O caminho do meio

Para neurocientista, salvação está na combinação entre melhor da ciência e nossa capacidade de cuidar do outro

Sidarta Ribeiro Especial para Ecoa

[Ciência e cuidado]

Fatos bizarros alertam para o caos e a anomia que podem nos aguardar se não houver retrocesso no abandono da democracia, da ciência e do próprio estado. Mas o sistema está mais flexível e maleável e devemos imprimir a ele nova forma. Nossa salvação depende da combinação entre os melhores saberes humanos e a ética do cuidado, no caminho do meio entre a segurança e a liberdade. Precisamos reconhecer nossa semelhança para dar o grande abraço fraterno que devemos a nós mesmos.

Ecoa traz na série O Mundo Pós-Covid-19 um grupo de especialistas que, em depoimento à jornalista Mariana Castro, contam como imaginam uma civilização pós-pandemia a partir de temas como Tecnologia, Trabalho, Educação, Ciência, Alimentação, Cidades, Novas Economias, Espiritualidade, Meio Ambiente e Comportamento. Além de desenhar possíveis cenários para o que vem depois, eles falam sobre como as escolhas de agora podem contribuir para a construção de um futuro mais desejável.

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Nossas vidas estão de cabeça para baixo, velhos hábitos tidos como imutáveis foram quebrados e a organização social está evidentemente mais maleável. Vislumbra-se a oportunidade de revolucionar para melhor o nosso convívio.

Mas não nos enganemos, pois também paira rente o colapso civilizacional. Tanto nos EUA quanto no Brasil o cinismo neofascista se recusa a enfrentar cientificamente a pandemia, fomentando desinformação, egoísmo, preconceito e violência. É preciso reconhecer que a crise gera novas oportunidades de exacerbação do capitalismo predatório, tanto destrutivo, como corruptor da sociedade e da natureza. A ocupação do espaço público feita pelos negacionistas, que buscam tirar vantagem da quarentena para criar uma dinâmica política que justifique seus inúmeros equívocos, é um exemplo da tragédia que nos ameaça.

Outro exemplo é a irresponsável recomendação governamental para tratamento com cloroquina, que vem tomando proporções criminosas. Como se fosse pouco, em diversas cidades do país houve ataques populares e prisões policiais contra pesquisadores que saíram a campo para mapear as infecções por Covid-19.

Se conseguirmos superar a armadilha histórica representada pelo irracionalismo anarco-capitalista de Trump e Bolsonaro, teremos pela frente um desafio igualmente perigoso, que é evitar o fim da privacidade e da liberdade, como vem ocorrendo no Oriente. Diversos países asiáticos estão se saindo muito melhor na contenção da pandemia do que Europa e EUA, e isso ocorre não apenas porque sua população adere muito mais fortemente à quarentena e ao uso de máscaras, mas também porque o monitoramento digital de todos os indivíduos - inclusive com a mensuração de temperatura e rastreamento de contatos - se disseminou num grau ainda inimaginável.

A segurança de dados que os países ocidentais defendem mas cada vez garantem menos, face a todas as falhas que têm permitido o uso ilegítimo de dados por mega-corporações, toma na China e outros países asiáticos a feição de um Estado totalitário que eletronicamente vigia e pune os indivíduos de forma absoluta: há câmeras em toda parte. Em nome da coletividade, o Estado chinês valora os comportamentos dos cidadãos com pontos automaticamente calculados, oprimindo os não-conformistas com eficiência tétrica à la "Black Mirror".

Como tem alertado o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, "a China agora poderá vender seu estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia. A China exibirá a superioridade de seu sistema com ainda mais orgulho". O risco que corremos é, no afã de escapar da depredação do Estado e do canibalismo das corporações, normalizarmos o Estado de exceção.

A despeito dessas terríveis ameaças, não é hora de cedermos ao pessimismo. Precisamos ter fé no futuro e manter a calma para navegar as grandes mudanças em curso. Estamos velejando de través, quase contra o vento. Se soubermos costurar lá e cá, sem nos afastarmos excessivamente do centro, podemos avançar bastante nesse mar turbulento.

O sistema está mais lábil, mais flexível. Podemos e devemos imprimir sua nova forma. É no limite do fracasso que precisa emergir a nova consciência capaz de honrar nossos ancestrais - que apesar de toda a brutalidade reservada aos diferentes, foram capazes de abraçar seus semelhantes a cada geração. Desde o Paleolítico há registros de pessoas que, ao contrário do que ocorre com os outros animais, conseguiam sobreviver por muitos anos a uma fratura óssea. Isso só foi possível porque desenvolvemos, junto com sofisticadas técnicas ortopédicas, uma igualmente refinada capacidade de cuidar das pessoas que amamos.

Para transpormos a perigosíssima encruzilhada de 2020 precisaremos dos melhores saberes humanos acumulados nas últimas dezenas de milênios. Nossa salvação depende de uma aderência firme ao melhor que a ciência produz, mas a bússola moral que pode nos guiar em paz e harmonia, no caminho do meio entre a segurança e a liberdade, se encontra na sabedoria pan-indígena de líderes como o cacique Raoni Metuktire, Joênia Wapichana, Sônia Guajajara, Davi Kopenawa Yanomami, Celia Xakriabá, Ailton Krenak, Rucharlo Yawanawá, Daiara Tukano, Marcos Terena e Kaká Werá, entre outr@s. Como tem reiterado a jornalista Eliane Brum, as florestas e favelas não são a periferia do mundo, mas o seu verdadeiro centro, de onde emana a Ética do Cuidado que pode afinal nos salvar.

O reconhecimento de nossa fundamental semelhança humana é o que falta para o grande abraço planetário - solidário e fraterno - que estamos devendo a nós mesmos e à sétima geração depois de nós. Não podemos falhar no mais amplo de todos os abraços - sob pena de que seja o último.

  • Sidarta Ribeiro

    É biofísico pela UFRJ, doutor em comportamento animal pela Universidade Rockefeller, pós-doutor em neurofisiologia pela Universidade Duke, professor de neurociência, fundador do Instituto do Cérebro e autor de "O oráculo da noite", da Companhia das Letras.

    Imagem: Divulgação

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+ Sobre a série

Ecoa ouviu pessoas de diferentes áreas para saber o que elas estão pensando. É um exercício para tentar dar uma cara a esse futuro que nos espera - e assusta.

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