O rei das séries médicas

Pai de 'House' e 'The Good Doctor', David Shore conquistou o mundo com seus médicos sem-igual

Beatriz Amendola De Splash, em São Paulo

Gregory House e Shaun Murphy têm muito em comum.

Os dois são médicos; os dois são protagonistas fictícios de séries de sucesso —"House" e "The Good Doctor", respectivamente— e os dois compartilham o mesmo "pai": o roteirista e produtor executivo David Shore.

O canadense de 60 anos chegou a ser advogado na juventude, mas entendeu que queria mesmo fazer TV e se mudou para Los Angeles para tentar a sorte. Começou, ironicamente, trabalhando em "Due South", produção de Paul Haggis sobre um oficial canadense trabalhando nos Estados Unidos.

Depois disso, vieram:

  • "NYPD Blue"
  • "Family Law"
  • "Law and Order"

Esta última lhe rendeu suas primeiras indicações ao Emmy. Mas foi com "House" que o jogo virou. O médico sarcástico capaz de fazer diagnósticos surreais conquistou o mundo. E a série, a primeira criada pelo roteirista, também.

Agora, com "The Good Doctor" já em sua quarta temporada, Shore segue aproveitando o sucesso no competitivo mundo das séries médicas —que, para ele, são bem mais do que um rótulo.

Em um papo exclusivo com Splash, David Shore falou sobre isso, as semelhanças entre suas criaturas e o desafio de fazer um episódio sobre a pandemia de covid-19. O resultado, você confere abaixo:

House, o anti-herói

Interpretado por Hugh Laurie, o Dr. Gregory House fez história na TV —por mais de um motivo. O primeiro é que, com sua série, David Shore subverteu um pouco a estrutura dos "procedimentais", as produções com um caso por semana.

Sim, o protagonista continuava tendo que diagnosticar um paciente a cada episódio, mas ele, seus problemas e suas relações estavam sempre à frente da história.

Por oito temporadas, acompanhamos as tiradas ácidas de House, seus problemas com a perna, seu vício em analgésicos e sua dificuldade de se entregar em seus relacionamentos —seja com seus alunos, suas parceiras ou seu melhor amigo, James Wilson (Robert Sean Leonard).

O personagem é um perfeito exemplar parte da era dos "homens difíceis" da TV, centrada em figuras anti-heroicas como Tony Soprano ("Família Soprano"), Walter White ("Breaking Bad") e Don Draper ("Mad Men").

E foi trabalhando em "House" que Shore diz ter aprendido algumas das maiores lições de sua carreira:

Aprendi o mais simples, que é como tocar uma série por anos. Mas a lição mais real que aprendi é que não era uma série médica. A medicina tinha que estar correta, mas o foco não estava nela, e sim nas pessoas.

Obra do acaso

Depois do fim de "House", em 2012, Shore foi escrever em outros cenários: ele cocriou com Vince Gilligan ("Breaking Bad"), a comédia policial "Battle Creek", que teve apenas uma temporada; e assinou com Bryan Cranston a série "Sneaky Pete", sobre um golpista que foge de um mafioso. A produção teve três temporadas no Amazon Prime Video, ficando no ar de 2015 a 2019.

Mas ele seria levado de volta ao mundo médico ao ser apresentado —pelo ator Daniel Dae Kim— à versão original de "The Good Doctor", produzida na Coreia do Sul. Assim que viu o primeiro episódio da série, o showrunner foi fisgado: "Eu sabia que precisava contar as histórias daqueles personagens".

Nesse sentido, o cenário médico foi apenas uma feliz coincidência. "Uma série nesse ambiente me permite criar coisas que deixam o público tenso e interessado", diz.

Eu sei que isso pode soar bobo, mas, na minha mente, 'The Good Doctor' não é realmente uma série médica. Se você me perguntar sobre um episódio, eu vou saber te dizer tudo o que os personagens estavam fazendo, mas não teria ideia de qual foi o diagnóstico da vez.

Criando Shaun (e as semelhanças com House)

Shaun Murphy, o jovem médico vivido por Freddie Highmore em "The Good Doctor" (cuja terceira temporada é exibida no Sony Channel às segundas-feiras, 21h) é um protagonista difícil de se ver na TV: ele tem Síndrome de Savant, um distúrbio dentro do espectro autista. Por isso, ele tem grande capacidade intelectual, mas algumas limitações na forma de se relacionar com os outros.

Shaun pode ser muito honesto às vezes —o que Shore admite que o aproxima muito do Dr. House, somado às incríveis capacidades diagnósticas de ambos:

House é muito franco. Sem surpresas, há muitas semelhanças entre eles, mesmo que, na raiz, eles façam as perguntas de formas diferentes e busquem por respostas diferentes.

Para o showrunner, o grande diferencial de Shaun é que, em seu processo de aprendizado, ele acaba fazendo questões muito interessantes sobre o comportamento humano. "Ele se depara com questões e mesmo eu, que estou escrevendo, fico intrigado. Ele me permite explorar coisas que tomamos como certas", diz.

Shore cita, como exemplo, um momento da primeira temporada da série, em que Shaun pergunta a Claire (Antonia Thomas) em qual momento ela está sendo honesta como ele: quando ela é legal com ele ou quando ela não é?

Shaun faz essas perguntas porque ele não faz o que fazemos. Nós somos pessoas diferentes com nossos filhos, nossos pais, nossos parceiros, nossos amigos, nossos colegas de trabalho. Isso nos faz hipócritas ou são várias facetas de quem somos?

David Shore

Episódios pandêmicos

A pandemia de covid-19 teve (e ainda tem) um impacto gigantesco nas produções de filmes e séries, com atrasos, adiamentos e o estabelecimento de rígidos protocolos de segurança nos sets de filmagens. E "The Good Doctor" incorporou a doença em sua história, nos dois primeiros episódios da quarta temporada.

Não foi um processo fácil, já que, ao longo do ano passado, as informações sobre a pandemia foram mudando rapidamente —o que fez com que os episódios tivessem que passar por algumas alterações.

"Tinha momentos em que os médicos falavam 'isso pode funcionar', mas dois meses depois havia sido provado que aquilo não funcionava", lembra Shore —sem especificar a que se referia.

No fim, o showrunner e a equipe da série realmente optaram por focar nos sentimentos levantados pela pandemia.

As emoções dos médicos e dos pacientes; os desafios dos médicos que não conseguiam fazer mais pelos seus pacientes; a dor dos pacientes separados de suas famílias e morrendo sozinhos... Nós abraçamos isso.

Shore ficou orgulhoso do resultado, e se surpreendeu com a reação emocionada não só público, como também de jornalistas e outros profissionais da indústria. "Este último ano foi difícil. Vai demorar um pouco ainda para nos recuperarmos".

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