Do mangue ao luxo

Sobre um terreno pantanoso e selvagem, há pouco mais de 100 anos surgiu Miami Beach, um dos balneários mais famosos do mundo

Miami Beach faz parte daqueles lugares que, mesmo sem nunca ter pisado lá, a gente tem a impressão de que já conhece. São filmes, séries e fotos que alimentam a aura em torno de uma das praias mais icônicas do mundo.

Para quem passou a infância vendo "Miami Vice" no SBT — lá nos anos 1980, o que já revela a idade —, circular na avenida Ocean Drive é quase um reencontro, décadas depois, com os detetives James "Sonny" Crockett e Ricardo "Rico" Tubbs.

Miami Beach entrega o que a lembrança promete. Estão ali os patinadores, os postos coloridos de salva-vidas e toda aquela vibe kitsch-cubana-americana (dos neons ao espanglish, o mix de inglês e espanhol que é quase a língua oficial).

"Miami Beach é um caldeirão cultural". Bem-define Yaniel Cantillo, um cubano que, como muitos, trocou a ilha de Fidel pela parte mais solar dessa América. Ele foi nosso guia em um passeio da Miami Culinay Tours que mescla gastronomia, arquitetura e história. "Mas nem sempre foi assim", antecipa Cantillo logo ao princípio do circuito.

De fato. No início aqui era, como dizem, tudo mato. No fim do século 19, Miami (que é o município vizinho, diferente de Miami Beach, vale ressaltar) começava a se desenvolver ao redor da recém-chegada ferrovia.

Do outro lado da baía Biscayne, aquilo que seria Miami Beach eram terras do fazendeiro John Collins. Na virada do século, sua família viu que o local tinha potencial para ter mais do que apenas palmeiras, areia e plantações de abacate.

O Hotel Brown, de 1915, foi o primeiro a abrir as portas na hoje famosa Ocean Drive — e, como você pode ver nas fotos, ainda está em pleno funcionamento. A faixa da praia ganhou quiosques de comida, mas o resto ainda era areia e mangue. Isso começava a mudar aos poucos, especialmente depois que os Collins construíram uma ponte de madeira de 4 km cruzando a baía até Miami.

Nos anos 1920, Miami Beach estava em alta. Industriais de outras regiões dos EUA construíram casas no balneário para fugir do inverno e a praia engatinhava na sua vocação como ícone da moda e do "ver e ser visto"

A cidade também ganhou novos hotéis. Entre eles, o Flamingo, um dos mais ousados empreendimentos de Carl Fisher, magnata da indústria automotiva que, ao lado de John Collins, transformou a cidade de pântano em balneário badalado.

Ainda nessa década, a geografia da cidade foi transformada por meio de dragagens e aterros. A maioria das ilhas artificiais da região surgiu nos anos 1920. Uma abertura conectou a baía ao oceano: a península de Miami Beach virou uma ilha.

O investimento em propaganda também era massivo, Páginas em revistas e anúncios em áreas movimentadas, como a Times Square, em Nova York, alardeavam as maravilhas de Miami Beach, "onde o inverno vai passar as férias de verão."

Até que tudo mudou com o Grande Furacão de 1926, que devastou partes da Flórida. Estima-se que até 25% da população tenha ficado sem moradia. Miami Beach precisou se reerguer, e assim ganhou um novo ponto turístico: o distrito art déco.

Nos anos 1930 e 40, para abrigar os turistas que aos poucos voltavam, Miami Beach ganhou pequenos prédios de apartamentos e hotéis que seguiram a estética art déco, estilo em voga nas décadas anteriores, mas que ganhou nova vida na cidade.

O distrito arquitetônico é considerado a maior coleção de edifícios art déco do mundo — e a estrela do passeio que fizemos com o guia Yaniel. Em uma breve caminhada, passamos por clássicos como o Avalon (sempre com um possante antigo estacionado em frente) e o Breakwater.

Mas a massa de turistas aponta as câmeras mesmo para um nem tão charmoso externamente: a Casa Casuarina. Isso porque foi ali que viveu (e foi assassinado) o estilista Gianni Versace, nos anos 1990. Hoje, funciona no local um hotel boutique.

E chegamos à praia em si! Porém, mais do que os icônicos postos dos salva-vidas, me chama a atenção outra história. Repare nesta foto. Pois é, durante a Segunda Guerra Mundial, Miami Beach desempenhou um papel crucial como centro de treinamento militar.

Milhares de recrutas foram treinados nestas areias e a presença dos soldados impulsionou a economia local, estimulando o crescimento da cidade. Após a guerra, muitos veteranos decidiriam ficar por ali, contribuindo para o rápido desenvolvimento da comunidade.

A expansão econômica do pós-guerra e a Revolução Cubana, em 1959, transformaram o perfil demográfico do sul da Flórida. Houve novas e maiores ondas migratórias do país de Fidel. Consequentemente, a comunidade cubana se tornou parte importante de Miami Beach.

A cultura pop também contribuiu um bocado para Miami Beach se tornar uma das praias mais famosas do mundo. Só o hotel Fontainebleau, um dos mais emblemáticos da cidade, apareceu em diversas produções dos anos 1950 aos 2020 — como na série "Maravilhosa Sra. Maisel".

Nos anos 1980 e 1990, quando a cidade passou por um ciclo de decadência e recuperação, séries e filmes de enorme sucesso (como "Scarface", nesta cena) recolocaram a praia no imaginário coletivo — e nos fizeram ter aquela sensação de conhecer Miami Beach mesmo sem nunca ter pisado lá.

Reportagem: Eduardo Burckhardt, com colaboração de Felipe van Deursen

Imagens: Eduardo Burckhardt, com fotos adicionais de Getty Images; Visit Miami; e Wikimedia Creative Commons.

Design: Bruna Sanches

* O jornalista viajou a convite do Visite Miami e da Gol Linhas Aéreas