A Montanha

Sozinho e cardíaco, advogado anda quilômetros por morros de MG atrás de redenção e flor que pode desaparecer

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo (SP) Ricardo Rocha

Nos últimos 15 anos, Ricardo Rocha caminhou dezenas de quilômetros para fotografar as flores do interior de Minas Gerais. Ele não é fotógrafo, nem biólogo. E, na maioria das vezes, se aventura sozinho. Assim, criou uma coleção com centenas de imagens do cerrado. Mas, uma delas foi especialmente difícil de registrar.

No topo da Serra do Pires, em Congonhas (MG), havia uma trilha até o topo onde o aventureiro poderia encontrar novas espécies. Ricardo sabia, porém, que o caminho não lhe garantiria sucesso: nesse terreno há buracos inesperados, insetos e serpentes. Os demais desafios lhe foram impostos pelo tempo: ele já tinha 60 anos e problemas cardíacos.

Ricardo Rocha

A dívida interna

Durante a semana, Ricardo Rocha dá consultoria ambiental para a construção civil e companhias de mineração como advogado. É responsável, por exemplo, por licenças ambientais que, mais tarde, vão desaparecer com as serras, morros e flores do cerrado.

O trabalho causou um problema de consciência, mas também lhe ofereceu uma vantagem. Ricardo sabia onde haveria novas construções e ia até o terreno para fotografar o quanto encontrasse.

A primeira flor foi uma Lupinius veluntinu com tons de azul e branco, em 2007. As cores o encantaram. Dois dias depois, tentou revê-la, mas no local havia a construção de um aterro sanitário. "Até hoje, nunca mais encontrei essa flor", lamenta-se.
Dali em diante, começou a coleção pelo Alto Paraopeba, uma região formada por 24 municípios mineiros. Muitas das áreas são privadas e ele não tem autorização para fazer seu trabalho. Até agora teve sorte, mas nunca se sabe. "Tenho medo de pegarem meu equipamento", diz. Sozinho e sob risco, montou uma coleção com 670 espécies de flores do cerrado.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

A dívida externa

Muitos caminhos do passado são só lembranças hoje em dia. A mineração levou muitos terrenos e flores. "Muitas áreas onde já fotografei não existem mais", diz.

Em uma terça-feira de Carnaval, em 2020, ele dirigiu de Conselheiro Lafaiete, onde mora, até Congonhas. Usava o seu kit básico: um cajado, uma roupa com mangas longas, chapéu, uma bebida isotônica, lanchinhos e um chapéu contra o sol.

Sabia o desafio da Serra do Pires. Nas andanças, já teve um princípio de infarto, ficou preso em buracos e, uma vez, tomou ferroadas de marimbondos. Na situação mais grave, se perdeu e andou em círculos até prestes a anoitecer.

Arquivo pessoal

Quantas lágrimas disfarçamos

Mesmo assim, seguiu. Horas depois, cambaleando com o cajado nas mãos, alcançou o ponto mais alto. Lá de cima, viu as áreas planas abaixo e a beleza que o rodeava. Quando olhou para os pés, sentiu ser recompensado mais uma vez.

"Não tinha mais onde ter flor! [Havia] um monte de flores!", diz. Elas se chamavam canelas-de-ema. "Depois de todo o esforço e dificuldade que tive, encontrei várias delas, aquelas belezas com um azul intenso", diz. "Eu até me emocionei".

Divulgação

Lira Itabirana

Em 1984, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987) publicou, no jornal Cometa Itabirano, o poema "Lira Itabirana". Neste texto, Drummond critica os efeitos devastadores da mineração para a natureza de seu estado natal, inclusive no Rio Doce, que seria uma das principais vítimas do estouro da barragem da Samarco. É a mesma mineração que tem feito desaparecer as flores que Ricardo Rocha insiste em registrar.

I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

Ricardo Rocha/Reprodução

Ricardo quer publicar um livro para doá-lo para escolas da região. Na pandemia, conversou com mineradoras para financiar a impressão, mas as conversas travaram. Segundo ele, as empresas talvez não queiram exibir as flores que desapareceram.

Enquanto puder, ele pretende continuar. Hoje, viaja com mais um amigo por segurança e visita o cardiologista. "Meu espírito aventureiro é tão grande que avisei para minha mulher: quando eu morrer, que me cremem e joguem pelos lugares onde passei. Quero continuar por aí, participando dessa história", conclui.

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