"Espalhafatosos, pimpões"

Graciliano Ramos definiu dessa forma o estilo exuberante dos cangaceiros, que conciliava bravura e delicadeza

Adriana Negreiros Colaboração para Nossa Getty Images

No Brasil dos anos 20 e 30, não havia quem tivesse mais motivos para se esconder do que Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Jornais de todo o Brasil — e até do exterior — narravam, com tintas dramáticas, as façanhas e crueldades do Rei do Cangaço, o homem que tocava o terror pelo sertão do Nordeste. Prêmios eram ofertados para quem entregasse o fora-da-lei à polícia, vivo ou morto, de modo que o recomendável seria Lampião e seus sequazes aderirem a um certo minimalismo, quase uma camuflagem — tentassem, afinal, passar desapercebidos.

Mas qual o quê. Lampião estava preocupado com muitas coisas, mas a discrição, definitivamente, não estava entre elas. Em 1933, o escritor Graciliano Ramos — que dali a cinco anos publicaria o clássico Vidas Secas — escreveu a respeito da passagem do Rei do Cangaço na cidade Palmeira dos índios, em Alagoas, onde fora prefeito de 1928 a 1930.

"Quando Lampião esteve no município de Palmeira dos Índios, [...] trazia mais de cem homens que não se escondiam na capoeira nem transitavam em veredas. Corriam pela estrada real, muito bem montados, espalhafatosos, pimpões, chapéus de couro enfeitados de argolas e moedas, cartucheiras enormes, alpercatas que eram uma complicação de correias, ilhós e fivelas, rifles em bandoleira, lixados, azeitados, alumiando"

Em outras palavras, os cabras eram uns amostrados. Queriam mais era ser vistos e, por meio de suas vestimentas, ostentavam os valores associados àquele fenômeno do banditismo rural: opulência, honra, poder e invencibilidade. Uma estética traduzida em cores vibrantes, brilhos e intrincadas padronagens geométricas.

Estilo, de fato, nada básico — e cuja beleza faria com que ultrapasse as fronteiras do sertão nordestino e chegasse às passarelas dos grandes centros de moda do mundo.

Maria Bonita e Lampião na Quinta Avenida

Uma das mais brilhantes estilistas brasileiras a buscar inspiração no cangaço foi a mineira Zuzu Angel. Em novembro de 1970, ela apresentou a coleção International Dateline Collection I para uma plateia formada por endinheiradas e exigentes senhoras de Nova York. O palco do desfile foi a icônica Bergdorf Goodman, no número 745 da Quinta Avenida.

As modelos escolhidas por Angel exibiam-se em conjuntos ornados por cartucheiras de tiras de couro cruzadas na altura do peito, vestidos acinturados enfeitados por pedras brasileiras e chapéus de feltro com testeira tomada por moedas.

Mais do que o cangaço, sua inspiração eram as mulheres do bando, com destaque para Maria Bonita, esposa de Lampião. Também na plateia, a crítica de moda do jornal The New York Times, Bernardine Morris, admirou-se com o exotismo dos trajes. Aos seus leitores, tratou de recorrer a uma referência local para explicar, afinal, de onde a estilista tirara a ideia para aquelas roupas:

"São vestidos extravagantes que dedica a Lampião e Maria Bonita, bandidos lendários, espécie de Bonnie e Clyde brasileiros"

Resistência e delicadeza

Nos anos 70, quando Zuzu Angel levou o visual excêntrico dos cangaceiros para Manhattan, o modo de vida de Lampião, Maria Bonita, Corisco e Dadá (o segundo casal mais famoso do bando) era usualmente retratado com algum romantismo.

O inegável caráter de resistência dos seguidores de Virgulino — e de insubordinação ao esquecimento do sertão e à consagração dos valores urbanos — sobrepunha-se e acabava por ofuscar a violência intrínseca àquela experiência. Desse modo, os símbolos do cangaço transformaram-se em indumentária de valentia e fortaleza, sendo deixadas à parte brutalidade e opressão (contra as mulheres, especialmente).

Ao mesmo tempo que exala intrepidez e bravura, a plástica do cangaço também emana delicadeza e doçura. Lampião, homem capaz de sangrar seus inimigos até a morte, gostava de usar meias de seda sob as rústicas alpercatas com que pisava o solo esturricado do sertão.

Maria Bonita, cujo coração não doía diante do assassinato a pedradas e pauladas de uma companheira de bando — como ocorreu com Lídia, morta pelo companheiro Zé Baiano após ser acusada de traição conjugal — não deixava o acampamento sem um gracioso broche de ouro preso ao vestido.

Moda de nuances

Essa é a dubiedade que, no fundo, atravessa todas as circunstâncias do cangaço. No Brasil nordestino — e, principalmente, sertanejo — dos anos 20 e 30, homens eram celebrados por sua masculinidade exacerbadamente manifesta. Qualquer comportamento visto como afeminado era reprimido.

No entanto, algumas atividades tidas como notoriamente femininas nas grandes cidades adquiriam outra dimensão no sertão. É o caso da costura. Como herdeiro da cultura do vaqueiro — que produzia seus próprios gibões — Lampião era um exímio costureiro. A roupa tinha uma função muito mais abrangente do que simplesmente cobrir o corpo: era um uniforme de guerra.

Saber manejar linhas e agulhas, portanto, atestava vocação para a batalha, não homossexualidade, como se pensava na cidade. Tanto assim que, quando o bando foi filmado pelo sírio-libanês Benjamin Abrahão em 1936, Lampião deixou-se retratar, com muito orgulho, pilotando uma máquina de costura Singer.

Cores e bordados: a presença feminina

Foi somente no início dos anos 30, quando as mulheres entraram no bando de Lampião, que as roupas e acessórios do cangaceiros ganharam a aparência única que sobreviveria a mais de oito décadas. A primeira cangaceira a ingressar no grupo, Maria Bonita, não costurava tão bem quando Lampião, mas Dadá era uma mestre do ramo.

Dadá produzia as próprias bonecas de pano — quando foi raptada pelo futuro marido, tinha apenas 12 anos — e deu vida aos bornais, as bolsas de alças largas usadas pelos cangaceiros, aplicando sobre as peças bordados de formas geométricas e motivos florais multicoloridos.

As mulheres também disputavam entre si — incentivadas pelos homens — o posto de mais arrumada do grupo. Quanto mais luxo ostentassem, maior era o poder do cabra ao qual pertenciam (no bando de Lampião, os cangaceiros consideravam as mulheres suas propriedades).

Além do broche, Maria Bonita gostava de usar, no pescoço, sete correntes de ouro que haviam pertencido a Joana Vieira de Siqueira Torres, a baronesa da cidade alagoana de Água Branca, cujo casarão fora invadido por Lampião em 1922.

Ao passo que se destacavam nos acessórios, as mulheres não conseguiam inventar com as roupas. Tinham, basicamente, dois tipos de vestimenta. No dia a dia, adotavam o vestido de batalha, de mangas compridas e na altura do joelho, feito com pano resistente para suportar as incursões pela caatinga.

Apesar do calor, usavam meias grossas e perneiras de couro de bode — o objetivo era proteger a pele dos espinhos. Pelo mesmo motivo, também calçavam luvas; estas, sim, um pouco mais caprichadas — era comum que se dedicassem a bordá-las com motivos florais. Quando a ocasião propiciava algum sossego, como nas temporadas em fazendas de coronéis aliados dos cangaceiros, usavam vestidinhos de seda.

Espantalhos do sertão

No caso dos homens, a quantidade de enfeites no chapéu (à semelhança de como se ornava sua mulher), era proporcional ao poder do cabra. Um dos mais bonitos de Lampião, feito de couro de veado, exibia cerca de 70 moedas de ouro, além de estrelas de oito pontas bordadas nas abas.

O guarda-roupa básico dos rapazes consistia de camisa de pano cáqui ou azul, com calças de cós alto e pernas curtas, para permitir o uso das perneiras de couro. O Rei do Cangaço preferia os botões de ouro. Em ocasiões especiais, escolhia camisas listradas.

O que dava aos cangaceiros a aparência de verdadeiros espantalhos eram as cartucheiras cruzadas no peito, os diversos bornais coloridos carregados de dinheiro e mantimentos e os enormes chapéus reluzentes. Seus corpos adquiriam a serventia de verdadeiros cabides ambulantes, onde penduravam tudo, de cobertores a fuzis, de modo a precisarem andar com os braços esticados afastados do corpo.

Produziam, por onde passavam, uma imagem de morte e vida; de medo e fascinação; violência e resistência unidas em uma mesma simbologia. Uma estética que sobreviveria à história e seria traduzida em obras de inconfundível — e desconcertante — beleza.

Inspiração perene

Quase um século depois, influência do cangaço permanece na arte

A estética do cangaço continua a inspirar artistas mais de 80 anos após a morte de Lampião e Maria Bonita. Os calçados imitam o desenho das alpercatas. As bolsas copiam os bornais dos bandoleiros. Nas roupas, a influência manifesta-se nas estampas, com profusão de símbolos que remetem aos personagens, objetos e cenários do maior fenômeno do banditismo rural. A influência também permanece na decoração — e vai muito além das esculturas de barro vendidas nas feiras para turistas do Nordeste.

Espedito Seleiro

O cearense de Nova Olinda foi o primeiro a fazer sucesso com os calçados ao estilo dos cangaceiros. Filho e neto de seleiros (o pai, reza a lenda, fazia sandálias para Lampião), também produz bolsas e móveis.

Adriana Meira

A artista plástica baiana radicada em São Paulo produz roupas sustentáveis com motivos sertanejos, como este vestido em homenagem à Maria Bonita.

Formosa Bandida

A marca de roupas de Fortaleza tem camisetas, camisas e vestidos com motivos do cangaço, como esta azul, com fileiras de cangaceiros simulando o desenho de uma cartucheira.

Dona Maria do Barro

As peças de cerâmica são obra dos artistas da zona da mata, agreste e sertão pernambucanos. O vaso Maria Bonita é todo pintado à mão, com grafismos que lembram as estampas dos bornais

Arte/UOL

As cores dos sentimentos

As fotografias que ilustram esta matéria são, originalmente, todas em preto e branco. Ganharam cores pelas mãos do artista e geólogo Rubens Antônio, de Salvador, por meio da colorização digital. Antônio trabalha com a técnica desde 1994, quando começou a tratar imagens de mapas antigos, minérios e mamíferos — boa parte deste material compôs seu primeiro livro, História Geológica da Bahia, publicado em 2010.

Os primeiros dezesseis anos de experiência no ramo levaram o geólogo a desenvolver não apenas uma prática de colorização, como também uma teoria. Rubens Antônio procurou fazer uma investigação às origens dos tons de cinza das fotografias. Por meio de um programa de tratamento de imagens, conseguiu percorrer um caminho de volta do cinza até seu "ponto mais basal", como define. Uma vez chegado a esta espécie de marco zero, passou a aplicar cores aos detalhes, bem como volumes e texturas, com o objetivo de "recuperar uma realidade irredutivelmente rompida pelos tons de cinza chapados".

Em 2010, Rubens Antônio impôs-se um desafio que acabaria por popularizar o seu trabalho: a colorização das imagens históricas do cangaço. O primeiro cangaceiro a ser retocado por Antônio foi o pernambucano Jararaca, personagem central da tentativa frustrada da invasão do bando de Lampião à cidade de Mossoró (RN), em 1927.

Na época, o artista publicou a foto na rede social Orkut e o post foi um sucesso entre os amantes do cangaço. Na sequência, Antônio passou a dedicar-se a outras fotografias históricas do bando, especialmente aquelas feitas pelo sírio-libanês Benjamin Abrahão em 1936. Atualmente, publica o resultado das restaurações em seu perfil no Facebook.

A decisão sobre as cores a serem usadas dá-se a partir de três eixos: a certeza, a probabilidade e a possibilidade. Com base em investigações históricas, ele define os tons das paisagens e aparência de seus personagens. Na sequência, volta-se para os detalhes sobre os quais não se tem certeza sobre como eram — então se orienta pelos indícios. Por fim, debruça-se sobre os pormenores mais obscuros, aqueles a respeito do qual não há informações. Nessas horas, dá asas à imaginação, mas com os pés no chão: escolhe cores que proporcionem à imagem, além de beleza, realismo e sentimentos.

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