O Milan de Evinho

Aos 14 anos, menino com paralisia espástica fundou time de futebol em uma das favelas mais pobres de Recife

Ana Flávia Oliveira e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Rafael Dourado/Futebol Afiliados

Na comunidade dos Coelhos, um bairro pobre na região central do Recife, nasceu um garoto nos anos 1980. Brivan Marques, carinhosamente apelidado de Evinho, foi diagnosticado ainda bebê com paralisia espástica —uma doença neuromotora que o impede de mover braços e pernas voluntariamente.

Evinho foi uma criança protegida, mas não bloqueada: o pai deixava-o sentado na rua para que ele pudesse jogar futebol com outros garotos —ele adorava. Na adolescência, o irmão mais velho, Britshvan Marques, o Van, o levava para as peladas. Enquanto esperava sua vez de jogar, Van ficava com o garoto no colo. Quando entrava em campo, outro colega segurava Evinho, que assistia, fascinado, ao irmão jogar bola. Mesmo sem andar ou correr, o menino vivenciava o esporte que se tornaria sua grande paixão.

Aos 14 anos, torcedor assíduo do Santa Cruz e fã do italiano Milan, Evinho decidiu que queria dirigir um time. Convocou os pais e o irmão para ajudá-lo a criar um projeto social para levar o esporte que ele tanto ama para as crianças carentes de sua comunidade. As condições financeiras dos pais eram precárias, mas eles nem cogitaram dizer não ao filho. Em 14 de abril de 1998, nascia um novo Evinho e, junto com ele, o time Milan dos Coelhos, em homenagem justamente ao time italiano.

Correram atrás de uma bola, de coletes e de um espaço. Ainda hoje, mais de duas décadas depois dessa conversa, o time continua com poucos recursos. Aos trancos e barrancos, sobrevive, tira crianças e adolescentes do tráfico e faz Evinho viver o sonho todos os dias. Ao longo de 22 anos, mais de três mil crianças já foram atendidas pelo projeto. O único sonho que ele ainda não viveu —mas morre de vontade de realizar— é conhecer o inspirador Milan da Itália.

Rafael Dourado / Futebol Afiliados

"Quando era garoto, queria ser jogador profissional de futsal"

Arquivo Pessoal

Amor pelo futebol desde a infância

Atualmente com 50 anos, Bristhvan é 14 anos mais velho que o caçula Evinho. Diante da diferença de idade, das necessidades do irmão e do trabalho dos pais, Van —como o taxista é conhecido nos Coelhos— assumiu os cuidados com o irmão assim que ele nasceu.

"Morávamos com meus pais, meus dois irmãos e minha avó de mais de 80 anos. Minha mãe tinha dois empregos. Trabalhava em ambulância durante o dia e, à noite, no Hospital do Câncer de Recife. Meu pai também trabalhava muito. E eu, como mais velho da casa, cuidava do meu irmão. Fiz de tudo, só não dei de mamar: mamadeira, comida, colocava-o para dormir, levava para o hospital de madrugada quando precisava", relembra o irmão carinhoso.

Até a família descobrir a condição de Evinho, foram noites em claro, corridas ao hospital, internações, problemas respiratórios. "Ele era uma criança muito frágil. Nasceu prematuro, completou o tempo na incubadora e, depois, todo cuidado era pouco. A gente só diagnosticou a disfunção motora quando ele já tinha um aninho e pouco", explica o irmão.

Evinho é louco por futebol desde muito pequeno. Filho de ex-jogador de várzea (o pai dele jogou em vários times do bairro dos Coelhos), cresceu acompanhando o esporte. Apesar da influência da família, sempre foi ele quem decidiu sobre como o futebol tomaria conta de sua vida: torce para o Santa Cruz, enquanto o irmão é fã do Sport, e para o Milan.

Rafael Dourado/Futebol Afiliados Rafael Dourado/Futebol Afiliados

Sempre gostei do Milan. A maior geração do time que acompanhei foi a de 2007, quando o clube foi campeão do Mundial em cima do Boca Juniors. Eu até chorei nesse dia. Era a geração do Milan de brasileiros, com Kaká, Dida, Cafu e Emerson",

Evinho, que sonha em viajar até a Itália para conhecer o estádio Giuseppe Meazza e as instalações do Milan.

Apesar de ter casado e não morar mais na casa dos pais, Van está sempre por perto e continua sendo o responsável pelos cuidados com o irmão, ainda mais depois que os pais se aposentaram e o pai, Brivan Marques, de 77 anos, que já tinhas as pernas tortas, com a idade, precisou usar muletas para se locomover. Mas o taxista Van não reclama — ele gosta de fazer o papel de irmão/pai.

"A profissão me dá a flexibilidade de vir cuidar dele, porque todo dia eu tenho que vir, escovar os dentes dele, dar banho nele, cortar o cabelo dele, enfim cuidar das necessidades diárias dele, né? Desde 2012, meu pai não pode mais pegar o peso do meu irmão porque é muito pesado, então, eu tenho que vir à noite também colocar ele na cama", conta Van, que destina parte dos ganhos com o táxi para ajudar na manutenção do Milan dos Coelhos —na foto acima, ele e a mãe penteiam Evinho para uma sessão de fotos.

Rafael Dourado / Futebol Afiliados

O dia a dia do time

Os treinos de futsal acontecem às segundas, quartas, sextas-feiras e aos sábados; os de futebol de campo, às terças e quintas-feiras. O Milan dos Coelhos tem times com crianças, a partir de sete anos, e até de adultos. Dos alunos, todos de comunidades carentes de Recife, Evinho não cobra nada, apenas boas notas e frequência escolar.

É ele quem treina os meninos. Ou treinava. Todos os dias antes da pandemia, os jogadores mais velhos buscavam Evinho em casa para que ele comandasse os treinos. Os jogos eram aos domingos. O técnico contava com a ajuda de Wallysson Leite, conhecido como Lolinho, que foi assassinado em dezembro do ano passado —o motivo do crime ainda não foi revelado. Semanalmente, os pais das crianças também são procurados pelo treinador —é por essas conversas que ele fica sabendo do comportamento dos alunos. "São 150 alunos, então é difícil de acompanhar, mas a gente tenta ao máximo. Quando os meninos começam a faltar na escola ou a ter um desempenho ruim, a gente, primeiro, conversa. Se não resolver, a gente suspende dos treinos até esse comportamento mudar", explica Van.

A gente sabe que é difícil. Não só aqui, como em outros bairros, a grande dificuldade não é apenas o ensino. Aqui tem tráfico de drogas, tem aliciadores, e tudo isso preocupa. Quando chega algum aluno desmotivado para treinar, a gente sempre pergunta o motivo. É como uma família".

Van, irmão de Evinho.

Rafael Dourado / Futebol Afiliados

O Milan dos Coelhos tem 37 títulos. Os troféus, Evinho conta, ficam guardados em casa —e ele morre de orgulho de cada um deles. Financeiramente, entretanto, o time ainda vive em condições precárias. Há dois anos, Rafael Dourado, diretor de marketing da Futebol Afiliados, uma empresa de marketing esportivo de impacto social, chegou ao projeto. Inicialmente, o objetivo era apenas ajudar o Milan, mas ele gostou tanto do projeto que ficou. Mesmo com ele, e com uma receita criada por canais de marketing social, ainda são Van e os pais de Evinho que garantem que as contas são pagas. O dinheiro da aposentadoria de Seu Brivan e de Dona Lúcia é destinado, em sua maioria, para o Milan dos Coelhos.

"Algum tempo atrás, acabou o material esportivo, e minha mãe precisou fazer um empréstimo para comprar bola e rede. Poucas pessoas de fato se mobilizam para ajudar o time, que ainda não tem patrocínio", explica Van.

Arquivo Pessoal

"Perdemos de um time dirigido por um cadeirante"

Evinho é um esportista resignado. Diz ele que não se importa com as situações de preconceito que, infelizmente, ainda vive. Van, entretanto, afirma que há casos que abalam o irmão —e que a família sempre o relembra de seu propósito de vida.

"Quando eu sofro esse tipo de preconceito, não ligo. Já ganhei vários jogos e ouvi, em seguida, adversários nervosos porque perderam para um treinador cadeirante", conta Evinho. "Ouvi, uma vez, de um professor de Educação Física, que eu não sabia treinar um time. Eu não acreditei. Falei: 'Rapaz, como você, um professor de Educação Física, pode dizer isso para uma pessoa como eu?'", relembra.

O irmão afirma que, quando percebe que comentários maldosos afetam Evinho, tanto ele como os pais conversam com ele e tentam mostrar o outro lado da vida. "Mostro a ele que pessoas assim não respeitam o próximo, não sabem dar valor ao trabalho feito por um cadeirante. A gente tenta fazer com que ele se lembre do belo trabalho que faz".

Rafael Dourado/Milan dos Coelhos

Luto antes do fim do campeonato

Em dezembro do ano passado, o Milan participou de um campeonato como time federado. Foi o primeiro em quase 23 anos de história. O time de fut-7 adulto reuniu jogadores que já participaram do projeto social e chegou à final regional. Mas uma tragédia poucos dias antes do grande jogo abalou o time, que foi derrotado e não passou à final estadual.

Foi quando o auxiliar-técnico Wallysson Leite, o Lolinho, que também treinou no time durante a infância, foi assassinado.

"Para a gente aqui do projeto foi uma perda muito grande. Além de ele participar do time por todos esses anos, ele realmente amava o Milan dos Coelhos, era o time que ele falava que amava, junto ao Flamengo do Rio. A família dele toda sabia do amor que ele tinha pelo time. Esse crime, que aconteceu na semana da decisão, abalou todo mundo", diz Van.

"Eu não estava dormindo direito porque ele estava desde os cinco anos comigo. Ele era a minha mão direita", conta Evinho.

Rafael Dourado/Milan dos Coelhos Rafael Dourado/Milan dos Coelhos
DIVULGAÇÃO

Projeto de Evinho vira filme

A história do Milan dos Coelhos virou um curta-metragem pelas mãos de Rafael Dourado, o mesmo que chegou ao time há dois anos com um projeto de marketing social. O filme "Movido a Futebol", que custou cerca de R$ 10 mil (metade do valor de uma produção do gênero), foi selecionado para participar do Cinefoot (festival de cinema dedicado exclusivamente ao futebol) do ano passado.

Fotógrafo e diretor de marketing da Futebol Afiliados, Dourado conheceu o trabalho de Evinho por meio de um colega fotógrafo. Inicialmente, a ideia era ajudar o projeto a se autossustentar e sair de cena. Mas ele se apaixonou pela história de Evinho e do Milan dos Coelhos.

"Lá é tudo desorganizado porque tudo é para cuidar de Evinho. Não existe nada de gestão. Tudo se encaixa no dia a dia. A gente faz e vai apagando incêndio. O projeto tem 22 anos, mas não existe juridicamente. Isso é algo que eu me comprometi a resolver, transformar em uma ONG de verdade, conseguir verba via Lei de Incentivo ao esporte. Ter uma gestão ali. A ONG vai ser representada e chefiada pelo irmão dele [Van]. Mas ele precisa de uma ajuda na parte de comunicação, de gestão. Eu me qualifiquei muito para isso. Era para ser trabalho de empresa, mas está dentro do meu coração. Não é só mais o projeto".

Quando eu paro para reclamar de qualquer coisa, tal coisa está ruim, eu vejo essa história do Evinho como uma referência para não reclamar mais de nada. Só o fato de a gente poder andar, fazer qualquer coisa sem precisar de alguém o tempo todo já é um motivo para a gente acordar todos os dias muito feliz. E o cara que não tem isso e ele acorda feliz e rindo o tempo todo".

Rafael Dourado, responsável pelo marketing do Milan dos Coelhos

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