Pan-africanismo digital

Ativistas africanos foram pioneiros em se articular em nível transnacional na internet, diz Serge Katembera

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Raphaelle Constant/RFI

Há quase uma década, o sociólogo congolês Serge Katembera pesquisa no Brasil (mais especificamente na Universidade Federal da Paraíba) o ativismo digital em países da África francófona, porção do continente que fala francês.

Conversando com ativistas, ele mapeou as demandas locais e também identificou táticas de ação inovadoras, como a articulação dos militantes em nível transnacional para driblar a repressão de governos que frequentemente bloqueiam o acesso à internet pela população para tentar impedir a mobilização e os fluxos de informação.

Em entrevista a Ecoa, Katembera fala sobre o ineditismo desse tipo de ação, descrita por ele como uma possível renovação do Pan-africanismo, movimento surgido no fim do século 19 para propor a união dos povos africanos frente ao colonialismo.

O pesquisador também liga essas práticas a mobilizações antirracistas recentes nas redes e nas ruas vindas das Américas, como o Black Lives Matter e protestos ocorridos no Brasil. Ele participou na sexta-feira (16) do Festival Serrote, realizado pelo Instituto Moreira Salles. Katembera e a historiadora Wlamyra Albuquerque irão discutir o papel da identidade nas estratégias de combate ao racismo.

Quais demandas principais você identificou em sua pesquisa sobre os ativismos digitais na África?

Em geral, eles têm a perspectiva de que o ativismo digital contribui para a melhora da democracia lá, para que eles consigam, por exemplo, atingir diretamente as autoridades, já que elas agora também usam as redes sociais, o que não faziam antes. Então eles entendem que o diálogo é mais direto, conseguem ter um acesso direto a essas pessoas que não havia antes.

A primeira demanda é uma boa qualidade de internet a um bom preço. Tanto que uma das maiores campanhas de ativismo [digital] da África se chamava #Mali100Mega, feita no Mali. Porque entendem que sem isso não se consegue fazer ativismo, o que acaba invisibilizando as pautas. Essa questão aparece em vários países, como Congo e Gabão.

Isso é interessante, porque uma das formas de repressão [no continente] é justamente cortar a internet.

Por exemplo, na Guiné, um dos problemas centrais é a questão da mutilação do clitóris das mulheres, uma prática tradicional ligada tanto à religião quanto ao machismo da sociedade. Uma das blogueiras que eu entrevistei no doutorado tem isso como uma das suas pautas principais, de fazer uma campanha forte contra a excisão, com a qual a maioria das mulheres do país ainda sofre.

Também tem os ativistas que trabalham com a questão ambiental, do saneamento básico, que é um problema sério nas zonas urbanas da África. Então, são transformações que as pessoas estão querendo para as sociedades onde vivem. Mesmo no meu recorte da África francófona, as pautas são variadas.

Se há uma globalização da repressão, também é preciso ter uma globalização da resistência.

Serge Katembera

Como esses movimentos desafiam visões estereotipadas sobre o continente?

Claramente a África não está desconectada da globalização. Se há um movimento mundial chamado convergência digital, de transformação de toda a sociedade global, com plataformização e tudo, na África isso está acontecendo também. As pessoas ainda têm esses estereótipos. Claro que a partir de 2010, da Copa do Mundo da África do Sul, isso diminui um pouco, mas ainda tem gente que acha que só tem selva e animais exóticos.

Como sua pesquisa se relaciona com os conceitos de Pan-africanismo e Atlântico Negro?

Como eles se articulam em nível transnacional, eu acabei trabalhando isso na minha tese como uma espécie de renovação do Pan-africanismo a partir das práticas digitais da sociedade civil.

Observei também outra coisa que vai um pouco além disso: eles não só se reúnem entre ativistas africanos mas convidam ativistas do Haiti. A noção de Atlântico Negro, do [historiador britânico Paul] Gilroy, trata dessa questão dos fluxos de conhecimento da diáspora negra a partir de música, de literatura. Eu venho propondo, pensando o Atlântico Negro também a partir dessas práticas digitais, da conectividade, do ativismo digital e dessas trocas que podem acontecer nesse circuito que vai da África às Américas.

Organisation Internationale de la Francophonie

Existe no ativismo digital do continente americano uma articulação semelhante à dos ativistas africanos que você estudou?

Desde que estou no Brasil e comecei a pesquisar essas questões, observei que na América Latina não havia essa articulação muito forte entre membros da sociedade civil de maneira independente pela internet.

Em 2019, quando houve as mobilizações no Chile, comecei a observar uma mudança. Cada vez mais, ativistas do Brasil começavam a se interessar pelas práticas de militância, de mobilização em rede e nas redes de grupos da América Latina. Isso vinha acontecendo na África muito antes, e me parecia uma limitação da forma como a sociedade civil [na América Latina] estava se colocando, não aproveitando essa possibilidade, sendo um continente onde a circulação de pessoas me parece mais fácil do que no próprio continente africano, onde as fronteiras em geral são espaços de violência.

Recentemente, foi bem interessante ver como o movimento Black Lives Matter teve uma repercussão mundial. Isso me parece até natural pela proeminência dos Estados Unidos e da língua inglesa em termos de pautar as agendas midiática e política. A gente discute o racismo e praticamente tudo na chave americana.

Mas as mobilizações acontecendo no Brasil também começaram a ganhar uma força mundial. A morte do João Alberto teve uma repercussão bastante importante. Analisei como os ativistas tinham se colocado nesse debate na internet, falando qual língua — via-se muitos ativistas brasileiros postando em francês ou em inglês, marcando o CEO do Carrefour nas redes sociais, obrigando-o a fazer postagens em português e em francês sobre o que estava acontecendo no Brasil, o que também foi uma coisa inédita.

Eles [ativistas brasileiros] entenderam que a dinâmica da militância em rede tem que ser feita em várias línguas.

Serge Katembera

Erick-Christian Ahounou/Divulgação

Tem exemplos inspiradores e práticos de ativistas que mudaram sua realidade na África francófona pela militância digital?

Tem alguns que tiveram consequências e uma boa repercussão. Eu gosto sempre de citar o caso de uma ativista da Guiné, Fatoumata Chérif, que lançou uma campanha que se chama #SelfieDéchets. Déchet é basicamente lixo, resíduos.

A falta de saneamento básico é um problema que a gente observa em todos os países africanos. Então ela ia a um edifício público, muito bonito, só que ao lado, bem na entrada, tinha um amontoado de lixo enorme. Isso acontecia perto das escolas, das igrejas. Ela tirou selfies mostrando esse paradoxo entre os prédios bonitos e o lixo.

A campanha consistia em convidar os usuários a publicar fotos onde havia esse contraste. Isso levou a uma repercussão muito importante, chegou a passar em canais de televisão como France24, meios como El País Espanha, TV5. E o próprio governo da Guiné começou a se preocupar com esse problema. Criaram uma espécie de secretaria para lidar especialmente com saneamento, de reciclagem. Até empresas europeias decidiram abrir usinas lá para reciclar esses lixos.

No Brasil é comum usar a expressão "ativista de sofá" para quem milita na internet. É possível mudar o mundo do sofá?

Acho que é possível e que não faz sentido criticar [esse tipo de ativismo dessa forma]. Primeiro que, para ser compreendido pela sociedade, o ativismo precisa produzir um discurso compreensível e muitas vezes isso passa justamente por essas pessoas, que passam muito tempo no sofá, na solidão da leitura e da escrita.

Quando a gente estava falando da mobilização em francês e em inglês sobre a questão da morte do João Alberto, é preciso encontrar as palavras, os usos adequados para as plataformas onde se está fazendo a militância, porque elas demandam uma competência muito específica de uso das redes sociais, não é uma coisa que todo mundo usa de forma profissional. Então acho que tem esse aspecto, de que há uma preparação discursiva, intelectual, da produção da linguagem, do discurso, do debate sobre o que interessa para o movimento.

O segundo ponto tem a ver com essa falsa separação entre o virtual e o real, como se não existisse relação. Então se desqualifica alguém como ativista de sofá como se o virtual fosse totalmente desligado do mundo real. Acho que tem níveis de passagem da rede pra rua que a gente ainda não domina, não sabe exatamente como acontece. Uma presença virtual muito intensa às vezes pode significar uma presença da sociedade na rua muito menor e inversamente também, uma forte presença na rua pode significar menor presença no mundo virtual, mas são formas de existir, são níveis diferentes de existência que estão conectados.

Quem seguir? Conheça o ativismo no continente

  • AfricTivistes

    Liga de ativistas digitais africanos pela democracia

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  • Fatoumata Chérif

    Ativista da Guiné, criadora da campanha #SelfieDéchets

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  • #Mali100Méga

    Campanha por internet acessível e de qualidade no Mali

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  • Serge Katembera

    Sociólogo, pesquisa ativismos digitais na África francófona

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