Queremos oportunidade

Vencedora do BBB que redefiniu papel social do programa, Thelma Assis lança livro e quer influenciar o país

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Iude Richele/Divulgação

A garra da menina estudiosa do bairro do Limão, na zona norte de São Paulo, universitária prounista que se formou médica, conquistou o Brasil no BBB20. Em uma edição histórica, em que o reality voltou a mobilizar uma grande audiência e debateu pautas sociais, com destaque para o feminismo, o público escolheu a anestesiologista Thelma Assis, uma mulher negra, como vencedora.

Desde então, Thelminha passou a influenciadora e apresentadora, atuou na crise do oxigênio ocorrida no início do ano em Manaus e lançou o livro "Querer, poder, vencer", em que narra sua trajetória para "inspirar aqueles que estão no corre do dia a dia", pessoas que, como ela, lutam contra os obstáculos de uma sociedade desigual.

A Ecoa, ela falou sobre a importância da educação e das políticas de inclusão educacional em sua trajetória, da responsabilidade de falar com milhões e dos debates que tomaram conta das últimas edições do BBB.

Ecoa - O que te fez querer contar sua história em livro? Quem você gostaria de inspirar?

Thelma Assis - Colocar minha história no livro fazia parte da minha lista de sonhos, só que não era para agora. Conversando com o Manoel Soares, que é um grande amigo e apresentador do É de Casa, ele falou que a minha história poderia inspirar muitas mulheres, porque é a história de muitas brasileiras também.

A gente vive num país extremamente desigual, onde a maioria das pessoas é preta. Morei na periferia de São Paulo durante muitos anos, nem sempre tive acesso a um ensino de qualidade. Só nessa fala já tem várias pessoas que podem se identificar comigo.

A educação teve papel fundamental para mudar minha vida de forma positiva, e a gente sabe que o caminho é muito difícil, os empecilhos vão surgir. Meu livro tem a intenção de tocar essas pessoas que estão aí no corre do dia a dia para que sirva de incentivo e inspiração.

Sergio Coser Dantas Silva/Divulgação Sergio Coser Dantas Silva/Divulgação

Como os programas de inclusão contribuíram para que você realizasse o sonho de ser médica?

Sempre fui muito estudiosa, mas infelizmente não tive acesso a um ensino de qualidade durante cem por cento da minha formação. É um sistema extremamente desigual e a gente só percebe essa lacuna na hora que quer acessar a universidade. Eu era estudiosa a ponto de achar que o vestibular ia ser só mais uma prova, que eu ia sentar, estudar e ir bem como eu fazia na escola. Mas escolhi uma profissão que tem o vestibular mais concorrido e existe uma defasagem imensa.

E aí entra a importância das políticas afirmativas. Sou da primeira turma de Prouni em 2005. Aquilo revolucionou não só a minha vida, mas a vida de muitas pessoas, porque a gente entrou pra universidade de qualidade.

Tinha gente que tinha preconceito em relação a isso e a gente conseguiu provar exatamente o contrário: os prounistas eram os mais dedicados da minha turma, exatamente porque a gente sabia o valor de estar ali, que era uma oportunidade única. Eu tinha o preparo, tinha a vontade, eu só precisava da oportunidade. E é disso que muitas pessoas precisam.

Acho que essa é a saída pra gente poder conseguir, aos poucos, vencer um país que é tão racista estruturalmente. A gente precisa enxergar as pessoas negras ocupando todos os espaços e não só os de subserviência. A gente precisa ocupar os espaços de privilégio também, e, mais uma vez, a educação é a grande ferramenta pra isso.

A política tem que ser em prol da população, da sociedade, independente de partido, de esquerda ou direita. O que está dando certo a gente tem que otimizar, tem que investir, não desmantelar como tem sido feito com a educação, com a saúde.

Thelma Assis

Como motivar as pessoas a seguirem seus sonhos sem cair em um discurso meritocrático, de que "querendo todo mundo consegue"?

É exatamente isso: não é só querer. Essa frase do livro, "querer, poder, vencer", a minha mãe ouviu na televisão e ela usava aquilo como incentivo. Mas a grande mensagem que está por trás do meu livro é a resiliência que carreguei ao longo da minha trajetória.

Você vai e encontra uma porta fechada, você tropeça — muitas vezes eu passava a noite chorando, mas no outro dia eu ficava arquitetando alguma forma de recomeçar. Então, de alguma forma, eu resgatava o meu poder pra vencer.

Fui subestimada em todos os momentos da minha vida. Desde quando me falavam para prestar outros cursos porque medicina era um curso muito elitista, muito caro — e continua sendo. Obviamente fiquei triste, mas aquilo servia como motivação para eu mostrar meu poder de superação.

Você teve uma trajetória de ascensão social e hoje é uma figura conhecida em todo Brasil. Como você lida com a responsabilidade de estar nesse lugar?

Superou as minhas expectativas. Eu já tinha uma noção, lá dentro do reality, de que aqui fora eu carregava uma grande representatividade, porque afinal de contas eu era a única mulher preta retinta num grupo de 20 pessoas.

Mas quando saí e me deparei com a repercussão, como tudo se impulsionou, eu realmente me dei conta da responsabilidade que é você ser influenciadora. Há uns dias ganhei um prêmio de influenciadora social e fiquei muito feliz com esse título, porque acho que é realmente o que eu sou.

Gosto de influenciar as pessoas, mas sempre caminho com esse lado social e não teria como ser diferente, porque eu represento um pouquinho de cada segmento da sociedade que ainda é muito oprimido — o fato de ser mulher, de ser preta, de ter vindo de uma condição social desfavorável.

Faço isso com muita responsabilidade, ciente de que se tem milhões de pessoas me seguindo é porque elas se identificam comigo de alguma forma e a maneira como eu me posiciono, como levo a vida, vai impactar essas pessoas também.

Iude Rochele/Divulgação Iude Rochele/Divulgação

Como foi a decisão de ser voluntária e atuar na linha de frente da covid-19 em Manaus no início deste ano? Como foi sua jornada lá?

Foi um instinto mesmo que a gente carrega por ser profissional da saúde e ter vontade de ajudar de alguma forma.

Quando eu saí [do BBB], estava tudo diferente. Meus colegas anestesistas estavam atuando em outros lugares, toda a medicina foi remanejada diante da pandemia.

Fui conciliando essa vida pós reality, usando o papel da médica como comunicadora pra orientar as pessoas que estavam precisando, combater fake news. E aí veio a crise do oxigênio. Me coloquei no lugar daqueles profissionais que tiveram que fazer toda aquela força-tarefa pra poder salvar a vida das pessoas. Comecei a me envolver com a compra de cilindros de oxigênio junto com um monte de celebridades. Tem muita gente que ajudou e a gente nem ficou sabendo, foi muito bonito.

Fiquei dez dias lá, foi muito pouco diante do que todos os profissionais que estão aí há quase dois anos trabalhando [na linha de frente da pandemia]. Mas foi uma experiência de vida. Naquele momento, Manaus deveria ter servido de exemplo para o que viria depois, que foi o pico que a gente teve entre março e abril.

Na edição do BBB de que participou, o feminismo foi um tema central de debate; na deste ano, foi a questão racial. Acha que questões sociais vão continuar presentes no programa?

Acho que sim. Antigamente, ex-BBB sofria tanto preconceito. As pessoas enxergavam o BBB como uma futilidade, diziam "ai que vergonha, você participou do BBB". De repente, resolveram valorizar assuntos relevantes que são abordados lá dentro. E que provavelmente sempre foram, mas antes as pessoas não paravam pra ouvir.

Tem que levar cada vez mais esse tipo de pauta lá pra dentro porque aquilo é um experimento social. Eles pegam perfis que a gente tem na sociedade: sempre vai ter o machista, a gente vive numa sociedade machista; infelizmente sempre vai ter o racista ou aquele que não tem posturas antirracistas. Aquilo gera uma reflexão nas pessoas, e que continue sendo assim. Eu tenho o maior orgulho de ser ex-BBB, ainda mais de uma edição que levou tantas pautas para serem discutidas aqui fora.

Iude Richele/Divulgação Iude Richele/Divulgação

Sua visão sobre a questão racial mudou a partir do programa?

A visão continuou a mesma. Eu sempre fui militante, mas no dia a dia. Quando você vai para um reality show e sai com milhões de seguidores, com um alcance maior, você começa a falar sobre isso. Então não é que minha visão mudou, é que agora eu falo e tem mais gente para me ouvir. A gente tem que usar mesmo esse alcance pra bater de frente com as coisas que estão erradas e tem muita coisa, o caminho é muito longo.

Quais momentos da sua vida ajudaram a moldar a sua consciência racial?

Fui enquadrada pela polícia aos 15 anos de idade. Naquele momento, foi super doloroso e eu fiquei sem entender. Depois de um tempo comecei a me questionar: será que as minhas amigas brancas que fazem balé comigo, que estudam medicina comigo, teriam sido enquadradas se estivessem naquele mesmo local, naquela mesma hora, fazendo a mesma coisa que eu estava fazendo, que era comprar pedrinhas para colocar na minha fantasia de balé?

Depois você entende que aquilo foi, sim, uma situação racista, que você vive numa sociedade racista e tem que bater de frente de alguma forma. Relato essa situação e outras tantas no livro.

Quero que meu livro chegue nas mãos das pessoas que estão e sempre estiveram num lugar privilegiado. Esse livro serve também para essas pessoas, como uma luta antirracista, antimachista e contra a desigualdade.

Thelma Assis

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