Depois da bonança, vem a...

Michael, do Flamengo, é exceção em uma janela de transferências marcada pela maior recessão dos últimos 5 anos

Arthur Sandes e Pedro Lopes Do UOL, em São Paulo Marcelo Cortes/Flamengo

Quando você ouve mercado da bola, do que você se lembra? Os corintianos podem falar da ousadia do Corinthians ao tirar Alexandre Pato do Milan em 2013. Os santistas preferem esquecer o acerto bombástico com Leandro Damião. Flamenguistas comemoram a milionária chegada de Arrascaeta no ano passado, enquanto palmeirenses tentam entender o que deu errado com as chegadas de Lucas Lima ou do colombiano Borja.

Em comum, todas essas negociações eram exemplos de um mercado da bola em alta, com altas cifras investidas nos jogadores contratados. Em 2020, tudo isso esfriou. Até o momento, os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro fizeram, somados, 173 contratações — é uma queda expressiva em relação às 243 aquisições de atletas de 2019. O movimento de queda é encabeçado pelos 12 clubes considerados de maior tradição, que contrataram, até agora, neste ano, 42 jogadores, menos da metade dos 106 do ano passado.

A recessão tem uma série de explicações, a mais evidente delas é o momento financeiro que vários clubes atravessam. Elencos inchados, investimentos altos em anos anteriores e queda em receitas forçam equipes a tirar dos jogadores que já estão "na casa" o rendimento sonhado. Há, claro, exceções. O Flamengo segue investindo (de forma sustentável) e clubes com histórico menos vitorioso roubam a cena a dão sinais de que irão incomodar na temporada.

Marcelo Cortes/Flamengo
Daniel Vorley/AGIF

Chapéu

Em 2015, Corinthians, São Paulo e Palmeiras disputaram palmo a palmo a contratação de Dudu, que acabou vestindo a camisa alviverde. O termo "chapéu" se consolidou no imaginário e no vocabulário dos torcedores, alimentando provocações com a mesma eficiência de uma vitória em clássico. Nesta temporada, o mais próximo de "chapéu" foi a contratação de Michael pelo Flamengo — o negócio, porém, foi mais uma desistência dos outros interessados (no caso, Corinthians e Palmeiras) do que uma oferta estratosférica do rubro-negro.

O UOL Esporte analisou as últimas cinco janelas de transferências para entender o que acontece em 2020. Veja agora o que nós descobrimos:

As maiores contratações dos últimos cinco anos

  • 2020

    Michael (Flamengo, do Goiás, 34 milhões de reais)

    Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF
  • 2019

    Arrascaeta (Flamengo, do Cruzeiro, 79 milhões de reais)

    Imagem: Giuseppe CACACE / AFP
  • 2018

    Vitinho (Flamengo, do CSKA, 44 milhões de reais)

    Imagem: Reprodução/SporTV
  • 2017

    Borja (Palmeiras, do Atlético Nacional, 33 milhões de reais)

    Imagem: Bruno Ulivieri/AGIF
  • 2016

    Maicon (São Paulo, do Porto, 22 milhões e reais)

    Imagem: Reprodução/Divulgação

Em números, o mercado da bola de 2020 é o menos movimentado dos últimos cinco anos, e o marasmo da maioria dos clubes de massa aumenta a impressão de inatividade. De modo geral, os 20 times do Campeonato Brasileiro contrataram cerca de 30% menos do que os participantes de 2019.

A retração fica ainda mais evidente no recorte dos chamados 12 grandes. Juntos, os maiores do Brasil (os mais tradicionais de MG, SP, RJ e RS, com exceção do Cruzeiro) anunciaram apenas 42 reforços para a atual temporada, menos na metade do que costumavam comprar em anos anteriores. Haviam sido 90 em 2016; caíram para 82 em 2017, e nas temporadas mais recentes chegaram aos picos de 104 e 106 jogadores contratados.

Outro recorde é dos clubes que permanecem na Série A de um ano para outro. É relevante pois os times que sobem da segunda divisão geralmente reformulam seu elenco e por isso contratam mais, o que pode "compensar" a apatia dos grandes no aspecto meramente quantitativo. Neste cenário, os 16 mantidos no Brasileirão anunciaram 78 atletas para 2020, só 48% da média das quatro temporadas anteriores (161 ao ano).

O levantamento considera apenas jogadores anunciados oficialmente na janela de transferências de verão, sejam estes atletas contratados por empréstimo ou de forma definitiva. São descartados os atletas que renovaram contrato, que voltaram de empréstimo a seu clube de origem ou aqueles que foram comprados após meses defendendo o time por empréstimo. Quem foi rebaixado recentemente não contribuiu para a conta no ano em que jogou a Série B (casos de Vasco, Internacional e, neste ano, do Cruzeiro).

Para especialista, queda nas compras está ligada a europeus

"A retração do mercado não surpreende, é uma soma de fatores que se desenhavam. Basicamente, você vê Red Bull e Flamengo investindo, o Bahia também, e o resto, a maioria, com investimentos pequenos. Clubes que fizeram muitas contratações nos últimos anos têm elencos inchados e estão sem dinheiro. É o São Paulo por exemplo, com um time caríssimo. Outro é o Palmeiras. Simplesmente têm que conquistar algo com o elenco, que é caro.

Os clubes brasileiros precisam vender para fazer a bicicleta girar. Se você não tem a venda, e esse é o problema desde o ano passado, não consegue fazer girar. Sem a primeira perna da venda, não tem a da compra. É reflexo de um mercado europeu que contrata menos e cada vez mais jovens. Os orçamentos dos clubes divulgados até agora contam, em geral, com venda de atletas e redução de custos. Todos ficam encalacrados com venda de atletas não acontecendo.

O europeu acredita cada vez menos que o jogador brasileiro chega na Europa bem formado. Se não é muito acima da média, como o caso do Reinier agora, de um Rodrygo, um Vinícius Júnior, o brasileiro sempre vai chegar antes em um clube intermediário, completar a formação e chegar em um clube maior depois. Aí, sim, por um valor maior.

Em geral, quanto mais joga no Brasil antes de sair, pior do ponto de vista de mercado.

Um jogador de 20, 21 anos que disputou dois brasileiros consolida os hábitos e atinge certa estatura que dificulta que um europeu, depois, o coloque para amadurecer em um time B ou o empreste.

Outro erro comum no futebol é ajuda de patrocinador em contratação. Fazer isso significa que parte da receita que deveria estar entrando no caixa vira esse investimento em jogador. Isso vira dívida. Isso aumenta dívida no futuro".

César Grafietti, consultor de Gestão e Finanças do Esporte

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Vitor Silva/Botafogo

Eles estão com os cofres vazios

A maior parte dos grandes clubes brasileiros atravessa momentos financeiros delicados. Um dos casos mais emblemáticos é o do São Paulo, que fechou o ano passado com um déficit de R$ 180 milhões. Para sanar o problema, a solução passa pela venda de jogadores, algo que a diretoria tem tido dificuldades para concretizar. Não à toa, o clube do Morumbi ainda não concretizou nenhuma nova contratação para a temporada.

Situações similares vivem Santos, Vasco, Botafogo e Fluminense que, ao contrário do São Paulo, foram ao mercado, mas apostaram em reforços de menor custo e negócios de oportunidade. O Botafogo lidera com nove chegadas — quase todos apostas, como o lateral-esquerdo Guilherme Santos e o zagueiro Ruan Renato (na foto), além do volante Thiaguinho e dos atacantes Alexander Lecaros e Pedro Raul.

O Santos apostou em trocas para trazer Madson e Raniel, enquanto o Vasco trouxe apenas o argentino Germán Cano. O Flu apostou em atletas experientes como Hudson, vindo do São Paulo, Henrique e Egídio, do rebaixado Cruzeiro, além de Felippe Cardoso, Yago Felipe e o peruano Pacheco.

Em Minas Gerais, o Atlético-MG aproveitou a venda de Chará para concretizar a contratação do volante Allan, do Fluminense. Além dele, vieram Hyoran, do Palmeiras, e o jovem colombiano Borrero. O Internacional também aposta em reforços de baixo custo: Musto e Rodinei vieram por empréstimo, Marcos Guilherme e Gallardo assinaram de graça.

Quanto cada time contratou?

Rafael Ribeiro/Florida Cup

Palmeiras "rico" perde espaço. No vermelho, Corinthians compra

Um dos principais, se não o principal, ator no mercado da bola brasileiro desde 2015, o Palmeiras se retraiu nesta janela e não parece o clube que ficou com fama de rico ao realizar grandes contratações midiáticas. Chegadas como as de Dudu, Borja, Lucas Lima ou Gustavo Scarpa não se repetiram em 2020. Na verdade, até o fechamento dessa reportagem, o alviverde não anunciou ninguém a não ser o técnico Vanderlei Luxemburgo.

O Palmeiras fechou 2019 com um déficit de cerca de R$ 60 milhões, e tem usado a janela para negociar atletas que não serão aproveitados e reduzir a folha. O plano é fazer uma ou duas contratações pontuais e nada mais — para evitar que a situação se agrave e tentar extrair resultados de um elenco já caro e recheado de nomes de peso.

Na contramão disso vai o Corinthians. Mesmo enfrentando diversos problemas financeiros — a última projeção falava em fechar o ano com déficit de R$ 144 milhões —, foi ao mercado e tem feito investimentos pesados. Luan e Cantilho, juntos, custaram cerca de R$ 35 milhões, valor expressivo para o alvinegro, que chegou a ser executado por fornecedores e pela Caixa Econômica Federal, financiadora da Arena Corinthians, no ano passado.

A direção corintiana tem garantido que consegue suportar os investimentos sem colocar em risco o futuro financeiro do clube — usando parceiros como o banco BMG. Além disso, a venda de atletas também é aposta para equilibrar as contas.

Thiago Ribeiro/ Agif Thiago Ribeiro/ Agif

Flamengo em "outro patamar"; Grêmio ativo no mercado

O Flamengo ocupa um patamar único no mercado e destoa das demais equipes consideradas tradicionais no Campeonato Brasileiro. Com tranquilidade financeira, o Rubro-negro investe pesado em contratações de renome para reforçar um elenco já forte em 2019.

Michael, que veio por R$ 34 milhões do Goiás, é a maior contratação do mercado brasileiro na temporada. A diretoria rubro-negra ainda trouxe Gustavo Henrique e Pedro Rocha (foto), negocia a vinda de Pedro da Fiorentina, tenta garantir a permanência de Gabigol em definitivo e está perto de fechar com Thiago Maia, do Lille. O Fla ainda se beneficia da maior venda até agora na janela: Reinier foi para o Real Madrid por cerca de R$ 136 milhões.

O Grêmio investe menos dinheiro, mas é outro clube que se mantém ativo no mercado. Os gaúchos trouxeram os experientes Vanderlei, para o gol, e Victor Ferraz, para a lateral, venceram a acirrada briga pelo colombiano Orejuela, fecharam uma aposta em Lucas Silva e asseguraram a vinda do promissor Caio Henrique.

Não por acaso, são os dois clubes brasileiros que tiveram sucesso na Libertadores nos anos analisados por essa reportagem. O Grêmio levantou a taça em 2017, diante do Lanús, e o Flamengo no ano passado, ao bater o River Plate.

Red Bull chega com postura de grande e Bahia cresce no mercado

Se a maioria dos clubes mais tradicionais é parte do movimento de retração do marcado, o Red Bull Bragantino rouba a cena. Com postura de clube grande, fez investimentos pesados. Com um projeto de investimentos de R$ 200 milhões na montagem de um elenco jovem e com potencial de revenda para o exterior, o clube de Bragança Paulista, agora controlado pela multinacional, tem feito barulho.

Já são sete reforços, todos jovens mas com algum destaque no cenário nacional no ano passado. Dentre eles estão Artur, que pertencia ao Palmeiras faz fez uma boa temporada pela Bahia, e Matheus Jesus, ex-Corinthians. O Red Bull segue no mercado, e ainda pode repatriar Boschilia, ex-São Paulo e atualmente no Monaco.

O Bahia também vem fazendo barulho com sua política de contratações. Investiu para, por exemplo, tirar jogadores de clubes mais poderosos financeiramente. Juninho Capixaba veio do Grêmio, Zeca, do Internacional, e Rossi, do Vasco. Além deles, outros cinco reforços vieram para o grupo baiano para a disputa da Série A.

Red Bull/Divulgação Red Bull/Divulgação

Profissionais sentem a recessão, mas acreditam em retomada

A reportagem encontrou dificuldades para entrevistar dirigentes e empresários ativos no mercado da bola brasileiro. Sem se identificarem, os profissionais ouvidos pelo UOL Esporte foram unânimes em identificar a recessão, mas receosos em discutir abertamente os motivos que levam ao surgimento de obstáculos à sua atuação.

Dentre os cartolas, irresponsabilidade financeira de anos anteriores é um tema constante. Responsáveis pelo futebol dos clubes brasileiros também identificam uma dificuldade em negociar jogadores com a Europa. A era das grandes vendas, com clubes de primeira linha do Velho Continente fazendo propostas altas, parece ter acabado. Valores acima de 10 milhões de euros são reservados a jogadores de muito potencial — e esses são raros.

Empresários relatam trabalhar "horas extras" para fechar negócios. A recessão criou uma necessidade maior de colocar a pasta embaixo do braço e viajar pelo país e para o exterior, batendo na porta dos clubes e oferecendo atletas e oportunidades de negócio. Um empresário conhecido no país reclamou à reportagem de "fila" para oferecer jogadores aos clubes que tem tido um perfil mais comprador, como Flamengo e Corinthians. Há muita demanda e poucos compradores para negócios de maior valor.

Apesar das dificuldades, a crença geral é de que trata-se de uma fase passageira. Com o envelhecimento dos elencos, novos talentos subindo das categorias de base, entrada de novos investidores, quem faz o mercado da bola brasileiro girar crê que é questão tempo para que ele se reaqueça.

No ano passado, Brasil viveu maior janela da história

Se o cenário de 2020 é de recessão, em 2019 foi de abundância. Os números falam por si só: Arrascaeta custou R$ 54 milhões ao Flamengo, que também desembolsou R$ 22 milhões para contratar o atacante Bruno Henrique e mais R$ 21 milhões para ter Rodrigo Caio. O Palmeiras fez o maior investimento da era Crefisa, já marcada por caras contratações desde 2015. São Paulo e Santos também não economizaram e, juntos, beiraram os R$ 100 milhões em reforços.

Com tantas cifras de impacto, não deu outra. A janela de transferência do ano passado bateu todos os recordes. Os 15 maiores clubes do país investiram R$ 360 milhões em jogadores para a temporada. A quantia é superior à registrada em 2005, quando as equipes, lideradas pelo Corinthians, desembolsaram R$ 352 milhões (corrigidos pela inflação — há 14 anos, as cifras atingiram R$ 165 milhões).

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