Volta às quadras

Longe dos holofotes, escolinhas de futebol retomam aulas em meio à pandemia

Arthur Sandes Do UOL, em São Paulo Divulgação

Longe dos holofotes e dos protocolos de testagem do meio profissional, a bola também volta a rolar em palcos menores e para menores: as escolinhas de futebol. Em São Paulo, por exemplo, empresários e professores montaram uma comissão representativa do setor para pleitear uma autorização junto aos governos e retomar as aulas em meio à pandemia do novo coronavírus.

A Prefeitura de São Paulo determina algumas medidas para o retorno das escolas de futebol, mas não com muitos detalhes, de modo que a volta foi meio aos trancos. Algumas escolinhas já reabriram, confiando em protocolos próprios e no apoio jurídico de advogados particulares. Para diminuir o risco, prometem aulas diferentes: alunos separados, grama descontaminada e totens de álcool em gel à disposição.

A cidade de São Paulo sozinha tem 450 escolas de futebol para crianças e adolescentes. Ou ao menos tinha, antes da pandemia. Ainda não se sabe ao certo quantas, mas algumas não suportaram a crise financeira que acompanhou a paralisação. Foi mais ou menos o caso da Rivellino Sport Center, que leva o nome do craque da seleção brasileira e deixou de funcionar após 30 anos de atividade.

Os donos das escolas calculam queda de 70% das receitas, o que em parte explica a agilidade para retomar as aulas. Eles calculam que as quadras empreguem cerca de 5 mil funcionários na capital paulista e argumentam que, sem receita, os profissionais ficam desamparados. Neste esforço, elaboraram um protocolo próprio e consultaram advogados para tentar se cercar juridicamente e voltar às aulas.

Boa parte das escolinhas em São Paulo reabriu na semana passada, confiando que a cidade já passou pelo pior da pandemia, mas a discussão também se espalha por outros estados. Mas, afinal, é a hora de reabrir? A decisão está longe de ser unanimidade no setor.

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Insistência dos donos abriu caminho para as aulas

As aulas de futebol em São Paulo pararam em março, devido ao decreto estadual que proibiu qualquer atividade que não fosse essencial. Ao longo das semanas, as escolinhas foram perdendo alunos e, consequentemente, receita. Até que os empresários viram o governo paulista liberar bares e salões de beleza, há cerca de um mês, e decidiram que era hora de agir.

"Nós vimos a volta muito anterior de outros setores que representam perigo ainda maior de contaminação, por estarem em locais fechados", afirma Maurício Simões Silva, da Olímpia Soccer, que tem sete unidades na capital.

Foi organizada uma comissão entre os donos de escolinhas e cerca de 300 funcionários. Eles debateram a questão em grupos de WhatsApp e, determinados a retomar as aulas, consultaram médicos e advogados para montar um protocolo próprio. As diretrizes da Prefeitura são específicas (como a proibição do contato físico e da presença de acompanhantes), mas são poucas e vistas como insuficientes, por isso a maior parte das normas foi adaptada de regulamentações de outras atividades comerciais.

Seja como for, nem todo o mundo vê o retorno com bons olhos. "Se no futebol profissional, em que os clubes fazem testes o tempo todo, semanalmente aparece dois ou três com covid-19, imagina nas escolinhas", argumenta Mário Augusto de Souza, coordenador técnico da Rivellino Sport Center.

"Há uma hipocrisia de que está tudo certo, com protocolo, mas eu mesmo saio de casa rezando para não me contaminar. Como é possível colocar alunos e funcionários em risco assim? Sou completamente contra a volta", reforça.

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Nem todo o mundo suportou a pandemia

Manter uma escolinha de futebol funcionando depende quase que exclusivamente das mensalidades. A depender do modelo de cada negócio, pode haver lucro com uniformes, uma lanchonete anexa ou até o aluguel das quadras para adultos, mas a pandemia paralisou tudo isso de uma vez só e derrubou a receita.

Em meio à crise, algumas aulas foram adaptadas para videoconferência. "Tivemos que nos reinventar, descobrir a tecnologia para manter um mínimo de contato e interatividade com os alunos", explica Mauro Albuquerque Paixão, de uma escolinha do Flamengo na capital paulista. "Precisamos renegociar aluguéis, também o salário dos professores, e fazer uma série de sacrifícios para poder manter o que temos", completa Maurício Silva, da Olímpia Soccer.

Algumas escolinhas, no entanto, não tiveram tamanha flexibilidade. Uma unidade do Chute Inicial, marca ligada ao Corinthians, havia sido inaugurada em fevereiro no bairro de Vila Leopoldina, na zona Oeste da capital, mas funcionou por apenas dois meses.

"Não teve acerto com o proprietário da quadra, que quis continuar recebendo o aluguel total. Era um valor algo, então resolvemos fechar", conta Marco Tulio, o "Moska", empresário que cuidava do negócio. "Tínhamos acabado de reformar, pintamos os muros... Estava nova, mas não teve jeito."

A Rivellino Soccer Center também interrompeu atividades. Não por consequência direta da covid-19, mas sob alguma influência da pandemia. A escolinha funcionava no mesmo endereço há trinta anos, mas o contrato venceu; o dono do terreno preferiu não renovar, e o ex-craque de Corinthians e Fluminense agora espera as coisas voltarem ao normal para estabelecer as aulas em outro lugar.

Entidade que organiza competições entre as escolas, a Liga Brasileira das Escolas de Futebol (Libraef) calcula um prejuízo de R$ 100 mil em 2020. "Não só pela suspensão dos campeonatos, mas também pelos 60 profissionais de arbitragem que estão parados", afirma o presidente da Libraef, Marden Soares de Oliveira.

Alguns dos nossos alunos treinavam em casa com um espaço bem apertado, de dois ou três metros. Isso me motivou demais: ver que o aluno estava a fim de participar mesmo estando limitado ali.

Calvin Barros, profissional de educação física e professor

As pessoas estão esquecendo da pandemia, de que é uma situação muito séria. O setor vive um drama, eu também sinto isso e tenho filhos para criar, mas é preciso ter muito cuidado.

Mário Augusto de Souza, coordenador da Rivellino Soccer Center

Em um momento financeiramente delicado, estamos investindo na segurança do aluno: álcool em gel, tapetes, produtos de limpeza? A despesa sobe, mas a receita já não é a mesma.

Mauro Albuquerque Paixão, empresário do ramo das escolinhas

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Depois do online, aulas agora serão por setores

Em meio à pandemia e com as aulas proibidas, algumas aulas de futebol foram adaptadas para videoconferências. "Tivemos que nos reinventar, descobrir a tecnologia para manter um mínimo de contato e interatividade com os alunos", explica Mauro Albuquerque Paixão, de uma escolinha do Flamengo na capital paulista.

O modelo foi copiado do futebol profissional: cada um na sua casa, no maior espaço livre que pudesse encontrar, para repetir os exercícios passados pelo vídeo. "O começo foi muito estranho, porque presencialmente dá para corrigir o aluno o tempo inteiro, elogiar, ajudá-lo o tempo todo. No vídeo foi totalmente diferente", diz Calvin Barros professor há sete anos em uma unidade do Chute Inicial.

Agora, no retorno ao treino presencial, o protocolo sugere aulas setorizadas, com no máximo três alunos no mesmo circuito de exercícios. A proposta é que os treinos sejam apenas físicos e técnicos, nunca coletivos, para evitar que os alunos tenham contato entre si.

Diversos estudos sugerem que crianças e adolescentes são menos suscetíveis ao novo coronavírus - o que nem de longe quer dizer que sejam imunes. A preocupação pelo risco de infecção se dá não apenas pelos alunos das escolinhas, mas também por seus pais e responsáveis. "Temos uma ideia de como serão os treinos, mas ainda não com 100% de certeza. Temos que aprender com a volta", reconhece o professor Calvin Barros.

Preocupação não se limita à aula

O infectologista Hélio Bacha, médico do Hospital Albert Einstein, explica que as atividades ao ar livre de fato apresentam menor risco do que ambientes fechados, mas o próprio contato entre crianças facilita uma possível infecção. Na visão dele, a preocupação fundamental é com o entorno da criança.

"O contato interpessoal se multiplica quando a criança também sai de casa. Ela tem uma grande dinâmica de troca viral, o que é um combustível para qualquer epidemia. Por um lado, temos visto em estudos que crianças de até dez anos transmitem menos [coronavírus], mas em compensação elas não têm autodisciplina para usar máscara e manter um distanciamento, é uma relação muito mais física, de tocar, pegar as coisas", explica o médico.

As evidências científicas disponíveis hoje apontam que as crianças são tão propensas a se contaminar pelo coronavírus quanto os adultos, assim como quase sempre apresentam sintomas mais leves e menor risco de ter a forma grave da covid-19. Em alguns casos, no entanto, a criança desenvolve uma síndrome inflamatória rara que pode levar a complicações —a relação entre o vírus e esta condição ainda está sob estudo.

Eduardo Knapp/Folhapress Eduardo Knapp/Folhapress

É a hora certa de voltar? Pais mostram insegurança e preferem esperar

"Na semana passada a escolinha montou um plano de retomada de aulas, mas já decidimos que ele não volta", conta Israel Maurício de Morais, referindo-se ao filho Pedro, de 10 anos. A família ainda paga mensalidades com desconto por causa das aulas online, mas o retorno presencial está fora de cogitação.

"O momento de retomar atividades deste tipo é quando tiver a vacina ou um tratamento eficaz. Antes disso, não consideramos de forma alguma. É um risco que não estamos dispostos a correr. Entendo a posição das escolas, mas acho irresponsável", opina Israel.

"[Voltar] Agora, ainda não. Prefiro esperar mais um pouco", afirma Fabiana Takiuti, mãe dos irmãos Martin, 13 anos, e Ian, 10, sobre o retorno dos dois à prática do futebol. "Ainda tenho um pouco de medo, não tanto por nós, mas por colocar funcionários e professores em risco", diz.

Martin mostra consciência, mas não esconde a vontade de jogar bola. "A saudade do futebol está muito grande. Jogava toda hora, sempre que dava, mas jogar sozinho é muito chato. Não sei se é certo o futebol voltar agora, por causa da pandemia, mas por mim eu voltaria a treinar o quanto antes", fala.

"Não é hora de voltar, nem precisa discutir se volta ou não. É preciso discutir a pandemia em si, algumas saídas. Não deveria voltar de forma alguma: nem igreja, nem shows e nem escolinha de futebol, que não é prioridade de forma alguma", opina Rodrigo Tembiú, pai do Ezequiel, de 10 anos.

"Não seria boa ideia as escolinhas de futebol voltarem agora", opina o próprio Ezequiel, bastante didático ao explicar sua posição. "Futebol tem muito contato, sempre com muitas pessoas e caso alguém pegue a doença vai ter que ir para o hospital. Com um monte de escolinhas abertas e os hospitais lotados, sem vaga, fica ruim", resume.

Miguel Schincariol/Getty Images Miguel Schincariol/Getty Images

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