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Carne na lata é tradição da culinária caipira que ganhou status de iguaria

Carne conservada em lata: tradição caipira no Brasil que ganhou nome fino na gastronomia Imagem: Getty Images/iStockphoto

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

16/01/2023 04h00

Morador de Lagoinha, cidadezinha com menos de 5 mil habitantes no interior de São Paulo, José Roberto Landim tem 50 anos de idade e só 26 anos de convívio com a eletricidade — foi só em 1997 que a energia chegou à zona rural do município e ele conseguiu, finalmente, ligar uma geladeira na tomada de casa.

Até então, o jeito era conservar a carne do mesmo jeitinho que faziam sua mãe, Maria Rita, e sua avó, Filipina: fritar bem devagarinho e armazenar dentro da banha.

" É um negócio antigo, do tempo que não tinha geladeira. A gente matava um porco bastante grande, de até 10 arrobas, e guardava a carne na lata", recita Landim, que não perdeu o hábito depois do advento da refrigeração. "

"O bom é que, quando chega visita, a comida está pronta e a gente pode servir mais rápido."

Carne de porco, pato e ganso pode conservada em lata ou vidro Imagem: Getty Images/iStockphoto

O processo que Landim aprendeu com a sabedoria caipira tem nome chique nas cozinhas da França: confit. Segundo Myrna Corrêa, autora do "Dicionário de Gastronomia" (Matrix), trata-se de uma das formas mais antigas de conservação de alimentos, que pode ser aplicada a carnes de ganso, pato e porco, entre outras.

"As carnes são cozidas lentamente em gordura, que age como conservante e amaciante. Após a cocção, a carne é conservada, geralmente, em recipiente de barro ou vidro, sem contato com o ar e a luz", explica a autora.

Tradição conservada

Pelas cozinhas interioranas do Brasil, é o porco que impera nesse preparo. A receita, passada de pai para filho, é um dos pontos altos do dia da matança do porco, quando parentes e vizinhos se reúnem para abater o animal que passou os últimos meses na engorda.

Como é carne que não acaba mais, diferentes preparos ajudam a aproveitar o bicho inteiro, do focinho ao rabo. Somente pernil, lombo e interior da paleta são destinados às latas. Há muita ciência nessa escolha, já que carnes sem ossos têm maior durabilidade.

Na lata ou no vidro, entram várias partes do porco Imagem: Getty Images/iStockphoto

"Não é pelo fato de serem cortes nobres, porque o caipira não olha para a carcaça da mesma forma que o caboclo da cidade. O pé de porco é tão disputado quanto o lombo", garante o chef Rafael Cardoso, o Rafa Bocaina, que mantém o ritual no sítio onde vive, em Silveiras (SP).

Hoje, todos os rincões da Serra da Bocaina têm luz elétrica, mas a carne da lata continua sendo uma iguaria. A gente faz por prazer."

Como fazer carne em lata

Na hora do preparo, não pode ter pressa. Temperados com sal, alho e pimenta-do-reino, os pedaços de carne são fritos bem devagarinho, ao longo de horas, na própria banha suína. E nem adianta querer inventar temperos muito diferentes, como adverte Angelita Gonzaga, chef do restaurante Celeiro Arimbá, em São Paulo.

"Se você põe ervas frescas, elas queimam durante a fritura. Pode até colocar uns ramos inteiros de alecrim antes, mas o certo é removê-los na hora de fritar."

Banha do próprio animal ou comprada em mercado garantem o preparo Imagem: Getty Images/iStockphoto

Na roça, usa-se a gordura do próprio porco que foi abatido, mas quem vive na cidade grande já encontra banha de qualidade nos empórios e mercados.

É fundamental que, no fogo, a gordura não atinja temperatura muito alta. Como fazer esse controle no fogão a lenha? Taí outra sabedoria caipira. "A gente vai pingando um pouquinho d'água, para que a gordura não passe dos 100ºC", ensina Rafa.

Já bem fritinhos, os pedaços de carne vão para um recipiente fechado, ao abrigo da luz e do contato com o ar, dentro da própria banha, que solidifica e adquire textura pastosa.

A lata é o material mais usado no interior, mas vale apelar para o vidro e até para o pote plástico com tampa hermética. O segredo, ensina Angelita, é ter cuidado para que nenhuma pontinha de carne escape da proteção da gordura, o que compromete a conservação. "Costumo armazenar em latas pequenas, para usar o conteúdo todo de uma vez só", ela diz.

Validade impressionante

Fechada a tampa, Rafa aconselha esperar de uma semana a 15 dias antes de comer, para apurar o sabor. Melhor ainda se for depois de um mês. Depois disso, o tempo de validade é impressionante.

Fora da geladeira, dura até uns três meses se estiver em local fresco. Na refrigeração, é ainda maior. Abri recentemente uma lata que guardei na câmara fria por dois anos, estava deliciosa", diz o chef.

Na hora de servir a carne na lata, não há regras. Se a visita chegou sem avisar, como é costume na roça, basta jogar carne e gordura na panela e esperar borbulhar.

No Celeiro Arimbá, Angelita serve a iguaria como sugestão do dia, na companhia de tutu de feijão ou de feijão tropeiro. Mas os cortes também rendem belos sanduíches e entram naquela farofa rica, que a gente respeita.

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