Criando games sob pressão

Será que vale tudo para fazer um jogo de sucesso? Confira o relato de profissionais que passaram pelo "crunch"

Bruno Izidro Do START, em São Paulo

Por trás da diversão

Quem cresceu jogando "Sonic: The Hedgehog", passou horas no mundo de "Red Dead Redemption II" ou sobreviveu por último em "Fortnite" sabe o quanto esses jogos são especiais. Mas por trás de tanta diversão existe um problema que só recentemente começou a ser discutido pela indústria: a prática do "crunch".

O "crunch" é um termo popularizado pela indústria dos games e refere-se às jornadas de trabalho longas e intensas, quando as equipes encaram um ritmo exaustivo, seja para corrigir problemas ou conseguir entregar projetos no prazo. Quanto mais ambiciosos e complexos os games se tornam, maior a probabilidade de existir um período de "crunch" durante o desenvolvimento.

O START conversou com diversos profissionais da indústria para entender as causas e os efeitos dessa prática. Desde jogos "indie", como "Dead Cells", até títulos "blockbuster" como "Burnout Paradise" e "The Witcher", vemos um problema que vem se repetindo há anos, e que tem consequências práticas não só para quem produz mas também para nós, que adoramos jogar.

Crunch em números

Pesquisa da International Game Developers Association (IGDA) - 2017

  • 51% dos desenvolvedores trabalham com períodos de crunch na criação de games
  • Durante o crunch, 37% das pessoas trabalharam entre 50 e 59 horas semanais; 29% entre 60 e 69 horas e 14% mais de 70 horas por semana
  • 37% das pessoas que fazem crunch ou horas a mais não recebem hora extra ou folga
  • 1/3 dos desenvolvedores que trabalham como freelancers também fazem crunch

Pesquisa da Game Developers Conference 2019

  • 26% dos desenvolvedores fazem crunch por serem forçados
  • 44% dos desenvolvedores trabalham mais do que as habituais 40 horas semanais
  • Somente 29% dos desenvolvedores trabalham com games há mais de 10 anos.

Mata Haggis-Burridge

Designer em Burnout Paradise (2008)

Os acordes de Paradise City, do Guns 'n Roses, ainda ecoam na cabeça dos jogadores que ouviam a música tema toda vez que iniciavam "Burnout Paradise" (PS3, Xbox 360 e PC). O game de 2008 é, até hoje, considerado um dos melhores jogos de corrida já feitos. Só nos primeiros três meses nas lojas, vendeu mais de 1 milhão de unidades, recebendo uma versão "Ultimate" em 2009, e uma remasterizada em 2018.

A criação de "Burnout Paradise", porém, não foi um paraíso para Mata Haggis-Burridge, um dos designers do game. Hoje ele é professor na Universidade Breda de Ciências Aplicadas, na Holanda, e criador de jogos independentes, como "Fragments of Him". Em entrevista ao START, ele cita "Burnout Paradise" com orgulho, mas lembra os momentos difíceis no desenvolvimento do jogo de corrida publicado pela Electronic Arts.

Acelerando sem parar

Relato por Mata Haggis-Burridge, designer de Burnout Paradise (2008)

Trabalhando em "Burnout Paradise" eu adquiri L.E.R (Lesão por Esforço Repetitivo) porque durante muitos meses ficamos só testando e jogando, testando e jogando. Isso por, facilmente, mais de 10h ou 12h por dia.

Bom, "Burnout" é um jogo em que se deve apertar e segurar o gatilho para acelerar o carro, e meu dedo ficava nesse movimento por 10h, 12h por dia... eu ainda sinto (a dor) falando isso agora, e eu trabalhei nesse jogo há mais de uma década já.

Isso é só L.E.R, é uma coisa pequena, mas ao mesmo tempo não é, porque é algo que sinto todo dia, é uma consequência física que vou carregar comigo o resto da vida, só por ter feito um jogo. E, quero enfatizar isso aqui, jogo pelo qual eu tenho muito orgulho.

Eu adoro o trabalho que fizemos. E tantas pessoas, mais de dez anos depois, ainda vêm me dizer que amam Burnout Paradise

Todos nós éramos bastante apaixonados e trabalhamos duro para criar o jogo, mas também houve consequências em nossas vidas. E se tivéssemos mais nove meses, nós provavelmente poderíamos ter lançado um jogo tão bom quanto, provavelmente teria vendido um número de cópias parecido, e não teria matado metade da equipe de trabalhar.

O mais incrível é que, para quem está em casa, fazer jogos parece fácil assim. É só andar pelo estúdio, apertar um botão uma vez, e o jogo está pronto!

Cory Barlog, Diretor de God Of War (2018), no documentário Raising Kratos, sobre o desenvolvimento do jogo

Karol Zajaczkowski

Controle de Qualidade em The Witcher (2007)

Muitos anos antes de o bruxo Geralt de Rivia ficar famoso em "The Witcher 3" ou de ser interpretado por Henry Cavil na futura série da Netflix, ele era apenas o protagonista de um desconhecido game feito pela ainda mais desconhecida desenvolvedora polonesa CD Projekt RED. Foi ali que Karol Zajaczkowski começou a carreira na indústria de games, no meio dos anos 2000.

Desde então, ele esteve envolvido em alguns dos principais jogos de sucesso feitos na Polônia, como os dois primeiros "The Witcher" e, mais recentemente, "This War of Mine" e "Frostpunk", trabalhando como gerente de marketing no estúdio 11 Bit, cargo que ocupa atualmente.

É da criação desses games que Karol compartilha suas experiências com o "crunch".

Quando a exceção vira regra

Relato de Karol Zajaczkowski, ex-controle de qualidade na CD Projekt RED

Eu já vivenciei diferentes tipos de "crunch". Na 11 Bit são coisas bem curtas, como ter de terminar um trailer, por exemplo, e ficar trabalhando uma noite adentro, mas é isso.

O crunch que fiz durante 'Witcher 1' foi de dormir em cima da mesa de trabalho

Mas isso foi há muito tempo, não acontece mais esse tipo de coisa, foi há 12 anos. Esses foram tempos sombrios, eu diria. Agora está muito melhor e mais civilizado.

Até por ter tido essas experiências de como é o "crunch", eu posso dizer que passar algumas horas a mais só para terminar algo do dia não é um grande problema, e nunca vamos nos livrar disso.

O problema começa quando o "crunch" se torna o jeito padrão de se trabalhar. Se for uma ou duas semanas de trabalho é ok, mas quando se transforma em meio ano, trabalhando por 12 horas, sete dias por semana, aí os problemas começam.

David Lam

Diretor de Arte em Dragon Age: Inquisition (2014) e Mass Effect: Andromeda (2017)

David Lam é veterano na indústria de games. Trabalhou por 10 anos na Electronic Arts, onde se envolveu com muitos dos jogos de esportes do estúdio, incluindo "FIFA". Os games mais conhecidos em que trabalhou, porém, foram mesmo "Dragon Age: Inquisition" e "Mass Effect: Andromeda", ambos na Bioware.

Atualmente, Lam é produtor de desenvolvimento externo na Turn 10, estúdio da Microsoft responsável pela série de jogos de corrida "Forza".

Com um currículo desses, era de se esperar que ele já tenha passado por períodos de trabalhos intensos, como ele nos contou, mas sem apontar nenhum jogo específico.

Você não pode ter tudo

Relato por David Lam, ex-desenvolvedor na EA e Bioware

Você sempre faz sacrifícios, não importa se você está no (ramo de) jogos ou não. Você tenta ser bem-sucedido no que faz e tem de aceitar prioridades no que é importante na sua vida. Sim, houve épocas em que estava trabalhando muito e perdi alguns momentos com os meus filhos, mas não existe um cenário ideal, você não pode ter tudo.

Minhas duas filhas, uma tem nove e outra tem 11 anos. Eu perdi muito do tempo delas quando eram bem pequenas porque estava trabalhando muito, mas foi recompensador também (o trabalho a mais).

Não é fácil dizer que, se eu pudesse voltar no tempo, eu faria tudo diferente.

Talvez eu fizesse, mas talvez eu não estivesse fazendo o trabalho que estou fazendo agora. Então, tem de escolher o que priorizar. Alguns priorizam a família e isso é totalmente válido.

O que dizem as empresas

Para tentar entender o outro lado da história, procuramos a Criterion Games ("Burnout Paradise"), CD Projekt RED ("The Witcher") e Bioware ("DA: Inquisition" e "Mass Effect: Andromeda").

A CD Projekt RED enviou como resposta seu posicionamento publicado, em maio, em reportagem do site Kotaku (em inglês). O estúdio diz estar comprometido seriamente em tratar seus empregados com respeito e reforçar sua política de crunch não-obrigatório que já possui, apesar de admitir que horas a mais de trabalho ainda são uma realidade e algo difícil de eliminar do processo de desenvolvimento. Atualmente, a CD Projekt RED está trabalhando no aguardado RPG "Cyberpunk 2077".

A Electronic Arts, produtora que é dona tanto da Criterion Games quanto da Bioware, não respondeu ao START até a publicação desta reportagem. Porém, em 2018, o gerente geral da Criterion, Matt Webster, escreveu um artigo no site Gameindustry.biz (em inglês) sobre como evitar crunch.

Na indústria de jogos achamos que somos especiais e que essas pesquisas e dados (sobre crunch) não se aplicam a nós. A realidade, claro, é que se aplicam, sim
Matt Webster, gerente da Criterion Games no site Gameindustry.biz.

Nos últimos anos, a Criterion passou a ser um estúdio auxiliar dentro da EA, ajudando no desenvolvimento complementar em jogos como "Star Wars Battlefront II" e "Battlefield V".

Os tipos de Crunch

Fonte: "Crunch Time: The Reasons and Effects of Unpaid Overtime in Games Industrty" (2017)

Crunch contínuo

Aquele que acontece durante a maior parte do desenvolvimento. Geralmente, é resultado de mau planejamento no início do projeto, o que força os profissionais a trabalharem a mais para conseguir entregar tudo o que estava planejado.

Crunch Final

É quando o crunch acontece nas últimas semanas ou meses do projeto, muitas vezes para evitar um atraso de última hora ou eliminar bugs e outros problemas específicos que podem ter surgido em fases anteriores do processo.

Mini Crunches

"Sprints" curtos de algumas semanas, que podem acontecer em várias etapas diferentes, seja para entregar uma demo específica ou atingir objetivos do cronograma sem sacrificar algum elemento previamente planejado.

Crunch de Delírio

Quando o crunch já foi assimilado e faz parte da cultura do estúdio, acontecendo mesmo que as equipes não percebam que estão fazendo jornadas mais longas. O Crunch de Delírio pode acontecer em paralelo aos outros três tipos.

Eu estava tão cansado de trabalhar em Stardew Valley que eu tinha que lançá-lo (...) Na verdade, achava que o jogo era um lixo até alguns dias antes do lançamento, achava que era péssimo

Eric Barone, Criador de Stardew Valley (2016), desenvolveu o game sozinho por cinco anos, em relato no livro Sangue, Suor e Pixels

Um problema de longa data

Casos de crunch em criação de jogos vieram à tona mais recentemente, mas é uma prática que remete à década de 90, em jogos como "Sonic: The Hedgehog" (1991), "Mega Man X" (1993), "Doom" (1993) e "Diablo II" (2000).

No desenvolvimento do primeiro Sonic, por exemplo, o programador Yuji Naka, o artista Naoto Ohshima e o designer Hirokazu Yashuhara, considerados os pais do ouriço azul, chegavam a trabalhar 19 horas diárias, durante meses, para criar o game que precisava demonstrar todo o poder do Mega Drive.

Apesar de existirem períodos intensos de produção em projetos tradicionais de software, a indústria de jogos glamouriza os ciclos longos de trabalho
Fábio Petrillo, pesquisador e professor

"Resident Evil 2" (1998) foi outro jogo clássico que sofreu com crunch. O diretor Hideki Kamiya relembrou a história em uma série de tweets, revelando que, para extravasar do estresse durante o desenvolvimento, bebia todas as noites e dormia no próprio estúdio na hora do almoço.

O problema de crunch também é bastante discutido na área acadêmica. Professor da Universidade de Quebec e PhD em Ciência da Computação, Fábio Petrillo estuda e pesquisa soluções para o processo de desenvolvimento de games há mais de uma década. Em 2009, quando ainda morava no Brasil, ele publicou um artigo chamado "O que deu errado? Uma pesquisa sobre o desenvolvimento de games" em que já apontava o crunch como um grande problema na criação de jogos.

Em entrevista ao START, ele conta que períodos de trabalhos prolongados não são uma exclusividade da criação de games, e que é algo que acontece na área de tecnologia no geral. Com games, porém, há um agravante: a glamourização que a indústria projeta sobre o "trabalho duro" para fazer games cada vez melhores.

Eu estou num maldoito campo de concentração. Se você não consegue terminar o trabalho, então os últimos anos basicamente não valeram nada. Sem pressão.

Edmund McMillen, Co-criador de Super Meat Boy (2010), falando durante o desenvolvimento do jogo no documentário Indie Game: The Movie

Por que o crunch acontece?

Do mau gerenciamento até a paixão pelos jogos

Uma pesquisa de 2017 da International Game Developers Association (IGDA) revelou que mais da metade dos desenvolvedores trabalham com períodos de crunch no desenvolvimento de games. Mas, afinal, por que isso acontece?

Todos os desenvolvedores ouvidos pelo START são unânimes em apontar o mau gerenciamento de estúdios como o principal fator.

Conforme os games foram evoluindo, com gráficos mais realistas, mecânicas inovadoras e uma constante busca pela superação, foram necessárias equipes maiores trabalhando por mais tempo. Se o clássico "Tetris" foi criado em poucas semanas por Alexey Pajitnov nos anos 80, o recente "Red Dead Redemption II" demorou oito anos e envolveu três mil pessoas de diferentes áreas, de design a roteiro, de arte até programação e marketing.

Nesse cenário, uma administração ruim pode se manifestar de diversas formas: desde um planejamento otimista demais, que não leva em consideração os imprevistos, até a prática de incluir elementos a mais no jogo a todo momento (o famoso "feature creep"), como aquela mecânica que vai deixar tudo mais divertido ou aquele modo multiplayer influenciado pelo sucesso mais recente. Tudo isso pode parecer legal no campo das ideias, mas acaba tomando mais tempo de produção, gerando retrabalho e, muito provavelmente, períodos de crunch.

Outro fator, mais difícil de medir, também pode contribuir para o crunch: a paixão dos criadores.

"Todo mundo que faz jogo gosta MUITO de jogo e isso é um problema. As pessoas vão colocar o sangue e o coração em tudo e esquecer que é trabalho", diz a game designer Maíra Testa, que também já teve sua cota de crunches, principalmente no início de carreira, quando trabalhou em "Turma do Chico Bento", jogo no estilo "Colheita Feliz", lançado para Facebook em 2013. O game foi produzido pela Insolita Studios, que hoje não existe mais.

Todo mundo foi aceitando o crunch como algo normal, porque todo mundo quer deixar o jogo bonito, a gente quer que o jogo fique legal, por que que não vou dar um tempinho extra?
Maíra Testa, game designer

Dados divulgados este ano pela Game Developers Conference (GDC) mostram que a razão mais comum para desenvolvedores trabalharem horas a mais é a "auto-pressão", com 69% dos criadores de jogos revelando que queriam ou sentiram que precisavam das horas extras de trabalho.

Depois do crunch você entra em um mindset de não aguentar mais olhar para o projeto, e isso afeta suas decisões, que passam a ser mais 'só quero que isso acabe' do que 'quero fazer um bom trabalho'

Anderson Vermonde Hamiko, Desenvolvedor e coordenador do LAJE, incubadora de estúdios de games na PUC-PR

André Lucas/UOL

Sébastien Bénard

Game designer em Dead Cells (2018)

Após desenvolverem games mobile e para navegador de internet por mais de uma década, Sébastien Benard e o estúdio francês Motion Twin alcançaram o sucesso com "Dead Cells" (2018), jogo de ação em estilo pixel art que já vendeu 2 milhões de unidades, somando as diversas plataformas.

O estúdio, apesar de ser pequeno para os padrões da indústria, com menos de 10 funcionários, notabilizou-se por uma cultura própria: todos os funcionários são chefes e recebem os mesmos salários. Mesmo assim, nem eles conseguiram fugir de pequenos períodos de crunch enquanto finalizavam o premiado game.

Estúdio pé no chão

Relato por Sébastien Bénard, designer de Dead Cells

Nossa empresa tem uma situação bem particular porque não temos um chefe para mandar trabalharmos no fim de semana. Na verdade, é bem mais complicado, porque você é seu próprio chefe, você é quem coloca pressão em si mesmo para trabalhar, porque quer que o projeto avance, então é mais difícil para evitar o crunch.

Às vezes há prazos de entrega que não são seus, como, por exemplo, lançar o jogo em um console, e isso tem datas específicas. Nesses casos, talvez não tenha como evitar o crunch porque simplesmente não temos tempo para terminar tudo. Nós chegamos a fazer isso com "Dead Cells", nada muito grande, mas alguns períodos curtos de crunch antes da data de lançamento.

Foi algo que saiu caro depois, porque nas três ou quatro semanas seguintes, todo mundo estava igual zumbi

Agora, temos algumas regras para evitar isso. Por exemplo, se alguém vai realizar um trabalho e diz que precisa de uma semana, a gente programa para duas, para ter certeza de que tudo vai estar no prazo.

O que torna muito difícil é que você pode construir um jogo, pode testar um jogo e pode pensar que conhece o jogo... até que o lance, porque no primeiro dia mais pessoas passarão mais horas jogando o jogo coletivamente do que em todo o desenvolvimento

Josh Mosqueira , Diretor de Diablo III (2013), falando do desenvolvimento do jogo no livro Sangue, Suor e Pixels

André Lucas/UOL

Marcos Venturelli

Game designer em Dungeonland (2013)

Marcos Venturelli é um dos desenvolvedores de jogos mais conhecidos no Brasil. Ele trabalhou em "Chroma Squad" e, atualmente, lidera a equipe da Rogue Snail, que vem fazendo os promissores "Relic Hunters Legend", para PC, e "Relic Hunters Blitz", para mobile.

Foi em 2013 que Venturelli e o estúdio Critical ficaram conhecidos pelo jogo de ação e RPG "Dungeonland", que conseguiu a façanha de ser lançado no Steam, em uma época em que ter seu jogo na plataforma de vendas da Valve era garantia de sucesso. Porém, as consequências deixaram feridas que até hoje ele tenta curar.

"Domingo era só pra dormir"

Relato por Marcos Venturelli, game designer

Na época da Critical, a Paradox (produtora de "Dungeonland") não mandou a gente fazer crunch, a gente mesmo mandou a gente fazer crunch e foi muito. Eu destruí minha vida. Foi a época em que engordei, até hoje estou lutando para recuperar minha saúde. Eu engordei mais de 20 quilos, eu terminei um relacionamento de cinco anos, me afastei de família e amigos, fiquei com depressão. Assim, foi uma merda.

Eu trabalhava 14 horas por dia, de segunda a sábado. Domingo era só pra ficar dormindo

Isso durou um ano e meio, dois anos. Por isso o ambiente ficou tóxico lá na Critical, ficou um ambiente difícil de se trabalhar, a gente não se respeitava mais. Então, foi tudo de ruim.

Aquela era minha grande chance de fazer videogames, então eu dei 200% do meu esforço porque se não mandasse bem teria de voltar a trabalhar com coisas que eu não gostava e ser infeliz. Com esse medo de ser infeliz eu me tornei infeliz antes mesmo de acontecer qualquer coisa.

O que eu fiz para lidar com crunch foi continuar trabalhando. Trampar durante três meses todo os dias, praticamente, menos domingo, mas aí o que adianta você ter um dia, morrer no sofá e não viver?

Eliana Dib, Produtora e desenvolvedora de games

Mergulhando nos bastidores

  • Raising Kratos

    Documentário sobre o desenvolvimento do premiado jogo de PS4 God of War (2018), que durou cinco anos. É uma visão bem franca sobre os problemas e dificuldades do estúdio Santa Mônica para revitalizar a série, abordando, principalmente, a personalidade do diretor Cory Barlog.

    Imagem: Divulgação
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  • Sangue, Suor e Pixels

    O jornalista norte-americano Jason Schreier revela bastidores da criação de jogos famosos, incluindo histórias problemáticas de "blockbusters" como "Destiny", "Uncharted 4" e "Diablo III". Tudo por meio de entrevistas com os próprios desenvolvedores e funcionários.

    Imagem: divulgação
  • Playing Hard: Tudo em Jogo

    O documentário mostra o processo de criação de "For Honor" (2017), da Ubisoft, com seus altos e baixos. A produção se destaca ao narrar a luta de egos e conflitos de personalidades dentro de um grande estúdio, principalmente na figura do criador Jason Vandenberghe.

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  • O Grande Fora da Lei: A Origem do GTA

    O escritor David Kushner trabalhou por uma década no livro mais completo que temos sobre GTA. Ele se baseou em reportagens e entrevistas para contar a história do estúdio Rockstar Games, ao mesmo tempo em que narra os bastidores da criação da eterna franquia.

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  • Indie Game: The Movie

    O documentário acompanha a jornada de desenvolvedores de jogos independentes e o drama para lançar seus jogos. É uma visão intimista da criação de "Braid", "Fez" e "Super Meat Boy", em uma época em que os games indies começavam a ganhar destaque no mercado.

    Imagem: Divulgação
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  • Patriot Act with Hasan Minhaj (V. 4, Ep. 1)

    Com uma abordagem bem humorada, um dos episódios mais recentes do programa de Hasan Minhaj aborda casos recentes envolvendo direitos trabalhistas em grandes estúdios de games, como Riot Games ("League of Legends") e Telltale ("The Walking Dead").

    Imagem: Divulgação
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Existe vida após o crunch?

As consequências do crunch na saúde dos profissionais são diversas: Burnout (a síndrome, não o jogo), exaustão emocional, despersonalização, falta de entusiasmo no trabalho e sentimento de aprisionamento são algumas delas, segundo o relatório "Metal Health in Game Industry" (Saúde Mental na Industria de Jogos), divulgado em 2019 pela entidade Take This, que conscientiza sobre condições de trabalho na área de games.

Esses são reflexos que podem prejudicar não só quem cria jogos, como também todo o mercado de games. Incluindo eu e você, que jogamos.

Mata Haggis-Burridge, designer que nos relatou sua história criando "Burnout Paradise", conta que, cada vez mais, profissionais talentosos estão saindo da área de jogos, e que essa situação pode ser ruim para toda a indústria no futuro.

"Eu sou um desenvolvedor melhor agora do que era dez anos, 20 anos atrás, e essa habilidade se desenvolve com o tempo, é uma construção, não há atalhos para esse conhecimento"

Burnout Paradise foi bom como foi por causa do histórico dos desenvolvedores naquele time. Eles eram maravilhosos, mas muitos deles saíram logo depois que o jogo foi lançado
Mata Haggis-Burridge, desenvolvedor de Burnout Paradise

Para colaborar com o que Mata Haggis diz, a pesquisa da Game Developers Conference, principal evento de criadores de games do mundo, revela que apensas 29% dos desenvolvedores estão há mais de 11 anos trabalhando com games, o que indica um "êxodo de talentos" que pode afetar o futuro da indústria.

Já cheguei a desenvolver tendinite, crises de ansiedade, explosões súbitas, variação de humor, síndrome de impostor, dor no corpo todo, inflamações e doenças várias por conta de ser empurrado ou acreditar que eu deveria estar nesse lugar da sobrecarga.

Mídio, Artista de Pixel que ficou famoso com seus trabalhos em "Sonic Mania" e "Cadence of Hyrule" (o relato não é sobre nenhum dos dois jogos)

Quebrando o tabu (aos poucos)

Nos últimos anos, histórias sobre ambientes tóxicos e de crunch vieram à tona em estúdios como Rockstar Games, Telltale Games, Riot Games, Bioware, Epic Games, Netherrealm e outras.

Todo esse barulho está ajudando a melhorar, mesmo que aos poucos, as condições de trabalho de quem cria games, gerando um efeito também nos jogadores e fãs, que até então não tinham noção do custo humano para terem seus games favoritos.

"Como desenvolvedor, a gente sempre soube que existia crunch", diz a game designer Maíra Testa. "Mas o que é interessante é que agora está chegando nos jogadores, no público que consome e eles estão discutindo sobre isso".

Fãs do MMO Warframe, por exemplo, publicaram no fórum Reddit um tópico, que logo ficou popular, pedindo para os desenvolvedores evitarem o crunch na hora de criarem as expansões do jogo.

Já alguns estúdios estão abertamente justificando o adiamento de jogos para preservar a saúde dos desenvolvedores. Exemplos são "Animal Crossing: New Horizon", da Nintendo, e a expansão "Delicious Last Course" de "Cuphead", da MDHR Studio, ambos adiados para 2020 para não sobrecarregar os criadores.

Tudo isso indica uma melhora, mas ainda há muito o que se discutir sobre condições de trabalho e saúde de quem faz os games de que tanto gostamos.

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