filho."

Foi em 2018 que Hadassa respondeu a um anúncio no jornal para trabalhar numa boate. Estava desempregada, com o casamento balançado e contas atrasadas. Falou para o companheiro na época que ia trabalhar num bar, e foi para a boate sem remorso.

Logo depois veio a separação e o sumiço do ex, que nem sequer paga a pensão do filho. Diferentemente dos outros casos, ela até hoje não contou para o pai da criança sua verdadeira fonte de renda. Só amigas próximas conhecem sua história.

Pessoas falam que nos vendemos. Respondo que a gente não vende o corpo, até porque volta inteira. Vendemos o nosso tempo como qualquer trabalhador. É mais uma mercadoria dentro do capitalismo, como todos são.

Hadassa

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