A noite antes do fim

Como quatro mulheres passaram as últimas horas em um prédio ocupado antes de serem despejadas no Rio

Fabiana Batista Colaboração para Universa Fabiana Batista/UOL

Às 22h da última quarta-feira, a rua Miguel Couto, na região central do Rio, estava movimentada: as crianças brincavam enquanto os adultos tiraram uma série de objetos dos andares do prédio na altura do número 113. O som alto tocava "Capítulo 4, Versículo 3". A música não vinha de um Opala marrom, mas se a voz de Mano Brown dizia que fazia frio em SP, naquele prédio também não havia expectativa de aconchego térmico.

Priscila Torres, 32, é uma das muitas mulheres que se preparavam para deixar o local. Menos de 12 horas mais tarde, aquele não seria mais o endereço das 16 famílias ali. Priscila já conhecia aquela sensação -ou, talvez, seja uma das sensações que melhor conhece. Ela vive em situação de rua desde a infância e, durante a pandemia, insiste em buscar um abrigo para se proteger um pouco mais.

"Para sobreviver, pulei de ocupação em ocupação, dependi de doação de alimentos e kits de higiene e não consegui trabalhar", conta ela, que vende bala na porta de banco. Há um mês e meio, depois de deixar o local em que estava por ordem do Tribunal de Justiça do estado, ela desfruta de suas últimas horas na rua Miguel Couto, pertinho da Igreja da Candelária. Em breve chegará a hora de pular de novo -ela só não sabe, naquele momento, para onde.

Nos últimos 30 anos de sua vida, a rua e os abrigos infantis foram sua casa. Ela não vê diferença entre um e outro: "No abrigo eu também tive dificuldades, porque assim como na rua você precisa ser esperto para sobreviver". Abandonada pela mãe, ela conta que já acordou sendo aliciada por homens e passou muita fome.

Mãe de dez filhos, Priscila (na foto abaixo) explica que o número de crianças é fruto da falta de oportunidade de ir para a escola. Atualmente, todos eles moram com o pai, em Nova Iguaçu (RJ), e o auxílio do governo durante a pandemia tem os filhos como destino. "Minha forma de contribuir é entregar tudo para eles."

A reportagem de Universa acompanhou a última noite dos moradores da ocupação da rua Miguel Couto, que passaram parte da madrugada tirando seus pertences do prédio, depois que o Tribunal de Justiça do estado alertou o grupo sobre a ordem de reintegração de posse prevista para a manhã de quinta.

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Sem emprego e sem sono

Quando a reportagem chegou na ocupação -termo adotado pelos sem-teto para se referir à invasão de prédios públicos para moradia própria-, Glaucia Ferreira, 45, coordenava a mudança dos móveis e, junto a outras moradoras, empilhava pequenos objetos em um triciclo para levar a um prédio próximo. Ela foi a última a dormir, às 3h30 da madrugada. "Quem consegue dormir com um despejo batendo à sua porta?", disse na manhã seguinte, enquanto esperava o policiamento.

Diferentemente das outras mulheres ali, Glaucia (retratada nesta reportagem com blusa listrada) não teve uma infância de abandono e dificuldades. Moradora de Laranjeiras (na zona sul), já trabalhou como vendedora, recepcionista e em uma associação que ajuda jovens de favelas no Rio. "O mercado de trabalho ficou cada vez mais difícil, e em 2013 eu me vi em situação de rua. Quando conheci meu marido, nós fomos morar em uma casa, mas a instabilidade dificultou a nossa convivência e eu fui violentada por ele."

A vendedora relatou que passou sete anos entre idas e vindas do emprego formal para o informal, mas, na pandemia, ficou definitivamente desempregada e não conseguiu mais pagar o aluguel. "Hoje, vendo picolés na rua, e prefiro comer do que pagar um lugar para dormir."

Ela conta que teve sua mercadoria apreendida pela Secretaria Municipal de Ordem Pública e se endividou com o fornecedor porque não tinha como pagar o que perdeu.

"Vamos fazer as contas: eu vendo o meu picolé por R$ 2 e ele custa para mim R$ 1,30. Do total que vendo, R$ 10 são para comprar o gelo seco. Se eu vender cem por dia, volto para casa com R$ 60. Com esse dinheiro você consegue pagar o aluguel, as contas e se alimentar? Eu não consegui."

Depois do desabafo, Glaucia sorri e diz que aquela ocupação foi um espaço de esperança, porque durante os primeiros seis meses de pandemia morou na rua e se submeteu à violência do então marido.

Frustrada com o despejo, ela debochou do pedido para que as pessoas fiquem em casa para minimizar o risco de contágio pelo coronavírus: "O que eu mais escuto por aí é que temos que ficar em casa, que estar na rua é irresponsável. Mas em que casa eu vou ficar? As pessoas me perguntam por que eu não vou para um abrigo. Se você faz esse tipo de questionamento, é porque nunca passou perto de um. Além das brigas e abusos sexuais que as mulheres sofrem lá dentro, falta limpeza e higiene".

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Despejo como violência

O prédio ocupado até a última quinta-feira tem três andares: um salão amplo no térreo, onde ficava o banheiro e a cozinha coletiva, e os dois andares de moradia divididos por paredes de tapumes. Na última noite antes do fim daquela ocupação, as poucas pessoas que ainda estavam no local -seis mulheres, cinco crianças, dois jovens e um idoso- dormiram no térreo. A reportagem foi bem-acolhida e e recebeu um colchão para cochilar.

Com a voz trêmula e pausas demoradas na fala, Michele Cruz, 34, contou que sua infância não foi fácil. Na adolescência, engravidou e perdeu a casa em um desabamento, e, sem ter com quem contar, foi morar na rua com o filho. "Há anos eu vivo essa instabilidade. Quando sou empregada em um lugar com carteira assinada, volto a morar de aluguel, mas não demora muito e eu sou demitida, e vou para a rua de novo."

Nos últimos 19 anos, a ambulante já morou de aluguel e em ocupações e voltou para as ruas incansáveis vezes. No início deste ano, esteve na ocupação no prédio da Cinelândia e na Casa Cruz, a mesma ocupada por Priscila e outras famílias que estavam ali na Miguel Couto.

O tremor na voz era em parte fruto do medo de que em poucas horas se repetisse o que ela tinha vivido algumas semanas antes nessa ocupação anterior: um despejo violento e traumático. "Eram 5h da manhã e minha irmã mandou uma mensagem avisando que os polícias estavam na praça. Eu olhei pela janela, vi policiais do Choque de Ordem [operação criada há dois anos pela Secretaria de Ordem Pública], e fiquei com medo. Depois de muito bate boca, abrimos o portão. O conselho tutelar foi até lá para nos tirar as crianças, e se não fossem algumas pessoas mais instruídas do que nós em nossa defesa, agora eu não estaria com a minha filha."

Ela lembra da sensação de medo quando soube que seria mais uma vez despejada. "A mesma oficial de Justiça [do despejo da Casa Cruz] veio aqui no dia 15 de outubro, e nos comunicou sobre a ordem de reintegração para o dia 22".
Michele (que ilustra a imagem de capa deste texto) conta que a reunião naquele dia entre os moradores foi muito triste. "Todos nós choramos, porque temos medo de voltar para a rua. O abrigo não é uma alternativa saudável, e lá eles vão me separar da minha filha. Aos 16 fui para um abrigo infantil, e vi muita covardia, não quero isso para os meus filhos."

Ela, então, para de falar e chora. Em seguida, pede desculpas: "Estou na luta para ter onde morar desde a gravidez do meu primeiro filho. Em 2010, me inscrevi no 'Minha Casa, Minha Vida' [programa habitacional criado em 2009], e até hoje não fui contemplada. A gente não está aqui por que quer".

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Solidariedade e cumplicidade

Danielle Cruz, 32, tem duas filhas, e é feirante há cinco anos em uma barraca de frutas na praça Tiradentes, na região central. Na manhã de quinta ela acordou às 5h30, tomou um banho improvisado e saiu para trabalhar: "Eu volto às 9h caso aconteça alguma violência", gritou ao avistar a reportagem já do outro lado da rua. Na noite anterior, contou sobre sua vida e por que decidiu morar em uma ocupação. A Casa Cruz foi a sua primeira estadia em um prédio ocupado. Antes disso morou durante 16 anos com o ex-marido em uma casa no bairro do Engenho da Rainha, no Rio.

Danielle (retratada aqui em imagem de máscara preta com bolinhas) também temia sofrer violência nas horas seguintes à conversa com Universa. "O despejo [da Casa Cruz] foi muito violento, a polícia começou a bater boca com os moradores, nos acusaram de ladrões, e pediram para vasculhar nossa mercadoria, a maioria trabalha como ambulante. Fomos muito maltratados", diz, para em seguida chorar e se manter em silêncio por alguns minutos. "Imagine você morar há nove meses em um lugar e de repente se ver sendo despejada."

No bairro do Engenho da Rainha, Danielle morava com a filha e o então marido em uma casa com dois quartos, sala e cozinha, mas depois da separação preferiu deixar a filha com a família do pai. Explicou que na barraca onde trabalha recebe R$ 150 por semana. "R$ 100 para os cuidados da minha filha e os outros R$ 50 para mim" -ela fala em dinheiro para mostrar que na conta dela também é preciso escolher entre se alimentar ou pagar o aluguel.

"Aqui no Centro também me alimento das doações da carreata [carros de voluntários que distribuem quentinhas para as pessoas em situação de rua]". Na noite em que a reportagem dormiu na ocupação, a "carreata" passou às 23h pela avenida Presidente Vargas, ali ao lado, e todos os moradores foram até lá. A expectativa para saber o que vinha dentro da marmita de alumínio tomava conta dos moradores, e, ao abri-la, o que um não gostava ia para o prato do outro.

Durante a conversa, Danielle lembra que, "nestes meses todos de ocupação nos tornamos uma família, havia uma cozinha coletiva onde as mulheres cozinhavam e os homens limpavam. Além disso, quando necessário, também cuidamos dos filhos das mulheres que precisam trabalhar, nem mesmo com a minha família de sangue eu tenho essa cumplicidade".

Ao ouvir a pergunta sobre o que vem depois da noite do despejo, não há resposta. Ela tenta: "O sentimento para mais um despejo é de frustração. Sigo torcendo para que eu tenha um futuro certo com a minha filha. Não tenho onde morar, mas, até que eu tenha forças, vou continuar nessa luta".

Fabiana Batista/UOL Fabiana Batista/UOL
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Como acordar sem ter teto

A ocupação só fica em silêncio depois das 3h30 da manhã. Quem está acordado ouve o vaivém de um ventilador compartilhado entre as pessoas que dormem. Mas a calmaria dura pouco. Às 5h30 um despertador é seguido pela a tosse seca de um homem e os resmungos das crianças. Danielle foi a primeira a sair, mas antes dela chegou um casal que já não dormia mais ali e foi buscar o restante de seus pertences. O clima é de apreensão.

Na rua, o silêncio e o vazio comum nas madrugadas do entorno da avenida Presidente Vargas vão sendo substituídos por carros e buzinas. Poucas horas antes da polícia aparecer, algumas pessoas chegaram para dar apoio às famílias. "Depois do que houve na Casa Cruz nós decidimos vir logo de manhã para que eles não fiquem sozinhos", explica um senhor sem querer se identificar.

A polícia chega às 8h e fica na esquina. A ocupação já está quase vazia. Alguns colchões e pequenos móveis ficaram na calçada, e uma moradora diz que uma kombi levaria o que sobrou para outro lugar. Ao ser questionada sobre o destino, ela sorri e diz que não pode dizer. Essa decisão havia sido tomada durante a noite anterior, numa reunião de moradores na qual a reportagem foi delicadamente barrada. A assistência social chega às 9h e oferece o abrigo.

Uma advogada que estava em defesa dos moradores conversa com a assistência social e o oficial de justiça, enquanto ao menos cinco policiais e três apoiadores entram na ocupação para fazer a última vistoria como parte da reintegração de posse. Em protesto, as famílias gritam da calçada "queremos um lugar para morar", mas não recebem resposta da polícia, da advogada ou da assistência social.

Por volta das 10h, o prédio da rua Miguel Couto, 113, é fechado e um carro da polícia passa a fazer plantão no portão. O novo endereço das famílias ainda é incerto, mas o meio de moradia não: "Enquanto houver prédios abandonados na cidade e pessoas sem casa, haverá ocupação, queira o poder público ou não".

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A lei, a pandemia e a disputa entre Poderes

Contrariando a Lei 2.022/20 -conhecida como Lei do Despejo Zero-, que suspendeu, até o término da pandemia de Covid-19, os mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro determinou o despejo das três ocupações citadas nesta reportagem. Na decisão, o argumento para autorizar a retirada das famílias é de que a Alerj extrapolou sua competência, legislando sobre prerrogativa exclusiva da União e violando o princípio de separação dos poderes.

"A determinação de suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse, por meio da Lei Estadual nº 9020/20, limita indevidamente o exercício da atividade jurisdicional, função esta constitucionalmente atribuída ao Poder Judiciário. A restrição supramencionada representa verdadeira ofensa à separação dos poderes e inafastabilidade da jurisdição", diz trecho da nota enviada pelo TJ.

E recusa o momento atual como justificativa para vetar despejos. "Ademais, a pandemia de Covid-19 atinge a toda a população, seja no âmbito sanitário, seja no âmbito financeiro. Cabe ao Poder Público a adoção de medidas que garantam o direito à moradia e à saúde dos ocupantes a serem desalojados. A manutenção dos esbulhadores no imóvel representa clara transferência desse encargo ao autor, que já vem sendo onerado pela ilícita ocupação de seu bem. Pelo exposto, REJEITO o pedido de suspensão da liminar de reintegração de posse."

Procurado por Universa, o tribunal afirmou em nota que o processo de remoção ocorreu de "forma pacífica e tranquila" e que os donos estavam exercendo a posse do imóvel, ao colocá-lo para aluguel e quitando o IPTU. O TJ também alerta para o risco de moradia no local: "Na sua decisão, a juíza destacou que o imóvel apresenta insalubridade extrema e risco de incêndio em razão de instalações elétricas irregulares", disse a instituição em nota. A reportagem também questionou quantas ordens de reintegração de posse foram emitidas na capital fluminense desde o início da pandemia, mas não obteve resposta.

Segundo o registro em cartório, o imóvel foi construído no início dos anos 70 e hoje pertence à família Vazquez. Da última atualização da matrícula, feita em 2014, consta venda entre familiares de 20% do imóvel por R$ 30 mil (R$ 49 mil em valores corrigidos pela inflação).

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