Continência no pódio

Atletas das Forças Armadas já conquistaram duas medalhas nos Jogos de Tóquio. Projeto é iniciativa "comunista"

Denise Mirás e Felipe Pereira Do UOL, em São Paulo e Tóquio (Japão) REUTERS/Sergio Perez e Satiro Sodré/SSPress/CBDA

O Brasil já conquistou cinco medalhas nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Duas delas, de atletas militares. O judoca Daniel Cargnin, bronze na categoria até 63kg, é 3º sargento da Marinha. E o nadador Fernando Scheffer, bronze nos 200m livre, é 3º sargento do Exército. A dupla não prestou continência ao subir ao pódio, como aconteceu várias vezes no Rio de Janeiro, há quatro anos (como você vê nas fotos dessa matéra), mas são prova da força de um projeto das Forças Armadas que é muito importante para o esporte olímpico do país. E que começou com a iniciativa de um "comunista".

A ideia surgiu em 2007. Djan Madruga, nadador com cinco finais olímpicas (Montreal-1976, Moscou-1980, Los Angeles-1984) e medalhista de bronze nos 4x200m livre em 1980, havia assumido o cargo de secretário nacional de Alto Rendimento do Ministério do Esporte —na época, a pasta era comandada pelo PCdoB e Djan, posteriormente, se filiaria ao partido, daí o "comunista". Em conversa com o Brigadeiro Luis Pinto Machado, então presidente da Comissão Desportiva Militar do Brasil (CDMB), surgiu a ideia de apoio militar aos atletas de elite.

Os dois estavam no Brasileiro de Judô das Forças Armadas quando o ex-nadador comentou que, em sua época de atleta, nos anos 1970, muitos adversários europeus eram de Forças Armadas de seus países. Machado ouviu, gostou, e os dois combinaram de levar a ideia para frente, pelos Ministérios do Esporte e da Defesa.

Hoje, o Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR) tem 540 esportistas, segundo dados da Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania, com um investimento anual de R$ 38 milhões. Em Tóquio, há 92 desses atletas, de 21 modalidades. São 44 atletas da Marinha do Brasil, 26 do Exército Brasileiro e 21 da Força Aérea. Os benefícios são similares a um contrato de trabalho CLT: tem salário, 13º e assistência médica —o que contribui para que os atletas se dediquem exclusivamente ao esporte.

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Um upgrade de missão

No segundo mandato de Lula na presidência, em 2007, o Ministério do Esporte era comandado por Orlando Silva (PCdoB). Quando Djan chegou para assumir a Secretaria Nacional de Esporte de Alto Rendimento (SNEAR), a missão era "dar um upgrade" no Bolsa Atleta, que existia desde 2004. Foi quando aconteceu a conversa com o Brigadeiro Machado.

Ricardo Leyser, que participava da gestão dos Jogos Pan Americano do Rio-2007 e comandou a SNEAR na sequência de Djan Madruga, lembra de um início ainda anterior, quando o velejador Lars Grael era o secretário: "Já havia a ideia de apoio a atletas, mas nada aconteceu até 2004, quando a proposta ainda era vista como ação social, com abertura dos quarteis a comunidades, pelo projeto Forças do Esporte", lembra. "Com o Pan do Rio-2007 e a conversa de Djan Madruga com o Brigadeiro Machado, a secretaria propôs aproveitar as instalações do Pan-2007 para postular a sede dos Jogos Mundiais Militares-2011."

O projeto conjunto entre o Ministério do Esporte e o da Defesa criaria bolsas para os atletas que representassem o Brasil em grandes eventos. Funcionaria assim: o Ministério do Esporte entraria com os atletas; a Defesa, com os investimentos.

Arquivo pessoal
Djan Madruga e o Brigadeiro Luis Pinto Machado

Cortes e rebaixamento do esporte

O orçamento do programa foi subindo aos poucos. Em 2012, primeiro ciclo olímpico completo com apoio aos atletas, as Forças Armadas tinham 51 atletas na delegação brasileira que foi para as Olimpíadas de Londres. Em 2016, no Rio de Janeiro, o auge: eram 145 atletas-militares. A queda para 92 nomes, porém, não pode ser relacionada a corte de gastos, mas ao fato de que, em Tóquio, os atletas brasileiros precisaram se classificar em todas as modalidade enquanto no Rio de Janeiro, o país-sede tinha a maioria de suas vagas garantidas, o que aumenta a delegação no geral.

"Foi o que salvou o esporte brasileiro de alto nível no período pós-olímpico do Rio-2016, de tudo que deu errado", destaca Djan.

Ele se refere à diminuição dos recursos para o esporte assim que as Olimpíadas do Rio terminaram. Dados de um levantamento do projeto Transparência no Esporte, da Universidade Federal de Brasília (UnB), mostram que o Brasil registrou um recorde no investimento esportivo por parte do Estado brasileiro no ciclo olímpico (de 2013 a 2016). Foram gastos R$ 3,2 bilhões, sem contar a construção das arenas e obras de infraestrutura.

No entanto, passada a euforia de uma Olimpíada em casa, o investimento público no esporte para o ciclo de Tóquio (de 2017 a 2020 —ano para o qual estava inicialmente previsto o evento no Japão, antes de a pandemia provocar o adiamento) foi de R$ 2,8 bilhões. Uma queda de R$ 350 milhões (11%) em comparação com os Jogos Rio-2016.

Em entrevista à Folha, Fernando Henrique Silva Carneiro, um dos autores do estudo e que também é professor de educação física no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), ressalta: "Além disso, houve o desmantelamento da política esportiva, expressão disso foi a transformação do ministério do Esporte em secretaria especial."

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) rebaixou a estrutura do Ministério do Esporte para secretaria subordinada ao Ministério da Cidadania. Um dos primeiros atos do seu governo foi promover mudanças no formato de patrocínios de estatais para atletas e confederações.

Minha geração pegou uma época sofrida, de muitas dificuldades, apesar de eu mesmo não poder me queixar. Esse projetos foram revolucionários, ofereceram uma oportunidade fundamental e enorme para o esporte no Brasil. Lamento o Ministério do Esporte ter acabado, mas o Bolsa Atleta é lei e continua garantindo a manutenção da base, com o Bolsa Pódio para o alto rendimento. Hoje, um atleta da natação, por exemplo, recebe mais do que um norte-americano."

Djan Madruga

Abelardo Mendes Jr/Rede do Esporte
Beatriz Ferreira e Arthur Nory, ambos do time das Forças Armadas, receberam o prêmio Brasil Olímpico de 2019

Como funciona o programa

Os atletas de alto rendimento normalmente são formados por clubes, e não pelas Forças Armadas. Os interessados aguardam edital público para se alistar, e o processo seletivo compreende avaliação curricular, entrevista, inspeção de saúde e exame físico. Os aprovados ingressam em uma das Forças Armadas e passam a contar com os benefícios da carreira militar: soldo, assistência médica, acompanhamento nutricional e de fisioterapeuta, além de estruturas esportivas adequadas para treinamento, em organizações militares. A contrapartida: todos os atletas precisam passar por treinamento militar regular —que consiste em, de tempos em tempos, se juntar aos militares regulares para treinamentos em quarteis.

Eduardo Knapp/Folhapress
Martine Grael e Kahena Kunze no pódio da Rio-2016: as duas campeãs olímpicas da vela eram militares em 2016; em 2021, Kahena segue no projeto

O PAAR hoje

Atualmente, o PAAR é integrado por 551 militares atletas em 30 modalidades. Para os Jogos Olímpicos de Tóquio-2020, embarcaram 92 militares atletas entre 21 e 39 anos, sendo 44 da Marinha, 26 do Exército e 22 da Aeronáutica. Participarão de 21 modalidades: atletismo, canoagem, ciclismo BMX, ciclismo mountain bike, ginástica artística, natação, tiro com arco, triatlo, boxe, esgrima, hipismo, judô, vôlei de praia, levantamento de peso olímpico, maratona aquática, pentatlo moderno, saltos ornamentais, taekwondo, vela, wrestling e remo.

Da delegação brasileira, são destaques a campeã olímpica Kahena Kunze, da vela, parceira de Martine Grael (que também era atleta-militar no ciclo olímpico da Rio-2016); o lançador de peso Darlan Romani, do atletismo; os medalhistas olímpicos Arthur Zanetti e Arthur Nory, da ginástica artística; a lutadora Laís Nunes, do wrestling; a campeã mundial Ana Marcela Cunha, da maratona aquática, e João Victor Oliva, do hipismo adestramento.

Miriam Jeske

Pepê Gonçalves - a voz de um atleta militar

A reportagem entrevistou o canoísta de slalom brasileiro Pepê Gonçalves, que é atleta militar e uma das maiores promessas brasileiras do esporte.

UOL: Você pretende bater continência no pódio se pintar medalha? É uma regra?
Pepê: Não é uma regra. Para mim, nunca impuseram nada quanto a isso. Mas, quando subir no pódio, vou fazer com o maior orgulho. Tenho dois orgulhos na minha vida, uma é representar os brasileiros; a outra é ter entrado nas Forças Armadas do Brasil --uma instituição incrível. Foram cinco anos sonhando em entrar e neste ano, graças a Deus, consegui. Então, com certeza, quando subir no pódio, vai ter continência, sim.

Qual a importância do apoio das Forças Armadas para a sua carreira?
É a primeira vez que posso contar com um salário na conta todo dia 1º. É a primeira vez que tenho um 13º, a primeira vez que recebo o salário certinho. Posso ir na loja do seu Zé e fazer uma conta que sei que vou receber aquele dinheiro por mês. Porque o esporte é assim: tem umas travadinhas, você fica um mês, dois meses sem receber. Já fiquei oito meses sem receber. Uma vez, antes dos Jogos Olímpicos de 2016. E agora, poder contar com essa tranquilidade, de ter o salário ali, de ter todo o suporte, é maravilhoso. Porque não é só o dinheiro caindo na conta. É o suporte de médicos, nutricionista, fisioterapeuta. É um time realmente que joga junto. Então acho que a palavra é tranquilidade. Tenho tranquilidade me preocupar apenas com entrar na água e remar.

Os atletas participam de um curso ao ingressarem nas Forças Armadas. O que se aprende nele?
Eu fiz esse curso no começo do ano. Eles estão preocupados com a nossa performance acima de tudo. Eu venho do interior de São Paulo. Meu avô é bem rústico, valoriza princípios. No curso, é isso que ensinam --hierarquia, valores. Muito parecido com o que aprendi na infância. Acho que o principal ensinamento é o respeito pela hierarquia, que é algo fantástico; o respeito também é muito forte e, cara, acho que a honra. Fui honrado a vestir a camisa do Brasil. Eu prego muito pela valorização do nosso país. Se viajo e vejo alguém falando mal do Brasil, arrumo briga.

Existe uma aproximação dos militares com o governo. Isso muda alguma coisa na visão que você tem das Forças Armadas?
Para mim, não. Eu acho que são coisas totalmente distintas. Procuro não me envolver em política. Eu estou servindo às Forças Armadas com muito orgulho, estou servindo ao meu país, meu esporte.

Laurence Griffiths/Getty Images Laurence Griffiths/Getty Images

Verbas federais de patrocínio

Assim que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro (sem partido) mudou o formato de patrocínios de estatais para atletas e confederações. Ainda segundo levantamento feito pela Folha, até 2018, sete estatais (Caixa, Petrobras, Banco do Brasil, Correios, Infraero, Furnas e BNDES) detinham 73 contratos esportivos. Cinquenta deles foram encerrados logo no primeiro ano da gestão Bolsonaro.

Atualmente, a Petrobras patrocina 22 atletas (5 paralímpicos e 17 olímpicos) com repasse anual de R$ 1,9 milhão em 2020 e 2021. Em 2018 e 2019, o valor chegou a R$ 3,8 milhões, o dobro.

O levantamento feito pela Folha aponta, também, que o Banco do Brasil, parceiro da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) desde 1991, atualmente transfere para o vôlei R$ 62,8 milhões anuais. A instituição também apoia o velejador bicampeão olímpico Robert Scheidt.

Em 2021, o programa conta com 7.471 atletas —olímpicos e paralímpicos—, dos quais 274 fazem parte do Bolsa Pódio, programa do Governo Federal. Mesmo com a extinção do Ministério do Esporte, os programas foram mantidos e R$ 97,6 milhões são destinados à base, com o Bolsa Atleta. A previsão orçamentária anual divulgada pela Secretaria Especial do Esporte está em R$ 145 milhões/ano, quando incluída a Bolsa Pódio. O total, com mais Lei de Incentivo ao Esporte que prevê renúncia fiscal e o montante de loterias, pela Lei Agnelo/Piva, chega a R$ 745 milhões.

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