Adeus soberano

Hernanes rescinde com São Paulo e deixa apenas Miranda como remanescente de período dominante do clube

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Rubens Chiri / saopaulofc.net

O período de domínio do São Paulo no futebol brasileiro e continental vai ficando cada vez mais distante na memória do torcedor. A rescisão do contrato de Hernanes, selada ontem (16), também significou a saída de um dos últimos remanescentes de uma época em que os são-paulinos se autointitulavam "soberanos".

A autoestima elevada se justificava pelo que acontecia em campo. Em um período de quatro anos, entre 2005 e 2008, o São Paulo conquistou a Libertadores, o Mundial, um Campeonato Paulista e um —ainda inigualável— tricampeonato brasileiro. Hernanes foi peça importante de dois dos títulos nacionais.

Ao se despedir do clube pela terceira vez, o meia deixa o zagueiro Miranda como o último bastião dos tempos de glória —lembrando que o técnico Muricy Ramalho ainda dá expediente no CT da Barra Funda, mas como coordenador.

Antes de sair, Hernanes contribuiu para algo que incomodava os torcedores cada dia mais: encerrar jejum de oito anos sem conquistas.

Mesmo pouco utilizado na reta final, ele participou de sete partidas da conquista estadual. Sem entrar em campo desde o dia 1º de junho, Hernanes fechou acordo com a diretoria para encerrar sua história com a camisa do São Paulo.

Rubens Chiri / saopaulofc.net

O começo de tudo na Índia

Hernanes chegou ao São Paulo ainda nas categorias de base, mas sua história no clube pode começar a ser contada a partir de 2007. Depois de uma temporada emprestado ao Santo André, ele participou de uma excursão do time do Morumbi para a Índia. Foram para lá apenas os atletas que precisavam provar que tinham o necessário para ficar no atual campeão brasileiro.

"O Muricy pediu para eu não viajar com a equipe. Mas seu Juvenal [Juvêncio, então presidente do clube] e seu Marcelo [Portugal Gouvêa, então diretor de planejamento] foram e ficavam mandando notícias do Hernanes. Ele se saiu superbem lá. Quando voltou, a gente quis observá-lo mais de perto", relembra Milton Cruz, atualmente assessor-técnico do São Paulo e assistente de Muricy à época.

Hernanes foi um dos destaques daquela excursão. Foram três gols nos cinco jogos realizados pelo São Paulo em solo asiático. Ele passou a treinar com o time do São Paulo assim que voltou da Índia, para tirar seu nom da lista tricolor de negociáveis. Sua primeira chance com Muricy Ramalho foi em 8 de março daquele ano, contra o Guaratinguetá, pela 12ª rodada do Paulistão.

Hernanes entrou para não sair mais...

Ricardo Nogueira/Folhapress

O nascimento do Profeta

A titularidade de Hernanes resultou em uma parceria de sucesso com Richarlyson, que ocupou o espaço deixado pelos campeões mundiais Josué e Mineiro. A dupla atuou junta durante toda a campanha do título do Brasileirão. Uma conquista em que Hernanes confiava mais do que qualquer um.

O São Paulo já liderava a competição quando foi enfrentar o Palmeiras no Palestra Itália, pela 22ª rodada. Os oito pontos de vantagem sobre o Cruzeiro poderiam cair para cinco em caso de derrota.

"Foi nesse jogo que começou o apelido de 'Profeta'", relembra Milton Cruz. "Eu perguntei se ele achava que a gente seria campeão. Ele respondeu: 'você tem dúvida?'. Aí ficou. Depois de todo jogo ele chegava pra mim e falava: 'você ainda tem dúvida?'".

A profecia se concretizou, e o São Paulo conquistou o Brasileirão com 15 pontos de vantagem para o Santos. No ano seguinte, Hernanes se manteve titular, mas sua dupla agora se revezava entre Jean e Richarlyson. Ainda assim, o time do Morumbi conquistou o torneio nacional pela terceira vez consecutiva.

Hernanes abraçou o personagem "Profeta". As entrevistas com um vocabulário incomum e os hábitos curiosos, como escrever com o pé, ajudaram a moldar o jogador que caiu nas graças da torcida dentro e fora de campo. O apelido contou com uma ajuda do "Globo Esporte", da TV Globo. Sempre que uma declaração do meia ia ao ar, eles colocavam uma vinheta anunciando "o Profeta".

Alexandre Schneider/Getty Images Alexandre Schneider/Getty Images

A volta como herói

Se tem algo que o torcedor do São Paulo ainda usa para zoar os rivais Corinthians e Palmeiras é o fato de nunca ter sido rebaixado no Campeonato Brasileiro. Em 2017, o medo de essa máxima terminar era grande depois de a equipe somar apenas 16 pontos nas 16 primeiras rodadas.

Hernanes já estava fora do clube havia sete anos. Ele deixou o time do Morumbi rumo à Lazio, da Itália, em 2010. Depois passou por Inter de Milão, Juventus e Hebei Fortune (CHI), antes de voltar como herói.

O São Paulo acertou um empréstimo de um ano com a equipe chinesa para ter o meia durante a luta contra o rebaixamento. Uma cláusula não divulgada na época, no entanto, permitia que o Hebei Fortune solicitasse a volta de Hernanes seis meses depois da chegada dele ao Morumbi.

A possibilidade de perder o meia causou polêmica na época, principalmente pelo impacto que teve naquela equipe. Com Hernanes em campo, o São Paulo venceu nove jogos, empatou sete e perdeu seis, terminando o campeonato na 13ª posição com 50 pontos, sete a mais que o Coritiba, primeiro time rebaixado.

"Ele tinha um papel de liderança naquela equipe. Era respeitado principalmente pela postura que tinha, pelo exemplo. Era a típica liderança que não era pela voz, pela imposição, mas pela atitude. E esse tipo de liderança é fundamental", relembra Dorival Júnior, treinador do São Paulo naquela campanha.

Hernanes marcou nove gols e deu três assistências naquela campanha. Foi um dos anos mais artilheiros de sua carreira.

O Hernanes tinha um profissionalismo acima do normal. Havia momentos que tínhamos que pedir para que ele diminuísse o ritmo, porque era impressionante como ele trabalhava além até do que era estipulado e necessário

Dorival Júnior

A última profecia

Hernanes voltou com muita expectativa para sua última passagem pelo São Paulo. O clube chegou a apressar sua reestreia para que ele pudesse atuar contra o Talleres, na fase preliminar da Libertadores de 2019. Além de não ter sido suficiente para a classificação, a decisão ainda ajudou a aumentar os problemas com lesões que acompanhariam o meia durante toda aquela temporada.

O músculo adutor da coxa direita foi o que mais incomodou Hernanes naquele ano. Além de limitar seu tempo em campo, impedia seus chutes de fora da área, uma marca registrada. Na reta final, ele conseguiu se cuidar melhor e voltou com esperanças para 2020.

A temporada deu um novo papel para Hernanes. Com cada vez menos espaço entre os titulares, ele passou a ser um reserva de luxo do técnico Fernando Diniz. Por mais de uma vez, pensou em deixar o time do Morumbi, mas foi convencido a permanecer.

O pouco tempo em campo se somava a problemas pessoais enfrentados pelo meia. Em agosto passado, ele chegou a dizer que atingiu o fundo do poço, mas contou com a ajuda de Fernando Diniz para dar uma nova chance ao futebol.

"Ele me deu tempo, todas as condições, não me forçou a nada e nem disse o que eu tinha que fazer. Quando eu cheguei para ele e disse que estávamos juntos, que quero ficar aqui e fazer parte do projeto, do time, me coloquei à disposição total, 'pode pedir o que você quiser e vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance'. Ele foi importantíssimo ao lidar comigo, tenho que agradecer por toda a força", explicou à época.

A saída de Fernando Diniz levou também o tempo de Hernanes em campo. O meia teve poucas chances com Hernán Crespo. Ele deixa o São Paulo com apenas nove partidas na temporada, tendo sido titular em duas oportunidades.

Rubens Chiri / saopaulofc.net Rubens Chiri / saopaulofc.net

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