Loucura Suburbana

Após 2 anos longe do Carnaval, bloco volta com pacientes, médicos e psicólogos celebrando fim dos manicômios

Tereza Novaes (texto) e Matias Maxx (fotos) Colaboração para Ecoa, no Rio de Janeiro (RJ) Matias Maxx

Depois de dois anos sem botar o bloco na rua, no período da pandemia de covid-19, o tradicional "Loucura Suburbana" está de volta. Ele deu início ao Carnaval do bairro Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro, nesta quinta-feira (16).

O Loucura Suburbana foi criado em 2001 e faz parte de uma revolução no tratamento de saúde mental. Parte do processo que acabou com a internação prolongada dos pacientes do Instituto Municipal Nise da Silveira, que presta atendimento psiquiátrico, no Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro.

A agremiação se reuniu, desde janeiro, para ensaios da bateria e para definir o samba deste ano. O escolhido foi "Loucura Suburbana É o Melhor Remédio", que falava não só de cura para a alma, mas "de mais respeito, saúde, democracia. Liberdade, esperançar é nosso guia". É tudo muito organizado, no bloco, há comissão para julgar a melhor canção, um barracão para fazer as fantasias. No desfile, carro de som com puxadores de samba e banheiros químicos.

Matias Maxx
Matias Maxx Matias Maxx

Essas festas populares, onde as pessoas podem estar todas juntas e celebrar, ajudam a mudar a estigmatização e a visão sobre a loucura. É muito importante e, por isso, eu vim da Argentina. E eu amo também o samba e o carnaval. O Loucura Suburbana é maravilhoso. No ano passado, teve só uma roda de samba, mas não teve desfile, e todos estavam tristes porque não podiam sair na rua.

Mariela Dri, psicóloga argentina, 34 anos.

Matias Maxx
Mariela Dri e Jairo Florentino

Além de frequentadores da instituição, seus familiares e funcionários da rede de saúde, o bloco atrai os moradores da região, inclusive famílias com crianças e idosos. Era o caso da porta-bandeira Elisama Arnold, que desde os 17 anos mora no bairro, a cerca de 15 km do centro.

O percurso é curto, apenas três quadras. Sai do instituto e vai até uma pracinha, e a vizinhança fica nas portas, janelas e varandas cantando, dançando e aplaudindo quem passa.

Há muitos funcionários da saúde entre o público e muitas fantasias celebravam o SUS, o Sistema Único de Saúde, e davam voz ao movimento pela luta antimanicomial. Muitos adesivos sobre o tema foram distribuídos no bloco e havia fantasias que faziam alusão à luta. Anderson Nery, de 46 anos, que trabalha com arte terapia em um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) vestia um jaleco no qual se lia "+Caps -Remédio". Funcionário do Nise da Silveira, Paulo Weber, 60, contou que há mais de 12 anos toca tamborim na bateria do bloco. No encerramento do desfile, o puxador terminou com um grito de Viva o SUS e foi ovacionado.

Participar do bloco para mim significa estar em sintonia com um pensamento só, é harmonia e torna as coisas mais leves. Sempre gostei de música, o que você imaginar, eu toco. Participo desde a época em que eu ainda nem tinha cabelo branco.

Jairo Florentino de Barros, paciente, 62 anos.

Matias Maxx Matias Maxx

Hoje não há mais internos no instituto. As pessoas vivem em residências terapêuticas, casas compartilhadas com poucos pacientes, acompanhados de cuidadores, e muitos deles estavam juntos no bloco. Era o caso da dona Aldina Monteiro Castilho, 64, que já foi interna no Nise da Silveira e agora mora em uma dessas residências em Água Santa, bairro próximo dali. Ela estava de braços dados com a técnica de enfermagem Cristiane Argento. As duas acompanhavam o bloco com coroas de flores na cabeça e sorrisos no rosto.

O bloco é muito tradicional e já ganhou diversas distinções, como a medalha Tiradentes, honraria mais alta da Assembleia Legislativa do Rio, e a Ordem do Mérito Cultural Carioca, da prefeitura. Desde 2010, se tornou o primeiro Ponto de Cultura em saúde mental da cidade, quando passou a oferecer atividades permanentes, com objetivo de resgatar a memória do samba e do Carnaval, "incorporando a cultura aos dispositivos de saúde mental e a população ao criativo e inovador mundo da loucura".

Matias Maxx Matias Maxx

O Instituto Municipal Nise da Silveira foi inaugurado em 1911, como Colônia de Alienados do Engenho de Dentro. Foi nele, na década de 1940, que a psiquiatra Nise da Silveira passou a defender métodos humanizados de terapia, revolucionando o tratamento de pacientes psiquiátricos.

A partir dos anos 2000, o instituto foi municipalizado e rebatizado em sua homenagem. Por possuir a maioria dos registros do Hospício D. Pedro II, o primeiro do Brasil e da América Latina, era considerado o mais antigo no país.

Matias Maxx

Com o movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil, a instituição, que realizava lobotomias e aplicava eletrochoques, passou a ser um centro de articulação da luta antimanicomial. Sem internações, o Nise da Silveira permanece como referência na promoção da saúde mental, por meio de atividades de arte e cultura, entre elas o bloco de Carnaval.

Matias Maxx Matias Maxx
Matias Maxx

No local, que chegou a ter 1.000 internos, há ainda um importante acervo histórico com documentos, livros, prontuários, móveis e obras artísticas, que retratam os 110 anos da instituição e documentam a história da psiquiatria no Brasil.

Matias Maxx Guilherme Mello

Guilherme Mello

O bloco tem um clima único: é na zona norte, faz parte do instituto e tem essa pegada da 'loucura não se prende'. O fato de ele ser na zona norte é muito especial, essa região da cidade tem muitas casas, é bem tranquilo. Tem um quê de bloco de bairro, uma coisa que o folião vive buscando. Na minha pequena experiência, considero ele o melhor bloco de Carnaval do Brasil.

Guilherme Mello, redator publicitário, 55 anos.

+ Especiais

Matias Maxx/UOL

Marcelo D2

'Quem não aproveitou o momento catastrófico para revisar a vida perdeu uma oportunidade única'

Ler mais
Flavio Teperman/Divulgação

Djamila Ribeiro

"Luta ambiental sem trazer a questão racial é vazia", diz filósofa best-seller

Ler mais
Raul Spinassé/UOL

Itamar Vieira

Ele trabalha pela reforma agrária, enquanto colhe louros de ser maior escritor brasileiro hoje

Ler mais
Topo