La Madre e La Migra

Professora brasileira ajuda crianças e adultos ilegais a se adaptarem aos EUA

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, de São Paulo Hannah McKay/Reuters

Os filmes e seriados americanos estão cheios de histórias de imigrantes latinos mudando ilegalmente para o país. A história ganha contornos dramáticos quando entram em cena um marido ameaçador, um traficante de pessoas e uma travessia arriscada arrastando os filhos entre as correntezas do rio de fronteira entre o México e os Estados Unidos. Na chegada à terra da liberdade: "La Migra", como os imigrantes mexicanos chamam a ICE, agência de imigração e fiscalização aduaneira dos Estados Unidos.

Parece roteiro de algum episódio de "Breaking Bad" ou "Orange is The New Black", mas aconteceu com uma brasileira, cuja história ganhou reviravolta mais gentil, quando ela conheceu uma professora conterrânea que ajuda na adaptação das crianças e dos adultos na nova nação.

La Madre

A brasiliense Patrícia Hahn tenta ajudar como pode as levas de crianças brasileiras que se matriculam na escola pública em que dá aula em Hartford, capital do Estado de Connecticut. Muitas delas vivem em apartamentos sublocados no centro empobrecido da cidade. Os parentes trabalham vários turnos seguidos, e os estudantes ficam o dia todo no colégio.

"Muitas famílias vieram do meio rural do Brasil e mal dominam o português. Sonham que os filhos falem o inglês e tenham um futuro melhor. Tento ajudar nessa adaptação das crianças e nas dificuldades que os pais enfrentam por não saber o idioma", conta Hahn, que mora desde 2005 nos EUA e desde 2010 tem cidadania norte-americana.

Por ser a única professora que fala português na Parkville Community School, virou a referência para os conterrâneos. "Os pais me procuram por questões educacionais, mas também para resolver problemas pessoais deles, afinal, a escola é o principal ponto de sociabilidade com a vida norte-americana. Eles trabalham duro em funções informais, e se sentem vulneráveis diante dos empregadores, das autoridades e da sociedade daqui", relata.

Hahn dava aulas em colégios particulares em Brasília e, de tantos problemas que surgiam com os alunos de classe alta, já tinha desistido do magistério. Foi aí que ela se mudou para a Flórida acompanhando o marido, que obteve uma bolsa de doutorado em psicologia. Mesmo com inglês básico, começou a estudar para ser professora nos EUA. Após formada, o marido conseguiu trabalho em Massachusetts, e Patrícia se transferiu para uma escola da vizinha Connecticut.

A violência, porém, cerca as redondezas. "Há tráfico de drogas nas ruas próximas, e, por vezes, se escuta um tiroteio. Eu já sofri tentativa de assalto também. Mas os brasileiros que moram por aqui enfrentaram situações bem piores antes de chegar aqui", afirma.

"Sempre quis trabalhar com populações carentes. Isso dá muita satisfação, você vê seu trabalho surtindo efeito. Claro que uma escola de bairro pobre em um país rico é infinitamente superior às escolas brasileiras. Aqui as crianças têm três refeições, diárias e conseguimos equipamentos tecnológicos e mobília graças a doações"

Patricia Hahn, professora brasileira radicada nos EUA.

Apu Gomes/Folhapress Apu Gomes/Folhapress

O coiote e o refúgio

Para escapar do ex-marido que ameaçava matá-la e aos filhos também, Marta saiu do interior do Pará em 2018, fez quatro conexões aéreas até chegar à Cidade do México, enfrentou 29 horas de ônibus até Ciudad Juarez, atravessou o rio Grande a pé com seu menino de seis anos a tiracolo e as duas filhas pelo braço. Tudo para ser presa pelas forças de fronteira dos EUA.

Marta (demos um nome fictício porque ela está não-documentada* no país) ficou nove dias em um centro de detenção. Só não foi deportada porque estava com as crianças. Liberada com a promessa de se apresentar à Justiça, chegou a Hartford, onde conhecia outros conterrâneos clandestinos. "Senti um alívio tão grande, mas não foi por tudo que passei nos 14 dias de viagem: foi por estar longe das ameaças", desabafa.

Antes de partir da cidade de Goianésia do Pará, ela vendeu uma moto, vários eletrodomésticos e raspou as economias para pagar a primeira parcela de R$ 12 mil pelas passagens para o coiote, nome dado aos traficantes de pessoas. Deixou o sítio em que morava como garantia de pagamento dos R$ 18 mil restantes, mas a dívida foi sanada com a poupança de um ano de trabalho nos EUA.

"Vim para cá como refúgio, porque morria de medo. Meu ex-marido não aceitava a separação e dizia que iria acabar com todos. E depois com ele mesmo", conta. "Não vim para enricar. Queria defender a vida dos meus filhos e dar um futuro melhor para eles." O coiote que a trouxe é integrante de uma família brasileira que fez dinheiro com o tráfico humano - ele aprendeu o ofício ilegal com seu ex-sogro, já aposentado, que levou antes as amigas de Marta para Connecticut.

Ele se comunicou com Marta por Whatsapp com as instruções a cada passo do caminho: na Cidade do México tinha alguém esperando no aeroporto para levá-los até a rodoviária; outra pessoa os deixaria na margem do rio fronteiriço; já nos EUA, providenciou as passagens para que atravessassem o país.

Fernanda Ezabella/Folhapress Fernanda Ezabella/Folhapress

O esquema "cai-cai"

Há várias formas de virar um trabalhador indocumentado nos Estados Unidos, mas duas são as mais comuns. Quem é de classe média e consegue visto de turista entra pelos aeroportos do país, prolonga sua estadia por lá e fica na informalidade, o que não é exatamente um crime, mas uma situação irregular que pode levar à deportação. Quem não tem essa possibilidade costuma seguir o rumo de outros latino-americanos: arriscar a sorte na travessia terrestre via México, o que é considerado ilegal pelos EUA.

Marta chegou a Ciudad Juarez, no Estado de Chihuahua, com a promessa que iria passar tranquilamente por uma ponte em direção aos Estados Unidos. Não foi isso que aconteceu. "Falaram que tinha muita polícia por lá, nos levaram por uma favela e nos deixaram na beira do rio. A água vinha acima do joelho. Carregava meu filho menor nas costas. Caí, me sujei toda porque era uma água barrenta. Demos dois passos na outra margem, e já nos pegaram. Fiquei quatro horas sentada no chão naquele frio. A roupa só secou em mim no centro de detenção."

A família ficou confinada por nove dias em um galpão com outras 80 famílias. "Parecia um presídio. Era grade e cadeado para tudo o que era lado. Tinha gente dormindo até dentro do único banheiro." Com o frio de 4 graus Celsius durante a noite, eles dormiam no chão com a proteção de cobertores feitos de alumínio, curtos e que rasgavam. Seu filho de seis anos ficou doente, e ela só conseguiu remédio depois de muita insistência e alguns dias.

Com os passaportes apreendidos e um aviso de se apresentarem na Justiça, a família foi liberada em território norte-americano. Primeiramente, foi ajudada por uma igreja local. Depois, seguindo as instruções do coiote, viajou até o destino final.

Essa estratégia de migração ficou conhecida como "cai-cai": o imigrante é pego, mas, por estar com filhos, não é deportado. No início do governo do republicano Donald Trump, houve uma crise humanitária porque as crianças eram separadas dos pais. Logo, voltou ao esquema anterior. Com a pandemia, a imigração caiu bastante.

Lalo de Almeida/Folhapress Lalo de Almeida/Folhapress

Um help no schedule

Marta já enfrentou 48 horas de trabalho sem parar. O comum é dormir umas cinco horas por noite, chegando de madrugada e saindo de manhãzinha do apartamento em que mora com três filhos. "Nunca pedi dinheiro ou comida. Só peço trabalho. O que não me falta é coragem para fazer qualquer serviço. Trabalho doente, trabalho virada. Limpo calha num sol de matar. Retiro neve das calçadas num frio de rachar. Faço o serviço grosseiro que os americanos não querem fazer."

Em geral, o empregador também é um brasileiro, que subcontrata o imigrante não-documentado* para algum serviço de limpeza ou construção e só paga quando ele próprio recebe pela empreitada. O salário gira em torno de 10 a 15 dólares a hora de trabalho. Esse bico é chamado de "help" no jargão dos informais, e os turnos em diferentes lugares e horários recebem a denominação de "schedule" (ou esquédou, no sotaque brasileiro).

"Não aconselho ninguém a vir. É tudo ilusão. Tem dia que volto pra casa só para tomar banho e comer alguma coisa. Mal cochilo. Saio de limpar um supermercado para esguichar a fachada de um prédio e depois consertar o telhado de uma casa. Trabalho só para pagar as dívidas. Tudo é muito caro aqui", se queixa.

Ela subloca um apartamento de um imigrante português. A comunidade brasileira nos EUA se estabeleceu fortemente no nordeste do país, onde já estava a colônia portuguesa, especialmente em Estados como Massachusetts, Connecticut e Nova Jersey.

Seu apartamento fica vizinho à escola dos filhos. Marta já pensou em se mudar para Newark (Nova Jersey), onde conseguiu melhores trabalhos, mas pela formação e pela comodidade dos filhos continua em Hartford.

"Vivo pelos meus filhos, quero dar para eles o que meus pais não puderam me dar, que foi a educação. Fora isso, aqui posso me abrir com a Patrícia. Ela ajuda bastante."

Marta, brasileira que vive como imigrante não-documentada nos EUA

Nidin Sanches/Nitro/Nidin Sanches/Nitro Nidin Sanches/Nitro/Nidin Sanches/Nitro

Aulas para adultos

Patrícia, a professora, tem planos de ensinar inglês para os pais também, com aulas gravadas e disponíveis online, afinal, os horários irregulares e o excesso de trabalho, que os imigrantes brasileiros encaram, dificultam reuni-los, seja de forma presencial ou virtual.

A ideia é que, com um maior domínio do idioma, se adaptem mais ao país e consigam empregos melhores. "Eles ficam presos a essas redes de limpeza, reforma e construção e se sentem muito desprotegidos", conta Hahn.

Ela conta que sete anos atrás, quando começou a lecionar nessa escola, não havia alunos conterrâneos seus. Eles foram aparecendo mais e mais até somarem atualmente 50 brasileirinhos estudando por lá. No começo do ano, sua turma de 20 alunos tinha nove compatriotas.

"A maioria das famílias são chefiadas por mães solteiras ou separadas. As pessoas fogem para cá por vários motivos sociais e econômicos. Mas tem também esse componente de violência doméstica entre elas", relata Hahn.

* Atualizamos essa matéria, seguindo a recomendação do curso "Uma introdução às migrações internacionais no Brasil contemporâneo", parceria da Defensoria Pública da União com Organização Internacional Para Migrações, que diz: "A palavra ilegal é carregada de significados: criminaliza e desumaniza as pessoas que migram e, como decorrência, pode ser usada para justificar a negativa de direitos que são próprios da condição humana. Se o ponto central é a questão de não possuir os documentos e as formalidades exigidas para sair do país de origem ou de residência, ingressar, trabalhar e/ou permanecer no país de destino, acreditamos ser mais adequado o uso do termo: migrante não documentados"

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