Beleza Bruta

Nesta ilha vulcânica, portugueses enfrentam a natureza para produzir vinho em uma das paisagens mais remotas e hostis do mundo. Conheça a Ilha do Pico.

Por Marcel Vincenti, da Ilha do Pico (Açores)

No remoto arquipélago de Açores, a Ilha do Pico abriga a montanha mais alta de Portugal, um vulcão com 2.351 metros de altitude que ajudou a dar origem a paisagens belas, brutas e, literalmente, inebriantes.

Aqui, são produzidos deliciosos vinhos em um cenário extraterrestre: o solo vulcânico é escuro, duro, pedregoso. O horizonte selvagem faz o contraste: de um lado, o mar azul, do outro, colinas verdejantes.

A ilha está a 1.663 km de Lisboa. Há voos diretos da capital, com cerca de 2h45 de duração.

Nosso avião pousa na ilha sob fortes ventos. Em terra, um enigma: dentro do carro, passamos por propriedades rurais cortadas por muros de pedra que formam pequenos recintos retangulares. O que é isso?

O método de cultivo das videiras é único: elas são plantadas entre muros de pedra com pouco menos de 1 metro de altura. O solo vulcânico é aquecido pelo sol e ajuda a criar um microclima que favorece a maturação das uvas.

Caminhando junto ao Atlântico, Filipe Rocha, sócio da vinícola Azores, me explica que os muros de pedra são, no ambiente hostil da ilha, essenciais para a sobrevivência das vinhas.

Precisamos de sol para a maturação, mas nas partes mais altas, em volta do vulcão, há sempre nuvens. Por isso, as vinhas foram plantadas perto do oceano. Os muros as protegem dos ventos e do sal que vêm do mar"
Filipe Rocha

A Ilha do Pico começou a ser povoada no século 15. E as vinhas foram uma das poucas plantações que vingaram em seu duro solo vulcânico, virando cultivo predominante ao longo do tempo.

Mas criar os muros foi só um dos desafios. Para plantar as vinhas, os picarotos (como são chamados os habitantes da ilha) precisavam abrir fendas no solo pedregoso. Essa luta contra a terra inspirou um texto do escritor açoriano Dias de Melo.

Pedra. Por cima da terra, por baixo da terra, a transbordar da terra nos abismos do oceano! Mas os desgraçados ergueram a fronte. Sucumbiram, mas combatendo, braços entesados e mãos crispadas, a grande batalha contra as pedras negras da Ilha"

Entre muros, as videiras crescem rasteiras. Até hoje, os bravos picarotos colhem as uvas manualmente, costas curvadas sob o sol. E todo esse esforço traz resultados.

Hoje, a Ilha do Pico produz excelentes vinhos (principalmente brancos) feitos com castas típicas, como Arinto dos Açores e Terrantez do Pico. Nos rótulos, a orgulhosa inscrição: "terroir vulcânico".

Na sala de degustações, Filipe Rocha enche nossas taças. O vinho Arinto dos Açores é amarelo citrino e agrada com um aroma mineral e notas cítricas. "A proximidade das vinhas com o mar dá uma característica de salinidade aos vinhos", ele explica.

No passado, os vinhos do Pico eram apreciados pelos czares, o que inspirou o nome do vinho Czar, um dos mais caros da ilha: o preço da garrafa pode passar dos 500 euros.

O responsável pelo Czar é o produtor Fortunato Garcia, que promove jantares harmonizados em uma rústica sala cheia de barris que lembra uma taberna do século 18.

Nosso vinho é produzido a partir de vinhas centenárias, totalmente natural, sem adição de qualquer tipo de álcool, açúcar ou leveduras"

Fortunato Garcia

O vinho traz dinheiro e turismo: a Ilha do Pico tem hoje um Museu do Vinho, opções de hospedagem aconchegantes (como a Adega do Fogo, com esta piscina com vista para o vulcão) e o edifício arrojado da Azores, com restaurante sofisticado e quartos.

Criada na ilha, Sandra Amaral nos recebe em sua Adega Lucas Amaral, com vista para o Atlântico: no menu, receitas dos Açores como lapas e caranguejos, além de vinhos feitos por seu filho, Lucas Amaral.

A uva representa muito para nossa cultura. Desde pequeninos, cultivamos as vinhas com nossos pais e avós. O vinho é nossa história e nosso meio de vida"

Sandra Amaral

Damos tchau à simpática Sandra e subimos no carro do guia açoriano Nilton Goulart, que conduz passeios que vão além das vinícolas. No caminho, vilarejos com casas, igrejinhas e adegas construídos com pedras vulcânicas.

Levamos turistas a pé ao topo da montanha mais alta de Portugal. O roteiro dura cerca de 8 horas e almoçamos na área da cratera. A caminhada é cansativa, mas incrível"

Nilton Goulart, da Hominis natura

Com litoral pedregoso, praias não são o forte da Ilha do Pico. Mas é possível embarcar em passeios para ver baleias e golfinhos. A Aqua Açores é uma das empresas que realizam o tour.

Tente ficar pelo menos 5 dias na Ilha do Pico: é um bom tempo para visitar as vinícolas, fazer degustações, subir a Montanha do Pico e ver as baleias.

Melhor época
No verão europeu, de junho a setembro. A colheita das uvas é entre agosto e setembro. Quer ver baleias? Melhor ir entre abril e maio.

Reportagem: Marcel Vincenti
Edição: Eduardo Burckhardt
Design: Bruna Sanches
Fotografias: Marcel Vincenti, Rui Castro, divulgação: Azores Wine Company/Direção Regional dos Assuntos Culturais/Museu do Pico/Hominis natura/Aqua Açores, Gettyimages