Neymar de Toulouse

Os erros, arrependimentos e sucessos de Rafael Ratão, um brasileiro adorado pela torcida na França

Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Reprodução/Toulouse

Rafael Silva chegou ao São Paulo depois de um jogo-treino contra o time do Morumbi. Menino do interior, gostava de dizer a todos: "Eu jogo no São Paulo".

Naquela época, falava muito e fazia pouco. Sumaré fica a quase três horas de viagem da capital de São Paulo. Quando estava em casa, ele enrolava e não conseguia chegar no horário dos treinos. Perdia um aqui, outro ali.

Para ser jogador do São Paulo, como Rafael gostava de dizer, era necessário foco e responsabilidade e o atacante não tinha nenhum dos dois. Era o típico garoto problema, agouro de uma história sem final feliz. A dispensa veio quando ele tinha 14 anos.

"Era muito jovem, não tinha noção que estava na base do São Paulo. Acredito que muitos cometem o mesmo erro que eu. Eu não levava a sério. Eu não tinha noção nem pensamento de ser profissional", contou Rafael.

Como o mundo dá voltas, aquele garoto, que nas instalações do CT da base do São Paulo ganhou o apelido de Ratão, hoje brilha na Europa. Tudo bem, não é exatamente a Europa que você deve ter imaginado, mas Rafael Ratão é atacante do Toulouse, foi um dos destaques da campanha que valeu o acesso na segunda divisão da França e ganhou mais um apelido.

Reprodução/Toulouse

Neymar de Toulouse

Era a estreia de Ratão atuando em casa, sua primeira vez como titular, quando a bola sobrou dentro da área. O atacante, de costas para o gol, mandou de calcanhar para as redes. "Eu não esperava, foi um recurso que usei ali e saiu o gol".

A alegria do gol fez Ratão correr para o alambrado e abraçar um torcedor. Esse torcedor, por coincidência, estava de óculos e Rafael os pegou, colocou em seu rosto e foi fotografado. "Falam que é a foto da temporada. Querendo ou não, estou na história, né?", brincou. Ele quer fazer um quadro com a imagem.

Ratão fez mais um gol naquele dia. O Toulouse goleou por 6 a 0 o Auxerre e mostrou um pouco do que viria pela frente. Depois, o time sobrou na Ligue 2 e garantiu o acesso com três rodadas de antecedência. Ratão não parou de distribuir lances de efeito e não demorou para começarem as comparações. Apareceu o "Neymar de Toulouse", autor de 13 gols na Ligue 2, enquanto o Ney original fez 11 pelo PSG na Ligue 1.

"É uma brincadeira sadia, gostosa. A gente que é brasileiro tem o Neymar como ídolo pelo estilo de jogo. Começou quando dei algum chapéu ou drible. O pessoal tem muito disso aqui: brasileiro tem de ser o que joga bonito. Começaram a chamar de Neymar de Toulouse. Vai ser um sonho jogar contra Neymar, Messi, jogadores que via só no videogame. Não imaginava que um dia seria possível enfrentá-los".

Fomos nós quem o chamamos de Neymar da Ligue 2 um dia, pois ele consegue tirar um bom drible do nada. Ratão se integrou muito rápido e mostrou sua técnica. Mal podemos esperar para ver seu desempenho na Ligue 1, se ele vai conseguir ter sucesso em um dos melhores campeonatos do mundo. Ele já mostrou qualidades, mas às vezes também algumas limitações táticas -- o que é normal em seu primeiro ano.

Jean-Baptiste, dono do site LesViolets.com, especializado no Toulouse

É bom falar sobre o Neymar daqui. No começo, o torcedor estava pessimista com a contratação do Ratão, mas seu primeiro jogo como titular mudou tudo: fez dois gols, sendo um de calcanhar, e iniciou uma história de amor ao comemorar indo abraçar os fãs. Ele é a definição perfeita do jogador brasileiro, capaz de dar dribles desconcertantes que mudam o jogo. O torcedor vai ao estádio para vê-lo dar show.

Fetra Rabenjamina, community manager do site Footmercato quando Ratão chegou ao Toulouse

Neymar e Ratão são jogadores que jogam para o público, dão espetáculo e não pensam duas vezes para tentar dribles que deixam o público em pé. Vemos isso como DNA brasileiro aqui. Muitos duvidaram quando ele chegou por causa dos 14 clubes em que jogou tendo apenas 26 anos. Foi no primeiro jogo como titular, com o gol acrobático de calcanhar, que se iniciaram as comparações com Neymar.

Thibault, torcedor do Toulouse dono de uma página em homenagem a Ratão

Reprodução/Toulouse (FRA)

O apelido vem da base do São Paulo. Apareceu um rato no quarto e eu fiquei com muito medo. Tenho medo até hoje. Aí o Matheus Reis colocou Ratão. Quando saí do São Paulo e fui para a Ponte Preta, meu treinador estava lá e o apelido pegou. Quando fui para o Japão, pensei em pedir para me chamarem de Rafael Silva. Mas quando cheguei lá já tinha um Rafael Silva. Falei: 'Caraca, aí me ferra'. Aí ficou Ratão até hoje. Pessoal acha que é sobrenome. Vou num médico e os caras chamam Mr Ratão. Aí eu falo: 'Não, é Rafael Rogério da Silva'. Mas ninguém conhece o Rafael Rogério, só o Ratão".

Rafael Ratão

Sebastien Bozon/AFP

Novo continente, novo homem

Rafael Ratão rodou por 13 clubes nos primeiros cinco anos como profissional. Um dia, pediu para seus empresários o levarem para a Europa. Não era um pedido fácil, afinal, tantos clubes em tão pouco tempo não criam uma opinião favorável em quem analisa um currículo. Mas o pedido foi aceito e, em 2018, ele chegou ao Zorya Luhanks, da Ucrânia.

"Vi como era o nível dos jogadores e dos campeonatos e mudei minha cabeça. Aqui, se você não souber fazer uma função tática, se não tiver bem fisicamente, um cara que não tem a sua qualidade vai jogar no seu lugar. Não querem saber se você é brasileiro e tem qualidade maior, joga quem estiver bem fisicamente. Por isso muitos brasileiros vêm pra cá, batem e voltam."

No Zorya, o atacante foi atrapalhado por uma pubalgia. No Slovan Bratislava, da Eslováquia, chamou atenção. Mas quando chegou ao futebol francês, o currículo levantou dúvidas, como jornalistas e torcedores citaram acima.

A resposta foi buscar alternativas para se adaptar melhor. Ele foi atrás de nutricionista, preparador físico e um psicólogo esportivo. Tudo bancado por ele, à parte do que o clube fornecia. "No Brasil, ainda estamos muito carentes dessa parte. São pequenos detalhes que fazem muita diferença. Sou quem eu sou porque estou trabalhando pouco a pouco".

Nathan Stirk/Getty Images

Depressão e duas semanas sem comer

Foi na Eslováquia que Ratão experimentou sucesso pela primeira vez. Nas duas temporadas após chegar ao Slovan Bratislava, ele somou 72 jogos e 26 gols marcados. São números respeitáveis e outros times passaram a pensar nele como uma alternativa para o ataque. Só que os eslovacos não gostaram muito do assédio.

Enquanto o brasileiro sonhava com voos mais altos na Europa, seu clube o escondia. O Slovan rejeitou propostas por ele e o afastou dos jogos. Só treinando e sem poder jogar, Ratão lembrou dos problemas que enfrentou no Brasil e entrou em depressão.

"Fiquei duas semanas sem comer. Me afastaram do time, me deixaram sem treinar até definir o futuro e ninguém decidiu. Foi aí que apareceu o Toulouse."

O Slovan aceitou duas propostas pelo atacante. Na primeira, as malas para a Arábia Saudita estavam prontas quando o clube recuou na última hora. Os eslovacos pediram mais dinheiro e o negócio melou. Ratão percebeu que precisava de ajuda. Não de um empresário para tirá-lo de lá, mas de um psicólogo para o levantar do buraco mental em que caiu.

"Ele me ajudou muito. Me ligava e eu falava que estava muito mal. Ele me ajudava, me acalmava, dizia para ter paciência, que iria dar certo. A gente chega em um ponto, quando estamos em depressão e sozinhos, que queremos fazer loucuras. Queria deixar as coisas todas lá e ir embora para o Brasil. Minhas malas estavam todas prontas há um mês pensando em ir embora. Estava quase deixando, contrato e tudo, pra trás e indo embora."

Sebastien Bozon/AFP

Eu tenho um psicólogo e muitos acham que é brincadeira. Vai fazer o que no psicólogo se não é louco? Comecei a fazer um trabalho de alimentação e esse profissional me indicou o psicólogo. Ele me ajuda muito. Antes dos jogos, sempre me liga para ver se estou bem, fazemos algum exercício de ansiedade, foco. Faz muita diferença. É uma rotina. Se você estiver se alimentando bem, descansando, estiver bem com a sua esposa, não tem como as coisas darem errado."

Rafael Ratão

Alexandre Loureiro/Getty Images

Deslumbramento na Ponte

Dispensado do São Paulo com 14 anos, Ratão retornou para Sumaré decepcionado. "Fiquei uns oito meses parado e foi aí que conheci a festa, comecei a beber. Chegou um momento que minha mãe falou que já que eu não iria jogar bola, teria que trabalhar. Comecei como servente, fiquei uma semana e pô... Muito pesado, pegado, dá não (risos). Falei pra minha mãe que queria jogar bola."

A oportunidade que apareceu foi na Ponte Preta, mas tudo aconteceu rápido. Em três meses na Macaca, Ratão subiu para o profissional. O salário do 'garoto problema' dobrou aos 17 anos. E ele morava sozinho em Campinas. O foco rapidamente deixou de ser o futebol.

"Errei muito na Ponte, dei muita cabeçada. Antigamente, ter 10 conto para comer uma pizza era muito. Quando fui para o São Paulo, comecei a ganhar um dinheirinho e tudo mudou muito rápido. Eu não tinha essa estrutura. Não é que minha família não ajudava, mas não sabia como conversar. De falar: Rafael, você tem que fazer isso, tem que ter uma boa nutrição, tem que dormir. Não tinha isso que muitos pais têm hoje. E aí fui errando".

Reprodução/Toulouse

Na base da Ponte, Rafael ganhava R$ 300 reais. Os salários eram pagos a cada dois meses. Quando ele subiu para o profissional, com 17 anos, jogou o Brasileirão e a Copa Sul-Americana. "O salário dobrou e eu sozinho. Me afastei da família e aí vem aqueles amigos que querem atrapalhar, vem mulher, vem balada... E vira aquela bola de neve. E eu errei e continuei errando".

Segundo ele, a mudança veio quando ele conheceu a mulher, Paula. Ratão afirma que o relacionamento mudou a maneira como ele encarava a vida, aumentando o sentimento de responsabilidade. Hoje, os dois têm uma filha. "Comecei a ver o futebol de outra maneira. Muitos jogadores sofrem com isso no Brasil [se perder com o extracampo na transição para o profissional]. Às vezes, não tem alguém para ajudar e acabam indo para o mesmo caminho. Espero que minha história possa alcançar quem passa por isso e ajudar. Ainda tenho muito a conquistar, mas tenho muito orgulho da minha carreira".

Sebastien Bozon/AFP Sebastien Bozon/AFP

Maior oportunidade perdida

Na lista de erros, nenhuma dói mais que o cometido no Santos. O atacante chegou por empréstimo da Ponte Preta, marcou seis gols em oito jogos no Paulista sub-20. Era o artilheiro do time. Se em campo acertava as redes, fora dele não conseguia dar uma bola dentro.

"No São Paulo eu era muito jovem, a Ponte foi uma baita oportunidade, mas o Santos é o Santos. Estava muito bem, perto de subir para o profissional, mas acabei errando. Eu não levava a sério. Tinha fim de semana que eu saía e não voltava no horário certo. Foi virando aquela bola de neve."

O acerto com a Ponte pelo empréstimo de Ratão envolvia o meia Léo Cittadini, que foi repassado ao time de Campinas também por empréstimo. O desempenho de Cittadini chamou atenção e o Santos o queria de volta.

"Eles já queriam me devolver, para trazer o Cittadini de volta, quando a Ponte me pediu de volta. Foi minha chance estar no profissional, de jogador no clube. Se eu tivesse a cabeça de hoje, seria diferente. Mas não me arrependo de nada. Se Deus quis assim é porque ele queria que acontecesse assim".

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