No trajeto de entregas de pizza, José Willian empina sua mobilete e fala em tom divertido.

"Chama no grau, chama no grau"

Ele exclama, sozinho, em ruas vazias de uma cidade em quarentena ocasionado pela pandemia de covid-19.

Tudo é gravado por uma câmera no capacete de William, em um tipo de produção de vídeo chamado Motovlog.

No entanto, há um fato curioso: a mobilete não é de verdade, nem o emprego como entregador, tampouco a cidade em quarentena. Tudo acontece dentro de um videogame para celular. Esse é mais um dos vídeos do YouTuber Willian Gamer.

Com a ajuda de mods, o motovlog marca presença em títulos como GTA San Andreas e GTA V, além de protagonizar jogos para celular.

O START conversou com esses youtubers, criadores de jogos e pesquisadores, para saber mais desse fenômeno.

Apesar de serem gravados dentro de espaços virtuais, os vídeos de motovlog nos games são fiéis à fonte original e sempre tentam passar um ar de realidade.

Para os youtubers, isso significa um trabalho de improviso e de interpretação de papéis, o chamado "roleplay", na hora de gravar.

O que vem na cabeça eu vou gravando. Sinto que tô lá dentro do jogo, sinto que sou o personagem
William Gamer

Montar o modelo de moto que sonha ter na vida real, dar um "rolê" até outra cidade ou só dar grau em uma rua vazia são alguns dos temas dos vídeos de William Gamer.

Já uma das características mais fortes dos vídeos de Motovlogs, e que é passado também para os de games, é o discurso motivacional feito pelos youtubers.

Muitos dos vídeos simulam o "corre" do dia a dia de um entregador de aplicativo, já que isso faz parte da realidade deles. Agora, eles usam o meio para passar uma mensagem aos inscritos em seus canais.

O corre no game pode até ser uma simulação, mas os papos nos vídeos são bem reais.

GTA San Andreas e GTA V são os jogos preferidos por muitos que gravam motovlog no PC, o que faz sentido pelos jogos simularem a vida de grandes centros urbanos.

Mas em um país que tem mais smartphone do que pessoas e que cuja maior parte da população prefere jogar no mobile, está ficando cada vez mais popular o GTA Motovlog - versões modificadas de GTA San Andreas para celular.

Os mods incluem a troca para a visão em primeira pessoa no game, nomes brasileiros pras ruas, adição de modelos de motos populares e vestuário mais próximo da realidade local, principalmente ligado à periferia.

Tiago Souza, de 17 anos, é um dos que tornam essas modificações possíveis. A partir de um smartphone simples, ele desenvolve mods para a versão de Android do San Andreas, que ele chama de GTA Bahia, Estado em que mora.

Com foco em motovlog, essas versões são distribuídas de graça. Sem se importar com gráficos realistas ou sistemas complexos, Tiago diz que o intuito é que essas versões sejam acessíveis ao maior número de pessoas.

Meu celular é fraco, então eu me coloco no lugar das pessoas que querem um GTA que possa rodar tranquilo, porque é bem chato a pessoa não poder jogar um jogo tão bom. O GTA [San Andreas] original pesa 1 GB, e os meus pesam 100 MB

É fácil entender o fenômeno do Motovlog nos games como um desejo sempre presente dos brasileiros de se ver nos jogos em suas mais diferentes formas, de ser um espelho da realidade.

José Messias, coordenador do Laboratório de Pesquisa em Games, Gambiarras e Mediações em Rede (GamerLab) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), aponta que é forte no Motovlog a relação da moto com os smartphones, por exemplo.

Ambos, segundo ele, se tornaram a forma como classes periféricas puderam passar a habitar a modernidade tecnológica, permitida pela massificação do consumo desses produtos.

Esses jogos vão se tratar de como as pessoas, essa classe operária, essa população periférica, faz questão de se ver no jogo e exercitar uma criatividade, uma certa forma diferente de observar o mundo, e, ao mesmo tempo, participar de forma crítica dentro desse conteúdo que normalmente elas apenas consomem
José Messias, professor e pesquisador da UFMA

O motovlog no videogame mostra como o Brasil reinterpreta e aproxima mídias que, juntas, revelam a maneira única como nos relacionamos com jogos e como enxergamos suas diversas potencialidades.