Beleza e fúria

Mulheres do UFC encaram cortes e olhos roxos com orgulho e driblam o peso dos hematomas conquistados

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Mike Roach/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images

"Eu nunca tinha sangrado. Levei uma joelhada na lateral da sobrancelha e comecei a sentir um líquido muito quente escorrendo pelo meu rosto. Minha cabeça estava abaixada. Olhei para o chão e vi sangue. Pensei: 'E agora? É meu ou dela? Menos de um segundo depois, não conseguia mais enxergar de tanto sangue que caía sobre meu olho. Caiu a ficha. 'Vixe. É meu'".

A ex-campeã peso-palha do UFC Jéssica Andrade diz não ter sentido dor quando viveu o episódio relatado acima na luta contra Joana Jedrzejczyk —a adrenalina não deixava. O corte demandou pontos e, assim que ela deixou o hospital, teve certeza de que, no soco seguinte, a ferida abriria novamente. "Dito e feito. Quando lutei de novo, ficou mais feio do que já estava. Pouco depois, fui ao programa da Ana Maria Braga e meti quinhentos esparadrapos em cima. O povo me maquiou muito e a gente conseguiu disfarçar um pouco", ri.

Hematomas e cicatrizes foram acoplados à pele de quem se dedica às artes marciais. Jéssica "Bate-Estaca" conta que, hoje, a relação entre sua autoestima e as marcas adquiridas nas lutas é de muito respeito e pouco incômodo. Mas nem sempre foi tão gentil consigo mesma.

Nesta reportagem, o UOL Esporte traz relatos de cinco atletas do UFC que transformaram os machucados em força. A boa relação com os resquícios de dor é paralela a rituais de beleza que têm como intuito amenizar as marcas: banheira de gelo, cremes que prometem disfarçar cicatrizes e calça sob sol de 40 graus são spoilers do que vem por aí.

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"Toda vez que eu lutar, vou cortar minha cara?"

Bate-Estaca relembra as mudanças nos hematomas desde que começou a lutar MMA, há nove anos. Ela conta que quando passou a competir em uma categoria de menor peso, os cortes no rosto aumentaram. "Tive que começar a dar ponto, coisa que não acontecia nas categorias acima de 61 kg, em que eu competia antes", relembra.

Mudei de categoria há dois anos, e, de verdade, achava que iria me machucar menos. Mas, não. Aconteceu uma vez, daí duas, três... Pensei: 'Meu Deus, será que em toda luta vai ter corte na minha cara?'"

"Essa frequência me fez perceber que minha cicatrização é muito boa —a primeira cicatriz por ponto sumiu em duas semanas. Aí desencanei. 'Ah, corta aí o quanto quiser que nem vai aparecer depois'".

Naturalizar cortes e porradas não eximiu Jéssica do susto quando recebeu uma cotovelada da adversária Cláudia Gadelha. Ali, a dor superou a adrenalina. Com a pancada, a atleta conta, "deu para ver o osso da minha cabeça. Esse foi o hematoma que mais me assustou".

O cutman, aquele profissional que trabalha nos corners dos lutadores tentando amenizar os machucados a cada round, encharcou o cotonete de adrenalina para estancar o sangue, relembra Jéssica. "Se continuasse sangrando daquele jeito, ele iria ter de parar a luta. O médico precisou aplicar anestesia várias e várias vezes porque eu sentia muita dor. Na categoria superior a 61 kg, era só olho roxo e boca roxa, nunca tinha acontecido algo do tipo".

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"Você, desse tamanho, fez esse estrago?"

A prioridade de Jéssica é que as cicatrizes desapareçam. Sempre que se machuca, cuida do ferimento com muito afinco: deixa o esparadrapo bem limpo —troca o curativo muitas vezes ao dia— e não, "de modo algum", passa maquiagem em cima. "Os resíduos acabam impedindo a cicatrização, e a marca fica ali para sempre. Prefiro cuidar dele para que suma a tentar cobri-lo".

"Ando com um antisséptico de spray na bolsa. Depois da luta com a Rose [Namajunas, em que Jéssica chegou a pensar que havia matado a oponente], tive um corte embaixo da sobrancelha e não fiz o ponto. Se fizesse, o UFC não me deixaria lutar de novo. Colei um esparadrapo por baixo do machucado e outro por cima; deixei o corte bem grudadinho e fui pingando cicatrizante para que, na hora da próxima luta, ele não aparecesse. No primeiro soco, abriu de novo. Mas pelo menos eu lutei". A luta a que Jessica se refere foi contra a chinesa Zhang Weili, três meses depois.

Jéssica ri ao lembrar de um episódio no elevador do hotel em que estava hospedada para uma luta. Ao retornar da disputa, ela e sua rival subiram no mesmo elevador —que estava lotado de pessoas. Uma delas olhou para a adversária e perguntou o que havia acontecido. "Ela apontou para mim e todo mundo ficou chocado", ri. "Uma mulher perguntou: 'Você, desse tamanho, fez todo esse estrago?'".

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A atleta comenta que o fato de ser homossexual se tornava pauta entre quem a via machucada. "Antes de eu ficar relativamente conhecida, muitas pessoas me paravam na rua e perguntavam se eu havia sido agredida por ser homossexual. Eu me pareço mais com um menino do que com uma menina, né? Eles olhavam. Daí, quando ouviam minha voz e percebiam que sou mulher, era esse o questionamento", afirma.

Com a visibilidade, a pergunta mudou de rumo. Agora, quem conhece Bate-Estaca fica é preocupado quando se depara com os hematomas. "As pessoas me param e perguntam se está doendo muito, querem saber como estou me sentindo. Algumas dizem 'Como você consegue? Eu não conseguiria levar um soco na cara'".

Vergonha dos machucados, a atleta conta, nunca sentiu. Quando mais nova, apenas não sabia cuidar direito dos ferimentos —que, segundo ela, mesmo antes de lutar já eram constantes. "Sempre briguei na rua, chegava estropiada em casa, com as canelas arranhadas, machucadas. Ia para a escola com o olho roxo porque brigava com meu irmão; ele me arranhava, me mordia. Chegava na escola toda lascada. Estou acostumada aos olhares", ri.

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Mike Roach/2019 Mike Roach/Zuffa LLC

Calça jeans no calor para esconder os roxos

A brasileira americana Mackenzie Dern, em conversa com o UOL Esporte, conta que já evitou algumas vezes sair de vestido mesmo quando o calor era exacerbado. O motivo, ela explica, eram os hematomas nas duas pernas ocasionados por vários chutes que recebeu em uma luta.

"Logo depois da luta, estava com mini-férias marcadas. Mas, por causa dos roxos nas pernas, não fui para a praia nem para a piscina. Se a gente tomar sol no hematoma, fica manchado, e eu não queria. O calor era absurdo e eu de calça jeans", relembra.

Para Mackenzie, as lesões internas preocupam mais —mas as externas (como na foto abaixo) chamam mais atenção por onde ela passa. "Já fiquei com o olho bem roxo, com o lábio bem inchado, o maxilar amarelado do soco. Nem maquiagem cobria", diz. "Esses hematomas foram resultado da minha derrota em outubro do ano passado. Para ser sincera, eu fico com vergonha. As pessoas me param na rua e perguntam se meu marido me bateu", conta.

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Segundo Mackenzie, arranhões no rosto e cortes nos lábios costumam ser cuidados com cremes cicatrizantes e bastante antisséptico. Apesar de estar habituada aos olhares esquisitos na rua, diz que se sente chateada sempre que alguém cogita que a violência foi cometida pelo marido. "É difícil".

Mackenzie tem uma filha de um ano e três meses. No sábado (19), fez sua terceira luta após dar à luz. Seu corpo mudou, mas a rotina de beleza continua a mesma. "No dia a dia, só uso rímel à prova d'água. Se uso o rímel normal, suo e ele começa a escorrer, todo mundo já acha que estou com o olho roxo", ri. "Pela manhã, passo um creme debaixo dos olhos para evitar olheiras; de maquiagem, gosto de base".

A atleta começou a lutar no jiu jitsu. Conta ao UOL Esporte que seu pai, quando a decisão de migrar para o MMA veio, foi contra. "Ele dizia: 'Minha filha, você tem um rostinho tão lindo para tomar soco na cara. A vida de jiu jitsu é tão boa? Não precisa ir para o MMA'", relembra. "Só que eu já tinha conquistado todos os meus objetivos dentro do jiu jitsu e queria algo a mais".

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Roupa, esmalte e a estratégia

Amanda Ribas demora um tempão para escolher a cor do esmalte que dará cor às suas unhas antes de entrar no octógono. Ao UOL Esporte, ela conta que a cor vermelha dá uma mexida no psicológico das adversárias —já que pode ser confundida com sangue.

As cores do uniforme de luta também são escolhidas a dedo pela lutadora: quando está bronzeada, conta que curte o cinza e amarelo "porque dá um tchan". "Eu sempre penso no penteado antes, também. No dia da luta, há cabeleireiras e maquiadoras. A gente escolhe o penteado e marca com uma delas", conta.

A escolha do cabelo tem particularidades. Segundo Amanda, não pode haver uma gominha com ferro sequer que possa machucar a adversária —e o penteado também não pode soltar. Tanto ela como Jéssica gostam das trancinhas grudadas no couro cabeludo —Bate-Estaca acha que dá um ar mais imponente.

As duas concordam no que diz respeito à maquiagem no dia da luta: evitam, já que corre o risco de a tinta escorrer e cair no olho. Amanda Ribas leva para as competições esmaltes e perfume. Diz ela que as lutadoras brasileiras são as mais cheirosas —"tem uma galera de fora que chega bastante fedida na pesagem", ri.

Perfume cabe nas regras do UFC —creme hidratante, não. Antes de começar a luta, Amanda explica, há uma vistoria. "Passam a mão na gente para checarem se estamos escorregando ou não. Se estivermos, precisamos nos limpar". "Passo desodorante, um pouquinho de perfume e chego sempre arrumadíssima. Entro me sentindo o máximo". A saída do octógono também demanda estilo, segundo Amanda. "A gente dá entrevista e tira foto. Então, levo minha malinha, maquiagem, meus óculos de sol e uma roupa bonitona".

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Dois olhos roxos, um nariz torto e pais apreensivos

Hematomas, a atleta conta, não desmerecem sua preocupação com o espelho. Pelo contrário. "Não ligo tanto de ficar roxão. Já acordei com os dois olhos roxos depois de fazer um rolamento para trás e bater os dois joelhos no rosto. Teve uma vez que meu olho ficou todo roxo por fora e com sangue por dentro. É normal. Continuo me arrumando".

Amanda é filha de donos de academia de luta —cresceu dentro de uma. Começou a lutar judô com 12 anos. Conta que a mãe, mesmo apreensiva, segura bem a emoção. "Para nenhuma mãe é confortável ver o filho machucado, mas ela cuida de mim. Tive duas lesões graves —precisei operar o joelho duas vezes. Aí, sim, meus pais sentiram. Até me superprotegeram".

"A primeira lesão aconteceu da seguinte forma: meu pé grudou no tatame na hora da queda, eu caí e ele torceu. Rompi o cruzado e o menisco do joelho. Da segunda vez, meu joelho ainda estava um pouco machucado —então, de tanto treinar, ele deu um tranco. Aconteceu bem na seletiva do circuito europeu".

"Uma vez, no treino de boxe, um menino bateu a cabeça no meu nariz e ele ficou tortinho. Não senti dor porque o corpo estava quente, mas todo mundo ficou com o olhão arregalado. Meu pai voltou meu nariz para o lugar —estava torto, torto, e sangrando muito. Ele é meu técnico, mas antes disso é meu pai. E teve muito controle emocional para lidar com essa situação".

Amanda faz compressa de gelo no corpo tanto no pós-luta quanto em dias de treino. Quando o corpo fica dolorido em demasiado, a atleta entra em uma banheira com água gelada. Para evitar lesões, antes de começar a luta, é aquecimento e "uma oração bem boa para proteger o espírito".

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"Gosto quando fica roxo"

O primeiro contato da paraense Polyana Viana com a luta foi aos 21 anos, quando começou a praticar jiu jitsu. Antes disso, o que ela curtia, mesmo, era futebol. "Não queria ficar de grosso com homem, com mulher. Não queria ficar machucada, achava muito estranho". O MMA foi o passo seguinte: com três meses de treino, fez sua primeira luta profissional na modalidade e finalizou a adversária —que era faixa preta de taekwondo— no segundo round.

Os tão temidos hematomas, hoje, são queridos pela atleta —"é isso mesmo. Hoje, eu até gosto quando fica roxo porque saio na rua e as pessoas ficam um pouco espantadas. Muitas me param e perguntam se fui vítima de violência. Então, digo: 'Eu sou lutadora'. Dessa parte eu gosto".

Polyana passou um mês com o nariz bastante frágil após receber uma marretada (o golpe, não a ferramenta) de um garoto de cento e poucos quilos. "Ele foi fintar e perdeu a mão da força. Não me lembro da dor, lembro que sangrou muito. Assim foi em todos os treinos do mês seguinte: não podia receber um contato no nariz que já sangrava", diz.

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"Fico com muitos roxos no bumbum e nas pernas, por causa do jiu jitsu. Meus cotovelos ficam queimados pelo contato com o tatame". A atleta conta que usa vários tipos de géis cicatrizantes nos cotovelos —uma vez que a queimadura deixa cicatriz.

Os hematomas geralmente não deixam cicatrizes, por isso não me importo. Já as queimaduras, sim".

Polyana é do time das que evita maquiagem inclusive fora das lutas. "Se eu me montar toda, vou subir no octógono sem maquiagem e as pessoas vão ver outra pessoa. Prefiro não usar sempre". Ela conta que cortou o cabelo —que era grandão— porque os fios começaram a quebrar muito em decorrência do jiu jitsu. Polyana treina no mínimo 8h todos os dias.

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"Se o médico liberou, vamos para a guerra"

Nem todo mundo curte os hematomas como ela: os machucados constantes fizeram a lutadora Mayra Bueno, a Sheetara, repensar a postura dentro do octógono. Apesar de nunca ter sido lesionada no rosto —a atleta treina MMA há seis anos— tem lesões constantes no corpo pela postura agressiva dentro da competição.

"Não tenho histórias de marcas no rosto porque tento manter a guarda o mais alto possível. Se há corte, o juiz para. E essa é a primeira coisa que a gente aprende quando vai treinar. Quando comecei, à medida que eu levava pancada, ficava nervosa e partia para cima —e isso só me expunha mais".

Como sou muito agressiva, deixo muitas brechas e posso ser machucada com mais facilidade. Então, comecei a me preocupar com isso e mudar a postura".

O temor em relação a lesões faciais não tem a ver apenas com a postura dentro do octógono, mas, também, com a estética. "Eu acho muito feio ver meu rosto machucado. Sempre que me lesiono, faço gelo, passo bastante anti-inflamatório. Passei por três cirurgias em três anos, tive duas lesões no joelho e uma no ombro. Foi feio", diz Mayra.

Todd Lussier/Zuffa LLC

Apesar de nunca ter vivido na pele do rosto um corte profundo, Mayra já protagonizou a dor de uma adversária: ao chutá-la, seus lábios se partiram totalmente. "Sangue para todo lado. Nunca quero machucar de verdade, vejo como uma luta profissional. Ela se desesperou um pouco, e eu continuei. Até que ela parou e não voltou mais", afirma.

O coque de trancinhas é o penteado preferido da atleta —essa seria a única mania de vaidade na hora da luta, apesar de ela garantir que só o faz pela praticidade do penteado. "Sempre treino de coque, já estou acostumada. Não sou muito vaidosa, deixo a desejar um pouco. Gosto de fazer as unhas, mas maquiagem fica demais. A gente começa a suar no meio da luta e o que era para parecer bom fica ridículo", ri.

A praticidade fica clara até mesmo na fala de Mayra, que conta não ter relação emocional com os hematomas. "Acabou, acabou. Por mais feio que esteja, se o médico diz que estou 100%, acredito nele. Procuro não ficar lembrando, evito colocar sentimento na luta quando me machuco para não pará-la. Se o médico liberou, vamos para a guerra".

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