Em primeira pessoa

Mulheres negras transformam escrita baseada em experiências pessoais em terapia, livros e formação política

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Bruno Santos/Folhapress

Foi de repente que Janaína Bernadino acordou com uma história na cabeça. Escreveu sobre Niara, a quem deu um entorno matriarcal com mãe, tias e avós. Nenhum homem à vista. Narrou sobre a vida da família após a morte da avó Nzinga. Nesse enredo, cada uma delas possui características que remetem às divindades cultuadas em religiões de matriz africana. Mãe e tias são representações de Oxum, Iansã e Iemanjá. Nzinga é Nanã, a orixá que possui a memória de um povo.

A estudante de jornalismo escreveu sobre elas no conto "No colo das Yabás", que em dezembro de 2020 ganhou o concurso literário "Não Pararemos de Lutar". Mas também escreveu sobre si. Assim como a personagem que inventou, Janaína também vem de uma família matriarcal. E há dois anos a avó materna, dona Lourdes Ambrosio Rosa, faleceu.

"Todas elas dão equilíbrio e força para Niara. Nzinga morre e ela fica no lugar da avó como continuidade. O conto fala sobre como a nossa relação com as pessoas que se foram ainda é forte e como essas ancestrais podem nos ajudar a potencializar nossa caminhada de alguma forma", conta.

Ficcionalizando a realidade que vive, Janaína tem escrito textos que usam como base o que a escritora mineira Conceição Evaristo chama de "escrevivências", o ato político e literário de mulheres negras que escrevem usando a realidade como matéria-prima. "As escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de uma autorrepresentação. Surge a fala e um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido", escreveu Conceição Evaristo no artigo "Gênero e Etnia: uma Escre(vivência) de dupla face".

Neste ano, completam-se 18 anos desde que Conceição Evaristo apresentou o conceito de escrevivências em um livro. A história de "Ponciá Vincêncio, que empresta o nome para o título da obra de estreia da autora, já estava escrita havia dez anos, mas só em 2003 a escritora mineira, após ser recusada por editoras, tirou do próprio bolso o dinheiro para conseguir ser publicada.

Bruno Santos/Folhapress

"Cordeiro de Nanã"

Assim como o conto "No colo das Yabás", de Janaína Bernadino , a música de Mateus Aleluia cantada por Thalma de Freitas homenageia a orixá Nanã

Escrever o que se vive

No início do livro de estreia, Conceição narra um episódio curioso que expressa bem a proximidade muitas vezes sentida entre criador e criatura dentro do conceito de "escrevivências".

"Na (con)fusão já me pediram autógrafo, me abordando carinhosamente por Ponciá Evaristo e distraída quase assinei, como se fosse eu a moça, ou como se a moça fosse eu," escreve Conceição. Essa ligação acontece porque muito do que ocorre nas histórias contadas pela autora é baseado no que ela vivenciou.

Foi justamente "Ponciá Vincenzo" que Laressa Teixeira escolheu como primeiro livro a ser entregue pelo Biga e Mica, projeto que ela criou em 2020 para a formação pessoal e política de mulheres de favelas e periferias no Rio de Janeiro. A ideia é distribuir uma saco ou caixa contendo um livro escrito por uma autora negra e um caderno em branco.

"Não é um projeto que entrega um livro ou um caderno para essas mulheres por achar que essas mulheres precisam ler para aprender alguma coisa sobre a vida ou qualquer coisa do tipo. Muito pelo contrário, a ideia é de formar redes de apoio em cada um desses lugares onde realizamos entregas para aprender com essas mulheres e para que a gente consiga juntas e somando nossa realidade colocar em prática projetos e ações que atendam o maior número de realidades possíveis", conta Laressa.

Em um dos momentos de ação do Biga e Mica, Laressa foi abordada por uma senhora na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro (RJ). Ela dizia que tinha ficado muito interessada pelo projeto. Nunca tinha ouvido falar de Conceição Evaristo antes, e quando soube da oferta de receber o livro dela, ficou curiosa. Foi buscar na internet sobre a autora mineira. "Naquele dia eu pensei: é sobre isso. É sobre ter mais mulheres conhecendo obras de mulheres negras e se identificando com as histórias", diz Laressa.

Memória adquirida pela oralidade

Zanone Fraissat/Folhapress Zanone Fraissat/Folhapress

Na "escrevivência" não se tem o compromisso de contar fielmente a verdade dos fatos como ocorreram, diferente do que é esperado de textos autobiográficos. Assim, fica difícil dizer quais cenas descritas aconteceram de verdade e quais foram fruto da imaginação das autoras. As situações vividas com a avó que Janaína usou como inspiração para escrever o conto, por exemplo, não estão documentadas em papel. O que é escrito sobre os lugares ou personagens são com base nas lembranças do que ela vê, ouve ou sente. São fragmentos da memória da estudante.

Em "Insubmissas lágrimas de mulheres", Conceição chega a dizer "Invento? Sim, sem o menor pudor", e completa lançando um desafio: provoca o leitor a tentar relatar algo a alguém exatamente do jeito que aconteceu. "Entre o acontecimento e a narração, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta", completa.

A escritora que diz que, por não ter nascido rodeada de livros, encontrou nas pessoas e situações do dia a dia a matéria-prima para a criação. A simpatia que a mãe fazia para chamar o sol, agachando-se no chão para rabiscar na terra seca um desenho da estrela, foi a primeira vez que viu algo próximo à escrita.

Depois, passou a copiar uma mania que uma tia dela possuía: a de anotar frases curtas que relatam ações cotidianas. "Já paguei duas mensalidades para ajudar na festa da Capela do Rosário" ou "Dona Etelvina de Seu Basílio voltou para São Paulo no dia 15 de agosto de 1965", e assim por diante. Mas foi pela oralidade que ela diz ter conseguido armazenar material para originar a escrita.

Na tese "Escrevivências, as lembranças afrofemininas como um lugar da memória afro-brasileira", em que analisa a escrita de autoras negras, a doutora em letras Amanda Crispim Ferreira defende que "numa civilização marcada pela oralidade, como a africana, a acumulação de elementos na memória faz parte do cotidiano, como garantia de manutenção de suas identidades, por meio da transmissão de bens culturais."

Soltar a mão

Bruno Santos/Folhapress Bruno Santos/Folhapress

Bianca Santana também é uma dessas mulheres que sempre andou acompanhada pelas palavras. Se formou jornalista, escreve livros e foi dar aula de comunicação. Lecionando, passou a orientar trabalhos de conclusão de curso de estudantes universitários. Assim passou a ser incomodada por uma sensação que tinha ao ler os trabalhos escritos por mulheres.

"Ao contrário dos escritos por homens, os das mulheres tinha uma coisa travada, menos autoral, com menos estilo próprio, e aquilo foi me incomodando porque eram textos muito distantes, muito frios. E quando, de forma oral, elas me contavam sobre o tema, sobre o que estavam escrevendo, tinha mais vigor." Assim começou a passar um exercício para as meninas, um exercício em que as mulheres passam a escrever sobre si antes de começar suas teses. Faz isso para que elas possam "soltar a mão". Desde então tem facilitado oficinas de escrita para mulheres.

Apesar de ainda não ter se aprofundado em estudos sobre o tema, um de seus palpites é o de que isso acontecia por causa da baixa autoestima das mulheres, especialmente no meio acadêmico. "Nós temos na cabeça uma imagem do autor que foi uma imagem construída no século 18, quando surgem os direitos autorais. E aí cria-se essa ideia de autoria e de direito de autor, que é uma construção europeia. E isso fica muito na nossa cabeça como se a autoria pertence somente a eles", diz.

A própria Bianca ao escrever a tese que lhe rendeu o título de doutora em ciência da informação pela Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo), em 2020, o fez todo em primeira pessoa, o que não é comum no meio acadêmico, onde o sujeito costuma manter distância do objeto de estudo.

Mesmo assim, quando começou a produzi-la, o fez sem se colocar no texto. "E, aí, quando eu botei minha pesquisa no papel, eu pensei: mas qual o sentido de eu não me trazer para o texto, se tem tanto a ver. Eu me dei conta que essa primeira pessoa não é a primeira pessoa do singular, ela é do plural."

O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e adjacências. Dos fatos contados à meia-voz, dos relatos da noite, segredos, histórias que as crianças não podiam ouvir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava todos os meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia palavras, sons, murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor dependendo do enredo das histórias. De olhos cerrados eu construía as faces de minhas personagens reais e falantes. Era um jogo de escrever no escuro.

Conceição Evaristo, em "Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita"

Bruno Santos/Folhapress

O eu plural

Em "A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo" (2020), Bianca Santana defende que ao escrever sobre si, a mulher negra que opta pelo conceito de escrevivência ou por textos autobiográficos "ao contar eventos traumáticos, permite elaborar os traumas vividos além de, ao servir de testemunho, compor uma memória coletiva que é também elaboração de um trauma coletivo."

"Mulheres negras escrevem por motivações diversas, mas quando colocamos essa escrita no mundo, ela passa a ter vários sentidos. Um deles é a elaboração do trauma, colocando no mundo perspectivas que foram silenciadas até hoje", diz, relembrando do poema "Vozes-Mulheres", de Conceição Evaristo, em que a escritora fala sobre todas as mulheres que vieram antes dela e foram silenciadas de alguma forma.

"Ela fala das vozes mudas, caladas e silenciadas nas gargantas. A nossa escrita hoje, além de colocar para fora o que é a nossa experiência e nossa vida, também é um jeito de desafogar todas essas mulheres engasgadas," completa a jornalista e colunista de Ecoa.

"Vozes-Mulheres"

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo

+ Especiais

Raul Spinassé/UOL

"Torto Arado"

O best-seller que trabalha pela reforma agrária

Ler mais
Divulgação

Bela Gil

"Reforma agrária é das reformas mais importantes hoje no Brasil"

Ler mais
Marcus Leoni/Folhapress

Anielle Franco

Ela fala sobre empoderar mulheres negras, a memória da irmã Marielle e o ciclo da vida

Topo