Diva das mídias

Rita von Hunty faz das redes sociais sala de aula: "Durmo feliz quando usam meu material para mudar vidas"

Cristina Judar Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Karime Xavier/Folhapress

Na primeira infância, quis ser piloto de avião, astronauta, "sempre tive uma ligação muito forte com o ar". Depois, após assistir ao clássico do terror "O Exorcista", sonhou em ser padre e expulsar demônios. Na sequência, entendeu que gostaria muito de ser professor. Mas a primeira graduação de Guilherme Terreri foi em artes cênicas, paixão que nutriu "desde sempre" no teatro.

Foi inspirado por divas que causaram algum desconforto ao dizer o que pensavam - tais como Greta Garbo, Marlene Dietrich, Madonna e Bette Davis - e por pensadores e pensadoras do porte de Paulo Freire, Raymond Williams e Judith Butler, que Guilherme deu origem a Rita von Hunty.

A drag queen brasileira é um ícone para uma geração que está sendo ensinada a pensar, a debater, a questionar e a revolucionar com uma figura que transita entre os mundos do entretenimento, da educação e das artes, fazendo reflexões sobre assuntos tão diversos quanto complexos. Seu canal, Tempero Drag, tem quase um milhão de seguidores.

Recentemente, passou por uma experiência curiosa: uma amiga de sua cidade natal, Ribeirão Preto, interior de São Paulo, desenterrou uma cápsula do tempo. Nela, havia uma pergunta sobre como ele se via no futuro. "Apresentando um programa de TV" era a resposta. O sonho acabou por se concretizar.

"A Rita é uma lente de aumento sobre o meu senso de humor, a minha visão de mundo, meus posicionamentos políticos, e isso é meio que indissociável do meu eu professor", diz o criador de Rita von Hunty em entrevista a Ecoa. Leia abaixo a conversa com Guilherme Terreri.

Karime Xavier/Folhapress

Recebo muita mensagem de pessoas falando 'olha, me inspirei em você', 'estou cursando tal curso', 'vou para o vestibular', 'consegui ter uma nota boa', 'fiz um bom trabalho por causa do seu vídeo'. E isso é o que me faz dormir feliz, quando pessoas usam o meu material para mudar suas vidas.

Guilherme Terreri, criador da Rita von Hunty

Redes sociais por um mundo melhor

Ecoa - Muito se falou sobre o impacto das redes sociais nas eleições de candidatos antidemocráticos. No entanto, seu canal já tem quase 800 mil seguidores. É possível usar as redes na construção de um mundo melhor?

Guilherme Terreri - É e não é. A rede social não constrói nada. Ela é uma ferramenta que pode ser utilizada na construção de algo. A questão é de que forma os nossos acessos e usos das redes são possibilitados e para quem eles chegam, de que forma eles chegam. Todo mundo tem acesso à rede social? Quanto tempo as pessoas passam nela? De onde essas pessoas vêm? Qual é a classe social dessas pessoas? Quanto tempo elas têm para se dedicar à leitura de um texto? Pra ver um vídeo? Depois de ler o texto e ver o vídeo, eles serão debatidos? Ou a rede social reproduz, em algum sentido, uma lógica da indústria de cultura que submete a pessoa que acompanha a uma posição de espectador passivo, que só fica olhando e depois vai dormir? O conteúdo é infinito na rede social. Aí estou assistindo uma receita, depois um vídeo sobre política, depois um comentário sobre esporte, depois leio uma notícia, aí assisto uma dancinha e vou dormir. Essa ideia não é de emancipação, de melhoria, de debate.

Que outros canais de YouTube você recomenda para jovens interessados em mudar o mundo?

"Se quiser mudar o mundo - um guia político para quem se importa" é o título de um livro da Sabrina Fernandes, que tem um canal no YouTube chamado "Tese Onze". Tem também o "Bem Vivendo", do Thiago Ávila. Eu gosto muito do "História Cabeluda", do "História Liberta!", da produção do "Chavoso da USP", do Jones Manoel, da Dimitra Vulcana, da Laura Sabino.

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Como inspirar pessoas

Acredita que é possível tornar assuntos como a luta pelo clima e por um mundo mais justo grandes movimentos de massa? Como inspirar as pessoas?

Ou a gente torna esse assunto das pessoas, de toda a população, ou a gente tem um futuro terrível pela frente. E como a gente inspira pessoas... Tem um autor que eu amo, o Mark Fisher, que escreveu um livro chamado "Realismo capitalista", no qual ele reitera a tese de que a gente vive numa época em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Mostrar para as pessoas que há alternativa, que uma vida em comunhão com a natureza, de não depredação dos meios naturais é possível, que a gente tem muito a aprender com povos originários, que a gente tem muito a aprender com comunidades quilombolas, que a gente tem muito a aprender com agricultores familiares, é uma possibilidade de apontamento em outra direção.

Que autore(a)s e pensadore(a)s você considera fundamentais na sua formação?

Ótima pergunta: eu acho que uma bibliografia básica para entender Rita von Hunty passaria talvez por cinco pensadores: Terry Eagleton, Raymond Williams, Fredric Jameson, Slavoj Zizek e a Judith Butler. Claro que não posso deixar de citar o Paulo Freire, Roberto Schwarz, Antônio Candido, Angela Davis, a Lélia Gonzales.

Fábio Audi/Divulgação

Acredita que houve avanços na causa LGBTQIA+ na última década?

A resposta é sempre sim e não. A gente tem que pensar que, formalmente, houve muitos avanços importantíssimos, mas faz mais de doze anos que o Brasil lidera uma lista mundial de países que mais violentam e assassinam pessoas LGBT, então, houve avanço? A resposta é sempre para quem, onde e quando. As pessoas que podem casar, adotar, ter acesso à herança, são os gays e as lésbicas brancos de classe média, média-alta. Mas para as travestis periféricas, para as pessoas não-binárias, para as pessoas "queer", para a classe trabalhadora fodida, os avanços são meramente formais.

Qual a importância do seu trabalho em tempos de um governo LGBTQIA+fóbico?

A importância do meu trabalho em um tempo LGBTfóbico é fundamental porque a maioria das críticas ao meu trabalho não são conteudistas, são formalistas. A crítica é ad hominem, sobre a pessoa, não a ideia. Essa argumentação odiosa, violenta, acontece muito nesse campo de empobrecimento discursivo, a gente não tem grandes debates intelectuais sendo feitos. E aí eu acho que é muito importante para as gerações que vão vir - fico torcendo para que seja - saber que tem essa drag aqui falando sobre isso tudo.

Nas minhas mídias e canais o público LGBTQIA+ não é a maioria e eu acho isso muito legal. Falar pra convertido é fácil, o difícil é conversar com quem tem uma realidade distinta da sua.

Guilherme Terreri, criador da Rita von Hunty

Infância e mudança

O cenário político em que você cresceu foi determinante para a pessoa que você é hoje?

O meu avô tinha um grande envolvimento político com o PT (Partido dos Trabalhadores) em Ribeirão Preto no final dos anos 80, também teve um trabalho forte contra a ditadura, [assim como] a minha , a minha mãe. Eu cresci num ambiente familiar bastante consciente, social e historicamente falando, com muitos acessos, e onde o debate era estimulado. Entendo que todas as esferas resultam e impactam na ideia de indivíduo: a época, o recorte de classe, de raça, de gênero, nacionalidade, territorialidade, religiosidade. Eu cresci numa casa muito adepta do debate. Todos estavam preocupados em me ensinar a pensar.

Em que momento você sacou que seria interessante unir o seu background acadêmico à performatividade de uma drag queen?

Isso não aconteceu como um plano. As drags são lentes de aumento, como os palhaços. E a Rita é uma lente de aumento sobre o meu senso de humor, a minha visão de mundo, meus posicionamentos políticos, e aí é meio que indissociável do meu eu professor.

Talvez você tenha acompanhado, no Instagram da drag Joe Veloso (Jojo) um vídeo de interações dela com diversas crianças, que, ao serem perguntadas sobre qual seria a profissão de Joe, deram repostas como "professora" e "escritora". Qual é a importância das crianças, desde cedo na sala de aula, aprenderem sobre a diversidade e a não propagarem preconceitos?

Essa pergunta é a ideia do perigo da história única. Todos nós e todas nós somos, de certa forma, privados de uma história feminina e feminista, somos privados de uma história dos povos vencidos e colonizados, somos privados de uma história dos povos originários e dos povos em diáspora africana. E a gente tem uma tendência, que está sendo revertida há pouco tempo, de aprender a história através de um único ponto de vista, o ponto de vista de quem matou, colonizou, estuprou, invadiu.

Possibilitar que as pessoas tenham acesso a outras visões e outras versões das narrativas oficiais é, em primeiro lugar, abrir espaço para o debate. Em segundo, ressignificar as ideias que a gente tem do que é, do que deve ser, de como é, de como deve ser a vida social e a história, a historiografia. Mas esse já é um debate bem acadêmico... No entanto, no geral, a ideia das pessoas terem acesso a uma formação que mostre que o que elas pensam, como elas pensam, de que forma elas veem o mundo é resultado de uma configuração social e política é o primeiro passo pra gente mudar as coisas.

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