Cemitério de clubes

Como a Segundona do Paulista matou times tradicionais

Luis Augusto Símon (Menon) Colunista do UOL Getty Images/iStockphoto

A 'segunda' que é quarta divisão

O nome é simpático e carinhoso, mas ela, a "Bezinha", é falsa e traiçoeira. Falsa porque não é a Segunda Divisão do futebol paulista. É a Quarta. E é traiçoeira, já que em 2023 pode ser o campeonato mais difícil do Brasil, quiçá do planeta.

São 36 participantes. Dois vão subir para a A-3, Terceira Divisão, e 14 vão se manter. Os outros 20 - sim, 20 - conhecerão a triste verdade: há um alçapão no fundo do poço e, em 2024, cairão para a Quinta Divisão - ainda sem nome - criada pela Federação Paulista.

Ou seja, sobem dois e caem 20. Terrível.

Formato amargo

A primeira fase, que já está indo para sua terceira rodada, divide os 36 clubes em seis grupos de seis. Os enfrentamentos são dentro da chave, em turno e returno. Dez jogos para cada um. Os quatro primeiros vão para a segunda fase. Os dois últimos de cada grupo formam os 12 primeiros rebaixados.

Na segunda fase, são seis grupos de quatro. Novamente turno e returno e seis jogos para cada um. Os dois primeiros de cada grupo e mais os quatro melhores terceiros vão para a terceira fase e os outros que sobrarem completam o grupo de 20 rebaixados. Ufa!

Sobraram 16. O mata-mata está instalado. Ao final, dois subirão para a A-3. Seis jogos para subir e oito para ser campeão. Os outros 14 receberão Barretos e Audax, rebaixados da A-3, e formarão a "Bezinha" do ano que vem. Que continuará falsa pelo nome, mas um pouco menos traiçoeira, com dois caindo e dois subindo.

Tradicionais (e vivos)

E como equipes tradicionais, inclusive um campeão da Copa do Brasil, times que revelaram jogadores de Copa do Mundo, para Brasil ou Espanha, foram chegar a esse cemitério futebolístico, reservado a jogadores com menos de 23 anos e sem uma cota da Federação para iniciar os trabalhos?

Há uma premiação para quem passa de uma fase para outra. Os valores não foram definidos, mas no ano passado, o campeão ganhou R$ 350 mil. Um campeonato que praticamente ninguém vê, a não ser a mídia local.

O que Paulista de Jundiaí, Rio Branco de Americana, União São João de Araras, XV de Jaú e América de Rio Preto e Mogi Mirim (mostramos a situação dele nesta reportagem aqui) estão fazendo aí? Como decaíram tanto? As respostas variam, desde administrações desastrosas, culpa do azar, da presença da China debilitando a indústria têxtil brasileira até a Lei Pelé. É a história que vamos contar.

Fernando Santos/Folha Imagem Paulista fez história em 2005 ao derrotar Fluminense e vencer Copa do Brasil

Paulista fez história em 2005 ao derrotar Fluminense e vencer Copa do Brasil

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Paulista, de Jundiaí

Da emoção do título da Copa do Brasil de 2005 ao improviso com rifa de medalhas

É difícil um pai torcedor do Paulista fazer seu filho continuar a tradição da família. Difícil o garoto acreditar que em 22 de junho de 2005, o time de seu coração venceu a Copa do Brasil. Sim, a mesma Copa do Brasil que o Flamengo ganhou ano passado.

O título veio com um empate sem gols contra o Fluminense, em São Januário, depois de vitória por 2 x 0 em casa. O time jogou com Rafael; Lucas, Anderson Batatais, Dema e Fabio Gomes; Julinho, Juliano, Amaral e Cristian; Marcio Mossoró e André Leonel. O treinador era Vagner Mancini. Rever também fazia parte do elenco.

O trabalho de convencimento do pequeno torcedor fica mais difícil quando o pai diz que em 2004 o Paulista foi vice-campeão paulista e em 2006 venceu o River Plate, pela Libertadores, no Jayme Cintra. Sim. Venceu o River Plate. Pela Libertadores. Em Jundiaí.

Adilson Freddo acompanhou tudo como narrador da Rádio Difusora. "Acompanho esse clube há 40 anos e me dá uma tristeza muito grande ver o abandono atual. Jundiaí tem a oitava economia do estado e a 17ª do Brasil, e não é possível que ninguém se interesse pelo clube".

O jornalista Thiago Batista de Olim é bem mais novo. Dono do site Esporte Paulista, ele lamenta a falta de cobertura da equipe. "Se eu desse apenas informação do clube, morreria de fome. Trago notícias também de Várzea Paulista, por exemplo, que tem um campeonato amador mais forte que o de Jundiaí. Antes, havia quatro tevês, três jornais e duas rádios cobrindo. Hoje, apenas eu, o Jornal de Jundiaí, a TV Tem e a Rádio Difusora".

A decadência do Paulista começa em 2007, quando a Parmalat rompeu, após cinco anos, um contrato de 30 anos. O clube voltou a apostar em outras parcerias e não houve resultado.

Uma delas com o Campus Pelé, que traria um aporte financeiro do Banco Fator. O projeto era comandado pelo professor João Paulo Medina e não deu certo.

As dívidas foram aumentando e o clube caindo. Em 2020, fez a rifa de uma das medalhas ganhas em 2005. Cem números a R$ 10. Foram arrecadados R$ 1.000 e um pedaço da história no lixo.

Hoje, o presidente é Rodrigo Peterneli Alves, ex-comandante da torcida Raça Tricolor. Ele comemora a presença de 71 patrocinadores no clube. "É tudo permuta. A padaria que fornece pão para o café, o supermercado que oferece alimentação, plano de saúde e odontológico. Nós captamos R$ 140 mil mensais e temos uma folha salarial de R$ 60 mil."

Ele comemora também um trabalho de mapeamento das dívidas, o que coloca o clube pronto para receber uma SAF. O estádio Jayme Cintra está liberado para 15 mil pagantes e o clube contratou Roberval Davino (apelidado de Roberval Divino), que levou o Comercial às quartas da Série A-2. "Estamos prontos para subir", diz o presidente.

Subir pode ser uma conquista mais factível para aquele pai do início do texto, que deseja convencer seu filho das distantes glórias do Paulista.

Se eu desse apenas informação do clube, morreria de fome. Antes, havia quatro tevês, três jornais e duas rádios cobrindo o Paulista. Hoje, apenas eu, o Jornal de Jundiaí, a TV Tem e a Rádio Difusora"

Thiago Batista de Olim, jornalista do Esporte Paulista

Americana era chamada de Princesa Tecelã. Hoje, ainda há grandes tecelagens, mas as pequenas faliram por causa da concorrência chinesa. A economia da cidade foi piorando e refletiu no clube"

Gilson Bonado, presidente do Rio Branco

O União sempre foi um time respeitado. Ficamos 18 anos seguidos na série A do Paulista. Aí, começou a cair. O motivo? Simples, uai. Acabou o dinheiro. Em 2005, começou a decadência"

José Mário Pavan, presidente do União São João

Getty Images Marcos Senna se destacou no Rio Branco, de Americana, e brilhou na Euro pela Espanha em 2008

Marcos Senna se destacou no Rio Branco, de Americana, e brilhou na Euro pela Espanha em 2008

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Rio Branco, de Americana

Berço de craques, clube sentiu efeitos da Lei Pelé e da crise na cidade

Se alguém fizer uma seleção de jogadores revelados pelo Rio Branco de Americana, com certeza colocará Marcelinho Paraíba, Macedo e Sandro Hiroshi no ataque. E Thiago Ribeiro? E Souza? Anaílson? Todos com passagens posteriores em grandes clubes.

Difícil será montar o meio-campo. Como escolher três ou quatro entre Flávio Conceição, Marcos Assunção, Marcos Senna, Mineiro e Alexandre Pitbull? Eles tiveram passagens por grandes clubes, seleção brasileira e até espanhola, como Marcos Senna.

Revelar, montar bons times, vender, revelar, montar bons times, vender? Sempre foi assim com o Rio Branco. Até que a Lei Pelé surpreendeu o clube. "Perdemos os direitos sobre jogadores e não soubemos segurar a base", diz Gilson Bonado, o atual presidente.

A decadência veio forte. O clube, que chegou a ter 15 mil sócios, tem 600 e luta para chegar a mil. E Americana passou por uma grande crise também. A indústria têxtil perdeu muito de sua força com a chegada de produtos chineses.

"Americana era chamada de Princesa Tecelã. Hoje, ainda há grandes tecelagens, mas as pequenas faliram. No início, os chineses vinham com o fio cru, para fazer o tecido aqui. Depois, o tecido cru, depois o tecido estampado e agora vem a confecção pronta. A economia da cidade foi piorando e refletiu no clube", diz o presidente.

O apoio da Prefeitura foi importante em 2012, quando o Rio Branco foi campeão da A-3. Em 2014, o prefeito Diego de Nadai, que incentivava o time, foi cassado. E o Rio Branco caiu para a A-3 em 2016 e para a Bezinha em 2018. "Realmente, o prefeito De Nadai ajudava muito. O atual prefeito, Chico Sardelli, também ajuda com bom relacionamento, mas sem verba pública", conta Bonadio.

Ele comemora o deferimento da recuperação judicial do clube. As dívidas e juros foram congelados mediante a apresentação de um plano para o pagamento. "Temos ainda R$ 6 milhões em dívidas, mas com a recuperação judicial, elas serão pagas de acordo com as receitas".

É o primeiro passo para a constituição de uma SAF. "Vamos ter dinheiro novo. Faremos a separação do associativo com o futebol, o estádio será transformado em uma arena e o terreno de 40 mil m2 terá um shopping".

Enquanto os planos não são concretizados, o Rio Branco nem pensa em cair. Contratou o treinador Marcus Paulo Grippi, com passagens por Caldense e Portuguesa-RJ, e trouxe 17 jogadores novos. Quem sabe um deles não consiga o sucesso de tantos outros que já passaram pelo Rio Branco?

União Mania.com/Reprodução Time do União São João no início dos anos 90; clube lançou Roberto Carlos

Time do União São João no início dos anos 90; clube lançou Roberto Carlos

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União São João, de Araras

Time que lançou Roberto Carlos viu dinheiro acabar e, hoje, é apoiado por ex-jogadores

José Mário Pavan é o mais longevo presidente de clube de São Paulo. Está à frente do União São João de Araras desde 1991. E, quando faz uma retrospectiva de seus mandatos, é impossível não lembrar de Roberto Carlos, o Rei e não o lateral que ele viu surgir, vindo de Garça. "Foram muitas sensações diferentes. Já subi, já caí, já tive alegrias e tristezas. Agora, estou acreditando no acesso". São muitas emoções, bicho.

Pavan tem orgulho de seu passado. "O União sempre foi um time respeitado. Ficamos 18 anos seguidos na série A do Paulista, 12 anos consecutivos na Série B do Brasileiro e quatro na Série A do Brasileiro. Aí, começou a cair'.

E qual foi o motivo? "O motivo? Simples, uai. Acabou o dinheiro. Era rentável, tudo era equilibrado e de repente, faltou dinheiro. Não tinha mais revelação para vender. Em 2005, começou a decadência".

Teve azar também. "Foram cinco anos seguidos que a gente bateu na trave, faltava um ponto aqui, um ponto ali, uma derrota inesperada. Agora, estamos reorganizando a base e fechamos uma parceria com dois ex-jogadores, o Thiago Bernardi e o Sandro Hiroshi. Vai dar certo, vamos ficar entre os 16 e depois lutar pelo acesso."

Thiago Bernardi é de Araras. Foi um bom zagueiro e jogou no Santos. Sandro Hiroshi, revelado pelo Rio Branco de Americana, esteve no São Paulo. Eles formaram um grupo de cinco investidores e estão apoiando o time.

"Nosso grupo se chama 5k. Vamos investir R$ 600 mil em seis meses. Agora, é fazer o União descontar o tempo perdido."

Para Bernardi, o União precisa voltar a revelar jogadores como Roberto Carlos, Rogério, Leo, Fabrício e Chiquinho, que foi parar na Alemanha, e outros. "É o que pode salvar o time".

O treinador contratado foi João Batista, que foi volante na Inter de Limeira no título do Campeonato Paulista de 1986.

Reprodução/Instagram Estádio Zezinho Magalhães, em Jaú, recebe uma média de 5 mil torcedores por partida do XV

Estádio Zezinho Magalhães, em Jaú, recebe uma média de 5 mil torcedores por partida do XV

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XV de Jaú

Parceria com empresários colombianos e apoio da cidade são apostas para redenção

A história da queda do XV de Jaú, clube que revelou Edmílson, França, Wilson Mano e outros, é parecida com a de tantos. Não houve uma adaptação à Lei Pelé e o dinheiro das revelações acabou.

Houve uma tentativa com a formação de um grupo de empresários da cidade. Wagner Ribeiro, que depois ficaria famoso como agente de Kaká e outros jogadores, era um dos 20 investidores.

Até que deu certo em 1995, quando o time, que havia caído no ano anterior, subiu. Fizeram dinheiro com as saídas de Edu Schmidt, França e Edmílson.

No ano seguinte, o treinador era Cilinho, que apostou em um time formado pela base, apenas com garotos. Começou mal, contrataram veteranos e... nova queda. No ano seguinte, foi parar na A-3. Subiu em 2005 e caiu dois anos depois. Uma gangorra. Só que não subiu mais. Em 2013, estava na Bezinha e de lá não saiu mais.

"Está na hora", diz Careca Paiva, vice-presidente do clube e diretor de futebol. Ele é representante da Red Soccer, uma empresa de Valinhos, cujos donos são colombianos. "Viemos para cá pela tradição do clube e pela torcida apaixonada, que são dois grandes patrimônios", diz.

O presidente é João Vital Neto, que mora em São Paulo e só vai até Jaú nos finais de semana. A administração é toda de fora. E como a cidade participa? "Apoiando o time, indo ao estádio e indicando patrocinadores, além da estrutura física. O Zezinho Magalhães é um bom estádio."

O estádio, se o XV estivesse na A-1, poderia receber 18 mil pagantes. Como está na Bezinha, a lotação fica restrita a 9.999 pessoas. "Nossa torcida comparece com 5 mil, os rivais são pouquinhos, isso ajuda muito".

A paixão pode se transformar em ódio também. Em uma das tentativas frustradas de acesso, os colombianos foram alvos de ofensas xenófobas, com referências ao tráfico de drogas. Quase que a parceria acabou.

Para subir, o XV apostou em Campagnolo, ex-zagueiro do Noroeste, que fazia dupla com Vitor Hugo - famosos no interior - e que conseguiu dois acessos recentes, com o Grêmio Prudente e Matonense. "Estamos sempre chegando nas quartas de final. Esse ano, vai mudar", promete Careca Paiva.

Eduardo Durú/TV TEM Teixeirão é o estádio do América-SP, que tem SAF encaminhada e recebeu investimento milionário

Teixeirão é o estádio do América-SP, que tem SAF encaminhada e recebeu investimento milionário

Mirassol tem 70 mil habitantes e Novo Horizonte, 40 mil. Juntas, são menores que a zona Norte de Rio Preto. É inacreditável que tantas gestões ruins tenham levado o América a esse ponto"

Lucas Israel, Repórter do Diário da Região

Reprodução

América, de Rio Preto

Cidade viu vizinha Mirassol ganhar espaço, mas investimento pode mudar cenário

O elixir da salvação, ansiado por todos os clubes em má situação financeira, chegou em São José do Rio Preto. É anunciado pelo presidente Luiz Donizete Prietto, o "italiano". "Temos uma SAF muito bem encaminhada. Faltam detalhes, mas o aporte financeiro já começa a chegar agora, mesmo antes da concretização da parceria".

Ele fala de muito dinheiro. São R$ 18 milhões em quatro anos. O investidor é Rubens Romanini, que estava no Oswaldo Cruz.

Prietto conta o que foi feito para que a parceria vingasse. "Eu venci a eleição do América em 2017, mas os antigos tinham medo de gente nova no clube e não me deram posse. Fiquei como uma espécie de interventor, nomeado pelo juiz de direito, até que fui eleito em 2020, agora oficialmente".

Ele conta o que sentiu quando começou a trabalhar no clube, desde 2017. "Fiquei até assustado com o relaxo administrativo que o América vivia. Desde o começo, lutei para equacionar as dívidas do clube, para que a SAF pudesse chegar, como chegou".

O clube ainda deve em torno de R$ 8 milhões. E há outra notícia boa, segundo Prietto. "Vamos recuperar uma área de 16.400 m2 que o América havia perdido por causa de dívidas. Fazendo uma comparação, valia R$ 50 e foi arrematada por R$ 2. Entramos na Justiça para questionar e vamos ganhar".

A ideia do América - obsessão - é subir. "Agora, temos dinheiro para montar uma equipe competitiva. Nosso treinador era o Pinho, mas ele teve uma hérnia e precisou se afastar. Contratamos o Luciano Baiano, um jovem treinador, e trouxemos alguns jovens recomendados pelo Vílson Tadei, ex-jogador".

O acesso do América mudaria bastante a vida de Lucas Israel, repórter do Diário da Região. Embora viva em Rio Preto, cidade com 400 mil habitantes, sua cobertura diária é mais focada no Mirassol e no Novorizontino. "Mirassol tem 70 mil habitantes e Novo Horizonte, 40 mil. Juntas, são menores que a zona Norte de Rio Preto. É inacreditável que tantas gestões ruins tenham levado o América a esse ponto".

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