Topo

Gilberto Gil sobre Preta: 'Temos de lidar com a ameaça da morte'

Gilberto Gil - Nando Chagas/Divulgação
Gilberto Gil Imagem: Nando Chagas/Divulgação

De Splash, em São Paulo

02/06/2023 08h40

Gilberto Gil, 80, em entrevista à Veja:

"Idade pesa" na rotina frenética de shows. "A mobilidade e o fluxo energético são diferentes dos 20, 40 anos. Cantar ao lado da família ajuda, ela traz uma leveza. Já tinha experimentado trabalhar com um filho, depois outro, aí vieram os netos. Um dia, Preta, que não vai poder estar conosco agora, soltou a ideia: 'Vamos embora, pai, vamos juntar todo mundo numa turnê'. Aquilo ecoou fundo. Além da dimensão afetiva, eles se unem naquilo que é extraordinariamente prazeroso para mim, o significado da minha vida, que é ser músico".

Tratamento de Preta Gil contra o câncer no intestino. "É uma aflição ver uma menina, uma filha que nem tem 50 anos, sofrendo de uma doença apavorante. Falo com a Preta o tempo todo, com os médicos, e leio a respeito. Ela vive cercada pela família e estamos reunindo forças e propósitos para lhe dar o melhor tratamento, renovar sua disposição e sua positividade espiritual".

Juntamente a isso, temos de lidar com a ameaça da morte. Tenho dito palavras de resignação em relação àquilo que é inevitável, ao mesmo tempo que buscamos condições para a cura. Gilberto Gil

Morte do filho, Pedro, de 19 anos, em 1990. "Foi uma coisa que nos colheu de surpresa. Com o tempo, a ferida cicatriza, mas a memória, a saudade, isso aí não vai embora. A lembrança é presente, está nas fotos, nos momentos vividos com ele".

Crença de que todos são bissexuais. "Somos todos filhos de um pai e de uma mãe, o resultado de uma junção de genes de um e de outro. Portanto, somos todos bissexuais. Agora, o quanto e como isso influencia na condição masculina ou feminina e no exercício da própria sexualidade, aí reside uma variação infinita de possibilidades".

Especulações de affair com Caetano Veloso. "Não [me incomodou] Encarava essas especulações como consequência da nossa proximidade, dos nossos gostos e do encantamento mútuo. Talvez isso pudesse provocar fantasias a respeito do que seriam possíveis "desembocares" de sexualidade entre nós, o que sempre tratamos com naturalidade".

Atração por homens. "[Me sentir] atraído como tenho sido pelas mulheres, nunca. Nunca tive tesão num homem, como se diz. No entanto, por razões de delicadeza natural, educação, finura do trato, já tive proximidade com a sexualidade de outro, de outros".

Ele conta que já chegou a se relacionar com os outros homens. "Isso não afeta meu modo de ver o assunto na minha vida. Essas questões de amor, amizade, respeito, foram possíveis em momentos em que a sexualidade era uma coisa mais vibrante em mim".

O cantor nunca cogitou ter uma relação aberta. "Flora e eu somos abertos ao mundo, mas nunca especulamos nada na direção do sexo livre. Nosso convívio tem uma enorme benignidade. Há uma delicadeza no trato e, para todo mal que surge, a Flora é o próprio remédio".

Episódio de racismo. "Vivi um episódio emblemático em São Paulo, quando ainda não era conhecido. Procurei uma imobiliária, visitei um apartamento e decidi fechar negócio. Aí inventaram que havia sido alugado. Era nítido preconceito. À medida que fui me tornando figura pública e me empoderando, essas coisas diminuíram. Apesar de pequenos casos relatados por meus filhos, vejo um recato em manifestarem racismo contra a família Gil. Mas sabemos que ele está aí".

Avaliação da cultura no governo Bolsonaro. "Não dá para fazer uma avaliação porque não havia o mínimo apreço à vida cultural. O que existia era uma visão distorcida do que é o setor e as obrigações do poder público. Prevalecia um desprezo, a cultura era um nada".

A destruição da democracia esteve no horizonte. Mesmo após o governo Bolsonaro, na invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília, esses fantasmas estavam aí. Gilberto Gil

Ele diz que não teve participação na escolha de Margareth Menezes como ministra. "Quando soube, estava indicada. Falei a ela que um ministro da Cultura deve ter um gabinete ambulante, como eu tive, indo ao encontro das pessoas e dialogando o tempo todo com a vida cultural".

Avaliação do governo Lula. "Nesses primeiros meses, o vejo lutando com as dificuldades de um governo que não tem o benefício da continuidade, não podia dar prosseguimento a nada daquilo, e ainda enfrenta essa polaridade, para usar a palavra da moda, que tem aspectos nefastos. Como se resolve essa fratura? É um trabalho imenso. As ofensas vindas de bolsonaristas que sofri na Copa do Catar são reflexo desse divisionismo. Enquanto ficarmos nessa história de inimigos, o país perde".

Uso de maconha: "Como hábito, não. Eventualmente posso dar um tapa. Usei de 1967 até 2010, mas deixei porque passou a me dar uma leve taquicardia. Antes, gostava de fumar para tocar, cantar, compor. Costumo dizer que dois tipos de música não teriam surgido sem a maconha, bossa nova e reggae. Eu tenho poucas canções feitas efetivamente após ter usado maconha. Uma delas é Abra o Olho (que cantarola): 'Ele disse: abra o olho, caiu aquela gota de colírio'".

Experiência com outras drogas ilícitas. "Nunca gostei de cocaína. Durante o exílio em Londres, no pós-tropicalismo, tomei ácidos. Experimentei tudo que uma viagem lisérgica propicia — o surreal, o surrealismo e o cubismo. Esses experimentos me interessavam na época e se refletiam na atitude musical. Também era um elemento que ajudava na adaptação à vida fora e à atmosfera londrina. Caetano sempre foi "Caretano", nunca se interessou por essas viagens. Já Rita Lee era parecida comigo, apreciava essas experiências".

Crença em discos voadores, como Rita Lee. "Como se fala das bruxas, no creo em discos voadores, pero que los hay, los hay. Não posso dizer que vi coisas palpáveis, mas sombras, fantasmas de discos voadores, sim. Uma dessas visões foi na Bahia, para o lado de Itapoã, e a outra, perto de Brasília, na Estrada de Unaí".

Sequelas na voz após cirurgia em 2007. "Busquei fonoaudiólogos, terapeutas, mas já havia em mim o resultado do excesso e do mau uso da voz. Abusei dela numa dimensão lancinante de gritos, uivos, enfim, uma extensão animalesca. Hoje, tenho uma voz prejudicada na limpidez, na qualidade, e tive que aprender a adaptar seu uso".

Medo da finitude da vida após mortes de Gal e Rita. "Alguns momentos [me assusta] mais, outros menos, mas volta a assustar com perdas como agora, quando uma menina (Rita Lee), de 75 anos, se vai".

A minha vida é um trançado, um crochê com as de Gal e Rita. Nascemos no mesmo tempo na Terra e juntamos os instrumentos que Deus nos deu. Elas se foram, eu fico até sei lá quando. Não me vejo para sempre em grandes espetáculos, mas vou estar no palco eventualmente. Tenho quatro ou cinco músicas inéditas, apenas tocadas, sem letra ainda. Quero estar em conformidade, uma expressão de que gosto — vivendo conforme a idade. Gilberto Gil