90 dias abalaram o meu mundo

Cinco mulheres, três meses de isolamento. Como as vidas delas foram sacudidas pela quarentena

Camila Brandalise De Universa

"Estamos em um momento do confinamento como se fosse o de uma viagem longa em que perguntamos: 'Falta muito para chegar?', para saber como administrar nosso fôlego e ir até o fim", afirma o psicanalista Christian Dunker.

A quarentena imposta pela pandemia da covid-19 começou, no estado de São Paulo, no dia 24 de março. Ou seja, oficialmente, o calendário marca 90 dias de isolamento neste domingo (21). Outras regiões do país decretaram o confinamento social na mesma época. Noventa dias.

Ainda que a quarentena esteja sendo relaxada em muitos estados, muita gente está longe de relaxar. "Estamos no momento de ver se conseguimos continuar, se damos conta. E há alguns elementos desfavoráveis. Um deles é que não vemos o fim. Por isso, alguns simplesmente decretaram o fim da quarentena."

Dunker, autor do recém-lançado "A Arte da Quarentena Para Principiantes" (editora Boitempo), ressalta que, para as mulheres, o desafio é ainda maior. "Há uma carga mental jogada em cima delas, principalmente pelo fato de a quarentena ser realizada em casa, já que existe uma tendência a empurrar para elas a tarefa de reconstruir o cotidiano. Para as que são mães, dificulta ainda mais."

Nesta reportagem, cinco mulheres contam como suas vidas foram sacudidas pela quarentena e como enfrentaram esses três meses. De um sonho que teve de ser adiado ao diagnóstico positivo de coronavírus. De uma ameaça de aborto ao enfrentamento da solidão. Do primeiro dia até as vésperas de chegar ao dia 90.

"Meu Deus, minha vida parou! Foi o que eu pensei quando o isolamento começou. Eu estava no terceiro mês de gestação. Tinha sofrido uma ameaça de aborto dois meses antes. Meu marido continuou trabalhando como coordenador de uma escola de idiomas que fechou só um tempo depois. Me deu muito medo: ele ia sair, encontrar pessoas. E se fosse contaminado e trouxesse para casa? Era tanta coisa na minha cabeça que não conseguia mais me conectar com a minha bebê."

Gabriela Mendes, 25, advogada

Carine Wallauer/UOL

"Tinha uma hambugueria com meu marido e fechamos na semana em que a quarentena começou para abrir em um espaço maior. Era um sonho antigo. No mesmo em dia que fizemos a mudança, em 16 de março, soubemos que ia ser decretada a quarentena. As coisas estavam caminhando de um jeito estranho por causa da pandemia. Cancelamos nosso plano. Desisti de tudo e comecei a organizar as coisas de um jeito que não saísse perdendo. Trouxemos todos os equipamentos para casa e decidi fazer hambúrguer e marmitas para delivery. Meu companheiro se encarregou das entregas. Além disso, meus três filhos [duas gêmeas de dez anos e um menino de três] começaram a ter aula online, e eu precisava acompanhá-los. Eu não sabia como ia dar conta de tanta coisa."

Rosi de Barros, 33, empresária (foto acima)

"Logo que fiquei sabendo da quarentena, tive medo pelo meu filho Théo, de quatro anos [Théo é autista]. Comecei a pensar que ele iria regredir. Ele fazia terapia presencial quatro horas por dia, cinco dias por semana, e, à tarde, ia para escola. As sessões foram canceladas e as aulas seriam online. Não sabia como ia ser. Ele perderia a rotina, ficaria em casa trancado, seria complicado, tudo isso deixaria ele ansioso. Sabia que enfrentaria uma batalha."

Giovana Pinto Lourenço, 30, enfermeira

"Nesse primeiro mês foi que comecei a me dar conta da gravidade da situação. Antes, achava que a quarentena era um pouco de exagero. 'Não vai ser tudo isso que está acontecendo na Itália, lá está dessa forma porque foram displicentes', pensei. Comecei a ver notícias, todo mundo só falando disso, usando máscaras no mercado, e foi batendo a preocupação. Sou de São Luís e moro sozinha em São Paulo. Um dia, não consegui dormir pensando o que ia acontecer com meus pais, de 65 anos e hipertensos. De manhã a primeira coisa que fiz foi ligar para os dois e pedir: 'Pelo amor de Deus, não saiam de casa'. Comecei a acompanhar discussões dentro do movimento negro já prevendo como o coronavírus chegaria nas favelas, nas periferias. Eu, como mulher negra, percebi que a pandemia desvela mais ainda a desigualdade que a gente tem no nosso país. Não é à toa que tem morrido mais pessoas pobres e pretas."

Mayana Hellen Nunes da Silva, 33, assessora de projetos e educadora

Carine Wallauer/UOL

"Depois de um mês de isolamento, no final de abril, eu passei por uma segunda ameaça de aborto. Quando cheguei ao hospital, um médico me atendeu e disse que poderia ser descolamento da placenta, como da primeira vez que sangrou. Mas dessa vez foi mais intenso. Para confirmar, precisaria fazer um ultrassom. Mas a maternidade tinha enviado o ultrassom para outra unidade que atendia pacientes com covid-19 e só teria de novo o equipamento na manhã seguinte. Foi o pior dia da minha vida. Fui para casa sem saber se minha filha estava viva. Voltei no outro dia para fazer o exame. Meu marido não podia entrar, também por causa do coronavírus. Foi confirmado o descolamento, e o médico disse que seria um caso para internação, mas, se eu ficasse no hospital, o risco de contaminação era mais perigoso do que ficar em casa. Ele disse: 'Não vou descartar que você vai para casa e pode perder, mas vamos fazer de tudo para segurar'. Por causa da covid-19, eu não pude ficar internada. Fiquei muito pilhada e tive dificuldade até para começar a comprar as coisas da minha filha."

Gabriela (foto acima)

"Em meados de abril, ainda estava indo para a clínica em que eu trabalhava quando fiz o exame de covid-19. Estava há alguns dias com dores nas costas e ardência nos olhos que não passavam de jeito nenhum. Passou o final de semana e veio o resultado positivo. Meu mundo caiu. Moro com meu filho e uma tia, tinha medo de contaminá-los, além de minha mãe, que ficava com ele quando eu ia trabalhar. Teria que ficar com ele usando máscara, mas ele não gosta do adereço, nem que outra pessoa use. No começo, tentou tirar a máscara do meu rosto. Depois se acostumou. Era difícil mantê-lo longe. Vinha me abraçar, mas eu tentava manter o rosto afastado. Comecei a acompanhar suas sessões de terapia e aulas online. Mesmo destruída, doente, eu dava atenção a ele. Foi cansativo. Mas o resultado foi muito positivo. Antes, o Théo não falava uma palavra inteira. No primeiro mês de quarentena, ele falou a primeira: 'suco'. Teve um boom: começou a cantar músicas, a falar o nome dos animais, a reconhecer sons dos bichos. Me emociona ver a sua evolução."

Giovana (foto acima)

"Dois meses depois do início da quarentena, no final de maio, meu marido não acordou muito bem. Saiu para o trabalho e comentou comigo que iria fazer o exame de covid-19. Ele trabalha como auxiliar de enfermagem em dois hospitais e, em um deles, na UTI de infectados por coronavírus. Na hora do almoço, ele me ligou avisando que testou positivo. Respirei fundo, fiquei com muito medo. Liguei para o meu filho mais velho, de 15 anos, para contar. Disse, chorando, que iríamos ficar um tempo longe e que era para ele ir arrumando as coisas dele e do irmãozinho, de sete anos. Decidimos que eles ficariam com a minha mãe. Soube no mesmo dia que minha tia e madrinha, de quem sou muito próxima, tinha morrido de coronavírus. Nem sabíamos que ela estava doente. Depois, soube que foi para o hospital naquela madrugada, sentindo cansaço e falta de ar, e não resistiu. Fui ao sepultamento às pressas. Meu padrinho chorava e dizia: 'Deixa eu ver minha neguinha'. Era um casamento de quase 50 anos. A perda dela nos abalou profundamente."

Elaine Alves da Silva, 38, analista de departamento pessoal

Carine Wallauer/UOL

"A quarentena impossibilita a gente de se distrair. Se eu estiver sofrendo por algo, não dá para ir para o bar, não tem festa, não tem casa de amigo. Eu tinha terminado um relacionamento e fiquei tentando entender por que terminou. Percebi que me sentia sozinha, mesmo numa relação. Comecei a me questionar sobre repetir tipos de relação porque essa última história se assemelhava a muitas outras que eu tive. Com dois meses de quarentena, outra coisa me incomodou: tanta gente postando o quadrado preto do movimento Black Lives Matter depois do assassinato do George Floyd nos Estados Unidos [a morte de Floyd, homem negro morto por um policial branco, desencadeou atos antirracismo por todo o mundo]. Eu acho sintomático que o Brasil olhe para as questões raciais quando algo acontece fora. Há Floyds morrendo todos os dias. Para quem faz parte da militância antirracista e para quem vive nas regiões periféricas, o assassinato da população negra não é novidade, é realidade. Não sei se daqui a três meses as pessoas vão continuar indignadas se um menino negro for assassinado."

Mayana (foto acima)

Carine Wallauer/UOL

"No começo de junho, sentia cansaço, dor para respirar e febre. Fiz o exame para covid-19 e deu positivo. A primeira coisa que fiz foi ligar para o meu filho. Pedi que ele me prometesse que, caso eu tivesse uma piora, iria cuidar do irmão, proteger e nunca se separar dele. Depois pedi que não falasse nada para minha mãe. Ela já estava sofrendo demais por minha madrinha, irmã dela. Fiquei de repouso em casa e passou. Agora estou 100%, mas o exame ainda acusa que tenho o vírus. Quando isso vai acabar, eu não sei, mas vai. Quero fazer três coisas assim que puder sair de casa: sentir o cheiro dos meus filhos, abraçar meus irmãos e ir a um bom samba. Quero ficar no samba até o dia amanhecer."

Elaine (foto acima)

"Até hoje não me adaptei à quarentena. Manter a organização de três filhos, assistir às aulas, porque eles precisam de ajuda, não é fácil. Ainda tenho que cozinhar e cuidar da casa. Quando abro o delivery da hamburgueria, às 18h, estou lavando a louça do jantar e fazendo os sanduíches ao mesmo tempo. Às vezes, recebo pedidos grandes de marmita e acabo virando a noite cozinhando para conseguir entregar dentro do prazo. Só queria que isso acabasse, que eu retomasse meu negócio, voltasse a ter contato com meus clientes. Tenho escutado muito uma música cantada pelo Diogo Nogueira que se chama 'Clareou'. Tem um trecho que diz: 'Levante a cabeça, amigo, a vida não é tão ruim / Um dia, a gente perde, mas nem sempre o jogo é assim / Mantenha a fé na crença se a ciência não curar / Pois, se não tem remédio, então remediado está'."

Rosi

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