Direto do Front

Referência do jornalismo em quadrinhos, Joe Sacco pede resiliência contra Bolsonaro: "Resistam ao bufão"

Lia Hama Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Divulgação

Nascido em Malta, um conjunto de ilhas ao sul da Itália, e radicado nos Estados Unidos, Joe Sacco é uma referência do jornalismo em quadrinhos, autor de livros sobre os conflitos entre palestinos e israelenses no Oriente Médio, a guerra na Bósnia, a chegada de refugiados africanos na Europa e a luta de povos indígenas no Canadá. Em todas essas obras, vemos o jornalista e quadrinista autorrepresentado em suas tiras, com seus óculos redondos, caderno e lápis nas mãos e ouvidos atentos ao que têm a dizer aqueles a quem chama de "oprimidos" da história. Suas reportagens o mostram entrevistando ex-prisioneiros palestinos, imigrantes africanos e nativos do povo Dene, intercalando recriações de acontecimentos históricos com cenas do dia a dia dos personagens.

Aos 60 anos, Sacco deu entrevista a Ecoa para falar sobre o lançamento, no Brasil, da nova edição de seu premiado livro "Palestina" (Editora Veneta, 2021), resultado de mais de 100 entrevistas realizadas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza no início dos anos 90. "Ele ajuda a entender os fundamentos do que infelizmente vemos ali até hoje: as prisões, as torturas e o confisco das terras palestinas pela ocupação israelense", afirma o jornalista e quadrinista que vive em Portland, no estado americano do Oregon.

Na entrevista a seguir, Sacco fala sobre as lembranças do Brasil e o interesse em fazer um livro sobre a Teologia da Libertação — movimento religioso surgido na América Latina que defende o engajamento da Igreja Católica contra desigualdades sociais. Ao falar sobre o presidente Jair Bolsonaro, o quadrinista pede resiliência aos brasileiros: "Resistam ao bufão".

Divulgação

"Resistam ao bufão"

Ecoa- Li que você está interessado em dois assuntos: aquecimento global e colonialismo. Já pensou em retratar os povos indígenas da Amazônia?

Joe Sacco - Fiz um livro sobre os povos indígenas do Canadá e a exploração de recursos naturais da região ["Paying the land", ainda sem publicação no Brasil]. Inicialmente pensei que seria interessante comparar o que acontece no Canadá com a América Latina e a Austrália. Mas acabei passando muito tempo no Canadá e não fiz nada sobre a América Latina. Quando você fala em povos indígenas na América Latina, a maioria dos norte-americanos logo pensa nos indígenas do Brasil. Mas tem também os da Colômbia, do Peru, do México. Tenho vontade de fazer algo sobre a América Latina. Um dos assuntos que me interessam é a Teologia da Libertação.

Você esteve no Brasil para participar de festivais de literatura e quadrinhos. Qual a sua impressão sobre o país?

Amo o Brasil. É um país grande, com muitas coisas acontecendo. Tenho muito respeito pelos brasileiros e pelos povos da América do Sul em geral. Pessoalmente, sinto que há esperança nesses países. O Brasil me parece vibrante, revolucionário, apesar de saber que há períodos de avanço e retrocesso. Vejo resistência no Brasil contra o atual governo.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é um grande admirador de Donald Trump e já declarou que pode não aceitar uma eventual derrota nas eleições presidenciais do ano que vem. Que mensagem você daria aos brasileiros que temem pela democracia no país?

"Resistam ao bufão". Ele [Bolsonaro] é parte do grupo de líderes como Trump, [Viktor] Orbán [primeiro-ministro da Hungria] e [Narendra] Modi [primeiro-ministro da Índia]. Quando temos líderes como esses governando grandes países, como Brasil, Estados Unidos e Índia, é sinal de que teremos problemas.

Sinto que os quadrinhos fazem parte de um projeto maior de pessoas que pensam de forma parecida. Uns fazem filmes, outros escrevem livros, outros realizam ensaios fotográficos. São parte de um movimento maior de ação coletiva.

Joe Sacco, jornalista e quadrinista

Bolsonaro defende que os povos indígenas sejam integrados à sociedade e estimula a exploração econômica das terras indígenas, incluindo o garimpo. Qual a sua opinião sobre o tema?

No Canadá, vimos os efeitos desse tipo de política. O que eles fizeram lá foi tirar as crianças indígenas de seus pais e enviá-las a escolas em regime de internato, a centenas de quilômetros de distância. Essas crianças foram forçadas a falar inglês, apanhavam quando falavam a língua indígena e foram educadas no catolicismo. A ideia é quebrar a ligação delas com a terra e a cultura em que nasceram. Quando voltaram às suas comunidades, muitas não conseguiam se comunicar com os avós. Isso os afastou da própria cultura porque, nessas sociedades, o conhecimento é transmitido de forma oral. Tudo isso é parte de um projeto colonial.

Qual foi o impacto econômico dessas políticas?

Os povos indígenas antes tiravam seu sustento da terra. Com as "residential schools" [internatos], eles perderam as habilidades para viver da terra e se tornaram trabalhadores assalariados. E quais eram os únicos empregos disponíveis? Aqueles voltados à extração de recursos naturais. Em outras palavras, o governo do Canadá tornou os indígenas dependentes do trabalho de extração de recursos naturais. Ali há petróleo. Quando o mercado de petróleo está em baixa, os empregos somem. Os indígenas então se tornaram dependentes das esmolas dadas pelo governo.

Há movimentos de resistência?

Nos anos 70 e 80 havia mais militância. Agora há uma resistência cultural. No Canadá há mais reconhecimento do que aconteceu no passado e existem movimentos de resgate da língua e da cultura original e de retomada das terras. Eles estão mais assertivos, o que é uma coisa boa. Mas são muitos grupos diferentes. Muitas vezes eles negociam juntos, mas o governo canadense tem sido eficiente em provocar divisões internas. Quando você conversa, percebe que esses povos não têm uma opinião única. Alguns acham que a extração é boa porque traz dinheiro e ajuda as comunidades, outros são contra e outros buscam um meio-termo: a conservação dos recursos naturais, mas buscando obter algum dinheiro com isso. É bem complexo.

Como é seu processo para estabelecer confiança com as comunidades que você busca retratar?

Aprendi com o tempo que é muito mais fácil conversar com determinadas comunidades se alguém te leva até lá e esse alguém é reconhecido pelo grupo. Se eu for para a floresta amazônica, não vou simplesmente sair andando pela floresta. É preciso ir com um guia que conhece as pessoas, ele vai te apresentá-las e elas vão se sentir mais confortáveis ao conversar com você. O guia também vai traduzir o que é falado. O segredo do jornalismo é que as pessoas adoram falar sobre si mesmas e muitas vezes elas não têm oportunidade para isso. Para fazer meu livro sobre a Bósnia ("Uma História de Sarajevo", Conrad, 2005), fiquei um tempo só saindo com as pessoas, me divertindo com elas, antes de começar uma entrevista. Elas querem te conhecer melhor, saber quem você é. Em outras comunidades, como as indígenas, elas não querem se sentir exploradas. Já foram muito exploradas. Muitas vezes me perguntam: "Mas isso vai servir para quê? Como vai melhorar a minha vida?".

Como você responde a essas questões?

No caso dos palestinos, por exemplo, falo: "Sei que isso não vai te ajudar pessoalmente, mas acho que essas histórias são importantes de serem registradas para ensinar a seus filhos e para as pessoas do Ocidente que não as conhecem. Normalmente elas topam falar porque percebem que você está tratando seriamente essas questões.

Divulgação Divulgação

Palestina 2021

Suas entrevistas para "Palestina" foram feitas há cerca de 30 anos. Por que o livro ainda é relevante?

Infelizmente a ocupação israelense das terras palestinas continua até hoje. O livro mostra os fundamentos do que acontece ali. Escrevo sobre pessoas que são presas e torturadas; casas que são demolidas; plantações que são destruídas; terras que são ocupadas pelos colonos israelenses. Todas essas coisas continuam acontecendo.

Você vê algum progresso nas últimas décadas?

Nenhum, as coisas só pioraram, viraram uma bola de neve. Mas, se existe alguma esperança, ela vem do fato de que os palestinos se mantêm resistentes. Se eles resistem, é porque não aceitam a opressão, então há esperança.

A chegada de Joe Biden à Casa Branca não renova a esperança de um avanço nas negociações de paz no Oriente Médio?

Não, Joe Biden é um dos maiores apoiadores de Israel. Ele disse que, se Israel não existisse no mapa, teria que ser inventado. Israel é um aliado importante na estratégia geopolítica dos Estados Unidos. O país serve aos propósitos da política externa americana, é o porta-aviões dos americanos no Oriente Médio. É claro que Donald Trump fez coisas que outros presidentes não fizeram, como transferir a sede da embaixada norte-americana para Jerusalém. Talvez Trump fale as coisas de forma mais bruta, mas as mesmas políticas vão continuar sendo executadas em Cuba, na América do Sul e no Oriente Médio. Com Biden, haverá uma mudança de tom, mas não uma mudança, de fato, nas políticas. Desde [Jimmy] Carter, todos os presidentes americanos falam em processo de paz, mas, enquanto isso, mais terras palestinas são confiscadas.

Em que projetos você está trabalhando agora?

Numa HQ sobre os Rolling Stones, mas que não é jornalismo, é algo mais filosófico. Também estou trabalhando num livro sobre os conflitos entre hindus e muçulmanos na Índia.

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