No ringue das ruas

A dependência química levou Fernando Bolacha para a rua. Agora, ele resgata crianças - e a si mesmo - com boxe

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo

O juiz ergueu o braço de Fernando Menoncello e o declarou o campeão da noite. Não houve papel picado, espumante. Os dois lutadores de boxe não foram abraçados por familiares e não se agarraram à bandeira do país ou a cinturões, como em grandes espetáculos ou nos filmes de Hollywood. Não era uma luta do século. Ao redor do ringue, alguns espectadores, sentados em cadeiras de plástico, aplaudiam. Minutos antes de ser declarado vencedor, Menoncello havia golpeado o peso meio-médio Paulo Ricardo com uma sequência forte e rápida; um dos golpes desnorteou e sangrou o nariz o adversário. A luta foi encerrada. O resultado era uma reviravolta.

Nos primeiros rounds, Menoncello, vestido em um calção azul, parecia deslocado no ringue, ansioso e com dificuldade para se posicionar. Ele trabalhava durante o dia, lutava à noite, ainda não tinha retomado a forma, estava recentemente limpo e morava onde dava. Era uma luta na raça. Assim que o adversário de calção vermelho demonstrou cansaço, aproveitou a defesa baixa e o sobrepujou. Em sua própria avaliação, foi "uma luta horrível", mas também um alívio. A família, os amigos, o técnico Nilson Garrido e o próprio boxeador tiravam um peso das costas. Era um começo. Fernando Menoncello, o Bolacha, estava de volta.

Essa noite aconteceu há oito anos. Hoje, Bolacha é professor e criador do projeto social Das Ruas para os Ringues, em que dá aulas gratuitas de boxe para crianças, adolescentes e adultos. Também seleciona e prepara atletas. São duas unidades na zona norte de São Paulo, em Pirituba e na Freguesia do Ó, criadas e mantidas com dinheiro do próprio bolso de Bolacha - um dos ringues foi montado com uma vaquinha entre amigos e custou cerca de R$ 20 mil - e atendem a cerca de 200 alunos. É mais uma reviravolta de quem saiu das ruas para o ringue.

Há campeões entre os atletas de Bolacha. É o caso da boxeadora Vitória Cristina, 17, da pequena favela do Cruzeirinho, também na zona norte. A atleta foi medalhista de ouro no campeonato brasileiro na categoria juvenil feminina com 51 kg em novembro e se classificou para o time brasileiro de boxe nos Jogos Pan-Americanos Júnior em Cali, na Colômbia. É apenas um dos exemplos. Em sua academia, é rodeado por troféus, placas e imagens de alunos campeões.

O método de treino de Bolacha para encontrar e moldar esses talentos é semelhante ao de um técnico de qualquer esporte: a repetição e a motivação. Os atletas treinam esquiva, defesa, jabs, reação e posicionamento repetidamente até adquirirem memória muscular. Ou seja, até corpo reagir de forma rápida — quase como um reflexo — enquanto mantém a calma e a precisão quando se está prestes a receber um soco na cara. É um trabalho de longo prazo que, quanto mais cedo a iniciação, maiores as chances de sucesso.

A relação entre mestre e aprendiz de atleta não é indolor. É preciso endurecer psicologicamente quem se propõe a ser boxeador com uma rotina incontornável, marcada por certa rispidez no trato equilibrada com incentivos para manter a ambição.

"Lá no ringue ninguém vai ter dó dele, entendeu?", explica. Em uma luta, a mente de um atleta pode ser uma inimiga por onde passa a expectativa da família, os anos de treinos, o medo de errar, a vontade em fazer um nome, conquistar patrocínios e, quem sabe, ser uma lenda em um esporte composto por ícones como Rocky Marciano, Muhammad Ali, Éder Jofre, Popó, Mike Tyson, Paulo Sacomã, Robson Conceição, Sertão e tantos outros.

É ainda mais difícil quando a realidade também é adversária. Um campeão do boxe pode deixar de existir por não ter dinheiro para pagar o ônibus até a academia, ou para trabalhar e ajudar em casa, por ser vítima da violência, da dependência, do desânimo e de várias outras possibilidades cruéis da desigualdade brasileira.

"Eu boto na cabeça deles que a favela tem que vencer sempre, não importa o quanto você lute, se esforce, ninguém nunca vai dar nada de graça", diz. "É como em uma luta de boxe, né, mano? Não tem nada mais literal que o boxe. Ou você cai pra dentro, ou você cai pra dentro. Não tem pra onde correr".

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

Bolacha nasceu em Pirituba, o mesmo bairro onde abriu a primeira unidade do projeto. O pai era chaveiro; a mãe, secretária. Quando o casal se separou, a família acabou se dividindo entre o Rio de Janeiro e a capital paulista. Assim como no boxe, Bolacha criou um nome na rua. Na infância, conta, o rosto arredondado de Bolacha lembrava o do personagem Kevin Arnold, do seriado Anos Incríveis, e do então recém-lançado biscoito recheado (ou bolacha, em São Paulo) Trakinas. O apelido ficou. Nas ruas onde cresceu, via a típica violência urbana: os garotos conquistavam uma boa reputação na base da porrada. E Bolacha era destemido.

Na adolescência, já bebia e brigava em portas de escolas. Aos 12 anos, cheirava esmalte e fumava maconha. Um ano depois, conheceu a cocaína. "Era uma sequência de derrotas. Quando você tem uma doença como essa, você não guarda nada além de dívidas. Você só perde. Não guarda dinheiro, não guarda casa, não guarda esperança", diz. No Rio de Janeiro, foi internado pela família em uma clínica de reabilitação aos 15 anos.

Seis meses depois, voltou para casa, julgando-se desintoxicado, desocupado e cheio de energia. Naquela época, lembrou-se de quando acordava o avô para assistir às lutas do bad boy Mike Tyson anos atrás. Pugilista na década de 40, o avô de Bolacha julgava Tyson um boxeador violento, mas as lutas uniram neto e avô. Juntas, as lembranças lhe deram uma ideia: lutar.

Aos 17, já estava velho para ser boxeador, mas o esporte consumiria um tempo livre importante. Na segunda vitória em cima do ringue, Bolacha saiu para comemorar. E voltou para as drogas.

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Aos 20, o que até então começava a construir no ringue caiu como num castelo de cartas quando se mudou para Mairiporã, na região metropolitana de São Paulo. Queria fugir dos olhares que o julgavam, mas acabou por traficar e a usar crack. As dívidas se acumularam com a mesma velocidade em que perdia a habilidade no boxe. Estava magro, abatido. Por fim, foi despejado.

Após 15 dias na rua, Bolacha pediu abrigo no Arsenal da Esperança, uma instituição mantida por lideranças católicas e voluntários no bairro da Mooca, em São Paulo, onde vivem mais de mil homens. O local tem números de uma cidade: em 25 anos, abrigou 65 mil homens, serviu 25 milhões de refeições, fez 370 mil atendimentos médicos e 2 milhões de atendimentos com assistentes sociais. Entre os atendidos, estava o boxeador.

"Ele [Bolacha] participou de uma roda de terapia e, depois, o chamei para pintar os muros de uma creche. Ainda estava deslocado, mas tinha muita garra", diz para Ecoa o líder da Arsenal, o padre Simone Bernardi. A instituição o encaminhou para cursos técnicos e Bolacha arrumou um emprego como segurança da CPTM, a companhia de trens. "Os cursos técnicos e a reconexão com o boxe foram degraus que o ajudaram a se levantar", diz o padre.

Em 2013, Bolacha errou o caminho do curso e encontrou a lendária academia de boxe Projeto Garrido, instalada sob um viaduto no bairro do Ipiranga. Lá, voltou a treinar.

Nas primeiras lutas arranjadas por Nilson Garrido, apanhou a ponto de a torcida chamá-lo de Rocky Balboa, personagem de Sylvester Stallone conhecido por se manter de pé com ampla desvantagem. O olho roxo, por outro lado, servia para ao menos impressionar os colegas do abrigo.

"Ele saiu do ringue mais bravo do que nunca [naquela noite]", afirmou Garrido em uma entrevista. Bolacha se recuperou: venceu as próximas lutas e atraiu pequenos patrocinadores. Nessa época, sangrou o nariz do adversário no ginásio onde havia poucos para testemunhá-lo.

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Bolacha, então, se voluntariou para dar aulas de ginástica para os colegas de abrigo enquanto se preparava para sair da instituição. Também começou a dar aulas particulares de boxe — entre seus alunos na Freguesia do Ó estava o rapper Emicida — e lutava até se lesionar em 2016; as pancadas do passado ainda o impedem de enxergar como antes. Assim, foi nascendo o projeto social de boxe "Do Ringue para as Ruas", criado para descobrir atletas, talentos e resgatar pessoas da violência, da injustiça, da falta de perspectiva e da dependência química por meio do esporte.

As inspirações são Garrido e projetos sociais liderados por antifascistas na Itália, como o Palestra Popolare. Hoje, divide o trabalho com mais professores, como o peso-pena Henrique Luiz Cabreira, ex-aluno do treinador, atleta profissional, instrutor de crianças e adolescentes, um fã franzino e ágil de Muhammad Ali.

A dependência química de Bolacha foi domada à sua maneira. Mas, como todo dependente reconhece, é impossível de ser derrotada. Está sempre lá. "É um fio tênue, tá ligado? É complexo falar de drogas. É uma roleta-russa", diz.

"Eu fico bolado quando dizem que eu sou espelho. Eu sei que é uma história inspiradora e as pessoas me chamam de espelho com o bom coração, tá ligado? Mas quem eu sou? Um cara que viveu um monte de problema, fodeu muita coisa na vida. Eu trabalho certo, tenho resultado, mas hoje não faço resgate só pra esses moleques aqui. Eu faço um resgate de mim, entendeu?", diz.

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