FAMÍLIA BROWN

Com teste de DNA, Carlinhos Brown descobre com os filhos e pais por que os tambores soam alto na família

Beatriz Mazzei Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Deborah Faleiros/UOL

Mais velho de oito irmãos e pai de oito filhos, além de tio de nove sobrinhos, Antônio Carlos Santos de Freitas, 59, tem uma família tão grande quanto o legado cultural construído ao longo dos 40 anos de carreira. Quando Carlinhos Brown se debruça a contar de onde vieram seus antepassados, a conversa não é menos extensa.

Engloba um figurão do Império do Brasil, confunde-se com as origens libertárias do bairro soteropolitano onde nasceu e foi criado, reverencia com a mesma ênfase origens africanas e europeias e deságua na surpresa de os filhos músicos produzirem canções tão distantes das dele. Todas essas histórias giram em torno da pergunta, até então sem resposta, que acompanhou o artista durante sua vida: "De onde eu vim?".

Antigamente, falar de ancestralidade, de raízes, parecia ser a evocação de um demônio, de um passado, das sombras que ninguém queria. Todo mundo vivia a pressão do presente, sem tocar no resquício escravocrata, o preconceito de cor sobre o outro.

Essas reflexões vieram após Carlinhos topar o convite de Ecoa para realizar um teste de DNA de ancestralidade genética que indicasse os lugares no mundo de onde vieram seus ancestrais. Mas ele não anda só. Três gerações da família Freitas embarcaram na experiência. Além dele, sua mãe, dona Madalena; seu pai, Renato Freitas e dois de seus filhos, Clara Buarque e Chico Brown. Tudo isso embalado com música e as habituais digressões do timbaleiro, que começam em um ponto e terminam para além de onde a vista alcança.

É bonito quando você vê que o DNA aponta de onde você tem mais influência. É lindo se reconhecer nessas posturas, mas, ao mesmo tempo, tem uma obviedade de que nós somos deste mundo e pertencemos a várias origens. A ancestralidade pode também transgredir para a espiritualidade. E o DNA é apenas esse reconhecimento de que você passa por forças e famílias mundiais que são importantes.
Carlinhos Brown

Filha da resistência

Para dona Madalena, 75, ter o continente africano cravado em seu DNA era uma certeza. Segundo o teste, 90% de seu material genético é do Oeste e Norte da África.

Olha, eu não vou dizer que esperava ou que não esperava. Quanto à África, não tem como. Sempre disseram que a gente tinha o 'pé na senzala'. Se eu sou negra, filha de negros, descendente do povo da África, como é que alguém vai dizer: 'Madá, você é branca'? Me aceito como sou, sou feliz assim.

Filha de uma lavadeira de Irará (BA) e de um pedreiro de Cruz das Almas (BA), Dona Madá cresceu na comunidade do Candeal Pequeno, no bairro soteropolitano de Brotas.

Hoje símbolo da revitalização urbana, muito por conta da escola de música fundada por Brown, o Candeal é símbolo da resistência negra no Brasil. O local foi fundado por volta de 1780 por um casal incomum. Manuel Mendes era um muçulmano livre e Josefa de Santana, uma africana livre que veio da Costa do Marfim para o Brasil em busca de uma parente escravizada. Quando os dois compraram a chamada Roça Candeal Pequeno, Dona Josefa transformou a região em um quilombo urbano, que passou a abrigar negros recém-libertos ou fugidos.

Cozinhar para sobreviver

Com o tempo, o lugar se dividiu em dois. No Candeal pequeno, viviam os pobres. No Alto Candeal, a classe média e as patroas de dona Madá. Como fruto de seu tempo, ela herdou a precariedade da vida dos negros recém-libertos. Aos 16 anos, casou-se com Renato Freitas, conhecido como Bororó.

"Para criar os nove, lavei muita roupa. Na época da escola, cansei de quebrar o lápis no meio para dar um pedaço ao que estudava de manhã e outro, ao que estudava à tarde. Mas eu nunca aceitei se um deles chegasse com um lápis inteiro."

Diferentemente de muita gente que vê na comida uma ligação ancestral, Madalena via no preparo dos alimentos um esforço de sobrevivência, aprendido ao observar as cozinheiras das patroas. "Minha mãe não sabia cozinhar patavina de nada. O que me fez cozinhar, aprender a fazer alguma coisa, que eu não sou 'chefa', foi a vida. Eu cozinho para matar a fome", diz a matriarca, famosa pela moqueca e que acabou de abrir um restaurante no Candeal.

Dessa época, Brown recorda com vivacidade do quintal repleto de galinhas e dos alimentos que brotavam da terra: banana, manga e chuchu. Pela manhã, tinha biju. Pão só aos fins de semana. Mas isso ele conta que só conheceu aos 12 anos.

Trisavô jurista

Apesar da penúria, a família descende de uma figura importante da corte, conta Brown. Renato, 82, é bisneto de Augusto Teixeira de Freitas (1816-1883), jurista baiano responsável pela Consolidação das Leis Civis brasileiras, de 1858, e, a pedido de Dom Pedro II, do Esboço do Código Civil do Brasil, de 1860. O rosto desse trisavô não está nos retratos da família, mas é possível vê-lo em uma estátua na Universidade Federal da Bahia.

"Existe aí uma questão profunda. Como a gente foi parar em tamanha pobreza se a família tinha essa conexão com a corte? Aconteceu porque os pais não davam nome aos filhos. Eram as mães que seguravam a onda", reflete Brown.

Na certidão de nascimento, Seu Bororó não leva o nome do pai, apenas da mãe, dona Gertrudes Ferreira da Cruz, lembrada por Brown como "uma cigana loira e elegante". A composição genética do pai de Carlinhos surpreendeu a família, pois, além de africanos e europeus, parte de seus antepassados são indígenas das Américas Central e do Sul. Apesar de fazer o teste de DNA, Renato não concedeu entrevista por questões de saúde.

Quando a alma fala

Nascido e criado em Salvador, Carlinhos Brown, 59, fez o batuque e o suingue de sua terra natal percorrer o mundo, da Bahia ao Japão, passando pela França. De certa forma, viu sua música fazer a travessia na mão contrária à rota de seus antepassados, que agora descobriu, enfim, não serem apenas povos africanos, mas europeus e indígenas americanos também.

"Eu era uma criança questionadora e peralta. Não aceitava a pobreza, o descuido, o descaso e a até violência doméstica, oriunda da educação escravocrata", conta.

Segundo o teste de DNA, 80% de seu material genético veio do Oeste e Norte da África. Ao refletir sobre essa comprovação genética, Brown vai desfiando uma série de histórias repletas de ancestralidade. "Isso é algo que você traz dentro de você."

Desde criança, ele gosta de cantar em iorubá, uma língua presente na Nigéria, de onde advém 28,5% de seu material genético. A música "Ashansu", do Timbalada, é um dos exemplos.

Esbarrei em muita crítica por isso. Diziam que eu só falava onomatopeias. É claro que a alma termina balbuciando o que a língua não alcança. Aquilo faz com que as pessoas chorem, se emocionem. É uma comunicação em que não há adjetivos no mundo para ser dito, e nenhum homem é forte suficientemente para compreender o que sua própria alma está dizendo. É melhor ouvi-la e aprender com ela.

Carlinhos Brown

Brown lê os nomes dos países apresentados em seu teste, passa por Benin (30,5%), Serra Leoa (5,1%) e para em Uganda (1,6%). Então, recorda da canção "Argila", dos versos "Uganda, cubana, ipanamana, baiana, luanda, nada / Ruanda, kinshze, manga, banana".

Composta para seu primeiro álbum solo, o "Alfagamabetizado", de 1996, a música trata da perplexidade do músico diante da extração ilegal dos chamados "diamantes de sangue" de Ruanda, dada a extrema violência da exploração promovida pela guerra entre facções.

"Fiquei muito feliz de ter alguma conexão com a Uganda. Quando escrevi 'Argila', estava muito comovido pelo desastre da extração dos diamantes que levavam o nosso povo a se digladiar. Eles matavam uns aos outros. Era doloroso saber daquela realidade."

Tem alemão aí?

Para os filhos Clara Buarque, 23, e Chico Brown, 25, saber de onde vieram seus antepassados trouxe surpresas. Netos do músico e escritor Chico Buarque e da atriz Marieta Severo, os irmãos são filhos de Helena Buarque de Holanda e Carlinhos, casados por mais de 10 anos. Juntos, também tiveram Cecília, 13, e Leila, 10. Além deles, Brown tem outros quatro filhos: Miguel Freitas, 24; Nina Freitas, 31; Daniel Freitas, 3, e Maria Madah Freitas, recém-nascida.

Chico tinha expectativa de que o teste de DNA trouxesse resultados diferentes. Pelo lado materno, havia evidências sobre um traço holandês como resultado da colonização do país europeu no nordeste brasileiro no século 17.

Ele também esperava algum vestígio alemão, devido a uma história conhecida não só na família, mas transposta no livro "O Irmão Alemão" pelo avô, Chico Buarque. A obra relata a existência de seu irmão estrangeiro, Sérgio Ernst, fruto da passagem do pai, o escritor e historiador Sérgio Buarque de Holanda, pela movimentada cidade de Berlim nos anos 1920, quando era correspondente internacional de "O Jornal dos Diários Associados".

Contudo, a parte europeia se restringiu a País Basco, Espanha e Portugal. "Isso surpreendeu minha família materna", diz o músico.

Mistura do nariz ao cabelo

Para Clara Buarque, a mescla das famílias está também em seus traços. "É uma mistura muito grande de dois universos, que se encontram de alguma forma. Me vejo como a mistura dos dois, esteticamente e por dentro, no jeito de ser. Está no meu trabalho, na música, no cabelo, no nariz, na boca, em tudo."

A união entre os Freitas e os Buarque de Holanda levou a família para a ponte aérea Salvador-Rio de Janeiro. Depois da infância na Bahia, os irmãos se mudaram aos 10 anos para o Rio. Chico Brown conta que foi nas ruas cariocas que viveu o racismo, ausente em sua vida na capital baiana.

"Eu não queria cabelo cortadinho, como todo mundo da minha cor que eu via na rua. Queria deixar meu cabelo crescer, que nem o Michael Jackson, James Brown e Jimi Hendrix. Antes de fazer dread, meu cabelo era black. Aqui no Rio, a galera passava na rua e zoava, xingava. Dando risada ou com ódio mesmo."

Era Santo Antônio, é Ogum

Durante a juventude, dona Madalena saía escondida de casa para ouvir as rezas das festas de São João e Santo Antônio, que aconteciam nas noites do Candeal. Também a interessavam as comidas típicas, como o mungunzá e o mingau de milho.

"Eu não dormia para ficar vendo o pessoal na rua rezando, soltando fogos e gritando 'Viva São João, Viva Santo Antônio'. Por isso, quando tive meu primeiro filho, sabia que se chamaria Antônio", conta.

Apesar de homenagear um santo, Antônio Carlos teve seus primeiros contatos com a música no candomblé. Ainda uma área rural, o Candeal abrigava alguns dos principais terreiros de Salvador, como o primeiro assentamento na América Latina de Elegbara, um dos orixás da religião. Na época, dona Madá lavava roupas, e Carlinhos levava as trouxas limpas para a casa das patroas. Nas andanças, ouvia tanto os tambores quanto os cânticos católicos.

Eu sou Antônio. Pelo sincretismo, além de Santo Antônio, sou Ogum. O Candeal é ecumênico. Eu não posso considerar o candomblé uma influência. Ao contrário, eu vivo isso. Esse afro-barroco, que em mim habita, não é consequência de ficar ouvindo, é por eu estar vivendo, de ter meus pais, tudo ali dentro. Eu só transformei aquilo em algo pop para os ouvidos.

Era o tambor um verbo

Absorvido pela musicalidade das ruas, Brown fez seu nome na festa mais popular do Brasil. Aos 17 anos, passou a acompanhar o líder de percussão, Mestre Pintado do Bongô. Participou dos primeiros arranjos que originaram o axé e o samba reggae, compôs centenas de sucessos e é um dos criadores do movimento percurssivo Timbalada.

"Esse é o meu bairro, essa é a história da minha infância e, a partir de todas essas vivências, eu ganhei uma experiência especial no tratar, no viver, na minha forma de me comportar. Isso me fez ser quem eu sou."

Além dos trios, foi percussionista da banda de Caetano Veloso. A parceria rendeu projeção internacional quando compôs o hit "Meia Lua Inteira", em 1989, um divisor de águas para sua carreira. Mesmo dono de vários sucessos desde então, é o batuque que toca seu coração.

"Ah, quando começarem verdadeiramente a conhecer as línguas dos tambores, vai ser uma ação, porque o tambor deu a palavra ao homem, o tambor trouxe o verbo. Tem muita coisa escondida aí que a gente só vai descobrir com o tempo."

Por filhos não monotemáticos

Se depender de Nina, Miguel, Chico e Clara, a dinastia dos Buarque de Freitas na música vai continuar. Dos dias da infância em Salvador, Chico e Clara se lembram do amarelo da casa em que moravam e dos sons dos shows da Timbalada. "A gente respirava arte", conta Clara. Para Carlinhos, esse é o exemplo mais bem acabado do que se pode entender por laço ancestral.

"É importante que os homens respeitem as suas vocações e que deem margem para elas crescerem, porque são nelas que está ancestralidade. Ninguém é fruto de uma invenção, você é fruto de tudo que já aconteceu, de um passado. Meus filhos são frutos do meu passado e do passado dos meus. Só que eles terminam tendo uma nova consciência."

Chico Brown, à sua maneira, concorda, mas acredita que a música é ponte para conectar as pessoas com a natureza. "A lei da física e a natureza são iguais para todos nós. Por isso, a reação que o ser humano tem com essa arte é igual. Sinto que a música trabalha a memória ancestral, a lembrança do que a gente não viveu e do que ainda queremos viver", conta.

Para Brown, a alegria de um pai é ver os filhos trilharem seu caminho, mas de um jeito completamente diferente.

Quando você tem pais com quem compartilha uma vocação, o importante é que o DNA não lhe atrapalhe. É necessário os filhos contarem com outros informantes para não serem monotemáticos. Orgulhar o pai é viciante, mas, dali a pouco, você acaba cada vez mais parecido com ele. Por isso, é importante libertar seu filho para intuir, aprender com os outros e ter um repertório pessoal. Isso dá a ele muito mais sobrevivência. Assim são meus filhos, que não fazem música parecida com a minha, mas, ao contrário, me surpreendem. Só uma base ancestral pode trazer tamanha clareza.

O exame de DNA se popularizou e virou uma ferramenta importante para resgatar e discutir a ancestralidade do povo brasileiro. Em 2021, Tilt propôs, e 20 personalidades negras toparam fazer o teste e olhar para a cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil, na primeira temporada do Projeto Origens. Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim". Agora, em 2022, Ecoa convidou, e três famílias olharam para seu passado a partir das descobertas genéticas. Esta é a segunda temporada do Projeto Origens. Você está no capítulo "FAMÍLIA BROWN". Veja os outros:

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