Lar doce lar

Como sua casa e o consumo consciente podem ajudar a criar relações mais justas de trabalho

Camilla Freitas De Ecoa, em São Paulo

Está chegando o aniversário de sua filha e, como presente, ela pediu uma jaqueta nova. Depois de muita procura, você encontra em uma loja online a peça exata que ela queria. Antes da compra, contudo, se lembra de uma reportagem que viu no jornal sobre um resgate de trabalhadores em situação de escravidão naquela mesma loja. E agora, o que fazer?

Resolver esse dilema moral passa por entender a relação entre trabalho e consumo. "Para que bens de consumo sejam disponibilizados, muitas pessoas trabalham", explica Igor Britto, diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Mas essa relação vai além.

"A gente não trabalha só para ganhar dinheiro para consumir, mas a gente trabalha também para consumir. O consumo é mobilizado pelo mundo do trabalho", completa Ludmila Abílio, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ou seja, pessoas trabalharam para fazer a jaqueta que você comprará com o salário do seu trabalho para presentar sua filha. Essa ligação intrínseca pode ter diversos atravessadores e, no meio deles, o trabalho infantil ou análogo ao de escravo, por exemplo.

Escolher não comprar de uma marca que tenha em sua cadeia produtiva crimes trabalhistas é um dos passos para o consumo consciente. E como o cidadão é mais que um consumidor, há outras inúmeras contribuições que você pode dar para a construção de um mundo melhor também no trabalho. Sendo assim, que tal começar olhando para as coisas que você tem em casa?

Floresta em pé, trabalho sustentável

Ao abrir a porta de sua casa, o que você vê? É bem capaz que ali tenha um ou outro móvel de madeira. Sintético ou natural, todo móvel de madeira tem um pouco do que um dia foi uma árvore que, para estar ali, foi derrubada.

Nos primeiros cinco meses de 2021 a Polícia Federal apreendeu o maior volume de madeira ilegal desde 2018, segundo informações do projeto Achados e Pedidos. A maior parte dessa apreensão, 80%, ocorreu no estado do Amazonas.

Segundo Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), "essa madeira não necessariamente é fruto de desmatamento. Ela pode ser de exploração de terra indígena ou de exploração em unidades de conservação. De qualquer forma, é proveniente de atividades ilegais."

Outra atividade ilegal associada à derrubada de árvores é o trabalho escravo. Lys Sobral Cardoso, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, explica que não há dados consolidados que apontem a relação entre as duas atividades. "No entanto, a gente pode usar como indício o alto número de resgate de trabalhadores nessa situação na região amazônica legal em atividades econômicas ligadas ao desmatamento", explica.

Mas o trabalho na floresta pode ser sustentável. E é isso que propõe a Origens Brasil, projeto que liga trabalhadores que produzem respeitando a natureza e as comunidades locais a grandes empresas. E é aqui que o consumidor entra.

"A iniciativa tem um selo que mostra toda a rastreabilidade da produção para que o consumidor saiba a origem do produto que irá comprar", explica Luiz Brasi, coordenador da Origens Brasil. Para ele, os consumidores têm papel chave para manter relações de trabalho saudáveis e a floresta em pé.

Quando consumidores escolhem um produto oriundo de uma população tradicional, impulsionam toda uma cadeia de valorização desses produtores, auxiliando na geração de renda para milhares de pessoas que vivem na e da floresta

Luiz Brasi , coordenador da Origens Brasil

Moda livre, trabalho livre

Olhando para o consumo dentro de casa, é no quarto, mais especificamente dentro do guarda-roupa, onde podemos encontrar a maior incidência de trabalho escravo. Em São Paulo, um dos polos da confecção têxtil, 22% dos trabalhadores resgatados nessas condições atuavam no setor.

E o que explica esse cenário? De acordo com André Campos, jornalista e responsável por coordenar o projeto Moda Livre, a fragmentação do sistema de produção pode ser uma das respostas.

"Uma grande marca dificilmente terá uma costureira como funcionária, esse trabalho é terceirizado. Essa empresa já terceirizada, pode, ainda, quarteirizar o serviço de costura que é a atividade onde se tem mais problemas relacionados à mão de obra", explica ele. Sem controle da própria cadeia, fica difícil para a empresa fiscalizar sua produção.

Em meio a isso, o grupo de trabalhadores mais fragilizados é o de imigrantes. "O trabalhador imigrante muitas vezes já começa o trabalho com uma relação de 'dívida' com seus empregadores que podem ter pago a passagem dele para o Brasil. A partir daí são muitas horas de trabalho para conseguir pagar essa suposta dívida", diz Campos.

Para ajudar consumidores a fugir dessas marcas, o jornalista fez parte da criação do aplicativo Moda Livre. Lá, você pode encontrar informações sobre quais marcas já foram denunciadas por trabalho escravo.

"O setor da moda é bastante sensível à pressão do consumidor. Nenhuma marca de roupa vai querer estar atrelada ao trabalho escravo", diz Campos.

Pequenas empresas, trabalho limpo

Em sua conta no Instagram, a jornalista e autora do livro "Beleza natural por dentro e por fora", Nyle Ferrari, sempre lembra seus mais de 30 mil seguidores que o banheiro não é o melhor lugar para se guardar cosméticos. Mas, se você ainda costuma deixar o sabonete facial por lá, pelo menos, é para esse cômodo que iremos olhar ao falarmos sobre mais esse consumo.

A indústria de cosméticos cresceu 5,8% em 2020 em relação a 2019 e a de cosméticos sustentáveis não tem ficado para trás. E nesse segmento se encontra a beleza limpa. "Um cosmético limpo só vai ter ingredientes seguros em sua formação", explica Ferrari, em um de seus vídeos. Ingredientes seguros, por sua vez, são aqueles que já foram comprovados pela ciência que não fazem mal à saúde e ao meio ambiente.

De modo geral, o que domina esse mercado são marcas pequenas, conforme explica a especialista. E, nesse sentido, há um controle maior da cadeia produtiva. "Ao apostar em marcas menores, podemos acompanhar mais ativamente quem são seus fornecedores e, assim, ter um controle maior de como é a cadeia", comenta.

Mas nem todas as empresas de cosméticos sustentáveis são pequenas e, nesse caso, Ferrari propõe apostar nas certificadas. "Quando o cosmético é certificado por empresas como a Ecocert e o IBD, por exemplo, há um monitoramento maior das condições de trabalho."

Vale salientar que nem essas certificações garantem 100% que as leis trabalhistas estão sendo respeitadas. Em 2018, trabalhadores foram resgatados em situação análoga à de escravos em fazenda de café com selo de certificação da Starbucks. Para atestar, então, a segurança do trabalho dentro das empresas de cosméticos, Ferrari salienta que é preciso mais que ações individuais.

O movimento da sustentabilidade e da beleza limpa, por consequência, é um movimento que precisa atuar por muitas vias, não só a individual como também a política, coletiva, porque sozinho a gente não vai resolver nada

Nyle Ferrari, jornalista autora do livro "Beleza natural por dentro e por fora"

Mudanças profundas, trabalho seguro

"Quando eu dizia que tinha dor, eles não acreditavam. Isso que era triste.", conta uma das personagens do documentário "Carne, Osso". O filme, que foi dirigido por Caio Cavechini e pelo colunista do UOL Carlos Juliano Barros, conta a história de trabalhadores de frigoríficos, uma das indústrias que mais registra acidentes de trabalho no Brasil.

Em 2019 foram quase 23 mil. Uma média de 62 acidentes por dia, segundo o Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho. Um estudo realizado pela Universidade Federal da Paraíba mostra que esses acidentes em frigoríficos podem acontecer por meio de contato com produtos tóxicos; excesso de exposição a pressões anormais de temperaturas; eletrocutamento; perfuração em maquinários de corte; contaminação; distúrbios fisiológicos, entre outros. Durante a pandemia de covid-19, o setor foi um dos que mais registrou mortes pela doença.

"Desde que se lançou o documentário houve avanços nessa área. Foi aprovada a norma regulamentadora sobre segurança e saúde no trabalho em empresas de abate, mas de um tempo para cá está acontecendo uma pressão para se afrouxar regulamentações e leis trabalhistas desse setor", conta Carlos Juliano Barros.

"Nesse caso, o que o consumidor precisa fazer é ser munido de informações, mas para que ele ajude na pressão para mudanças institucionais mais poderosas", explica.

Estado e empresas a postos, trabalho saudável

Assim como na sociedade em geral, o consumo está ancorado em desigualdades econômicas. Com quase 15 milhões de desempregados, boa parte dos brasileiros só pode escolher o que vai comprar pelo preço. Além disso, não é só pelo consumo que se pode pressionar empresas a criarem cadeias produtivas mais saudáveis.

"Ao opinar sobre o assunto e difundir informações verdadeiras sobre as empresas, o consumidor contribui para as escolhas conscientes de outros", diz o diretor do Idec, Igor Britto. "E para que essa consciência seja a mais ampla possível é necessário que setores do governo e da sociedade civil estimulem essa consciência com mais informação", finaliza.

O jornalista André Campos lembra que cabe ao Estado legislar acerca das proteções trabalhistas e fiscalizar cadeias de produção. Desde 2013 não há concurso para auditores fiscais do trabalho, segundo Bob Everson Carvalho Machado, presidente do sindicato da categoria. De acordo com Machado aposentam-se, em média, de 100 a 150 auditores todos os anos. O resultado é que, em 2021, o número de auditores é o menor desde 1999, com 2037 profissionais na ativa.

"A consequência geral é um aumento do número de trabalhadores sem seus direitos garantidos", explica Machado - direitos que incluem cumprimento de cota de programas do primeiro emprego e de pessoas com deficiência nas empresas.

Às empresas, por sua vez, cabe manter a transparência na divulgação de dados para a fiscalização da sociedade civil e a obediência às leis do trabalho.

Ciclo de Trabalho

Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.

Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.

Ler mais
Topo