Os Tambores de Minas

Pela primeira vez em 106 anos o povo de Machado (MG) não saiu às ruas para celebrar sua Congada

Joel Corsini e Fred Di Giacomo Colaboração para Ecoa, em Machado (MG) e Berlim (ALE) Getty Images

O Santo Negro
O terrêro já tá cheio
A roda já começô
Pra fazê festa de preto
O congado já chegô

"Festa do Congado", Juraci Silveira

Este ano São Benedito não teve festa nas ruas. Benedito, o santo negro, filho de escravizados, não teve sua muvuca; 40 mil pessoas colorindo a pequena Machado, lá no sul de Minas. Não teve seu povo preto reunido na Subida do Mastro, a novena cantada, os ternos do Congado desfilando seu batuque. Sim, nada da cerveja gelada, nem biscoito fofo com pernil ou pastel de fubá fritando nas calçadas, enquanto o Rei Perpétuo e a Rainha Perpétua adentram a Igreja gloriosos. Este ano São Benedito não teve seus doze dias de celebração comemorados há 106 anos na segunda quinzena de agosto. Pobre São Benedito, a pandemia, que levou a vida de mais de 137 mil brasileiros, levou também sua festança tradicional que começava sempre numa sexta-feira e terminava, dozes dias depois, na terça.

O primeiro registro de uma Congada (também conhecida como Congado ou Congo) não foi feito em Machado, nem mesmo em outra cidade de Minas Gerais, estado onde mais de 53% da população é negra, mas em Recife, capital de Pernambuco no distante ano de 1674. Naquela ocasião, celebrou-se a coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga de Angola na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. A festa afro-brasileira tinha base nos costumes bantos, mas para ser permitida pelos senhores de engenho brancos tornou-se sincrética homenageando santos negros católicos; principalmente São Benedito, mas, também, Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e, posteriormente, Santa Isabel, em uma referência à Princesa Isabel, que assinou a lei Áurea.

A característica que une as Congadas espalhadas pelo Brasil é a coroação de um rei e uma rainha, além da realização de um cortejo real formado por músicos e dançarinos. Em Minas Gerais os congadeiros se dividem em "ternos", palavra que em "mineirês" significa "grupo de pessoas". De acordo com Cláudio Carvalho, 43, presidente da Associação dos Congadeiros local e professor da rede pública de ensino, em Machado existem entre 3.000 e 3.500 congadeiros, divididos em 19 ternos. Lá, a Festa de São Benedito encena um encontro de nações africanas, cada uma representada por um terno.

Carvalho explica que cada local da cidade, onde acontece a Festa de São Benedito, tem uma simbologia para o congadeiro. O Cruzeiro, por exemplo, simboliza "o tronco do irmão mais velho, que libertou todos, Jesus Cristo". O pé da cruz é o primeiro local que os congadeiros reverenciam ao adentrarem a Praça de São Benedito, reverência à memória dos que já se foram. Nessa simbologia arquitetônica, a Igreja de São Benedito seria a Casa Grande. Mesmo sendo elemento negativo na memória dos descendentes de escravizados, é dentro da Casa Grande que encontramos a "Ama de leite e Negrinha de Recado", representada por Nossa Senhora Aparecida, mãe do irmão mais velho, Jesus.

"A Santa Festa de um Santo"

Documentário sobre a Festa de São Benedito de Machado (MG)

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

King of the Congo: quem é quem nas Congadas?

As Congadas espalhadas pelo Brasil têm diferentes formações e algumas contam com côrtes reais gigantescas. Ecoa conversou com Cláudio Carvalho, presidente da Associação dos Congadeiros de Machado, para saber qual a estrutura dos ternos da cidade mineira.

A estrutura

1) Crianças e mulheres com fitas

2) Rainha Matricarca com bandeira estandarte de cada terno

3) Capitão do terno; primeiro dos congadeiros, simboliza o rei da Nação (em Machado, cada terno seria uma nação africana)

4) Os Congadeiros simbolizam a nação dividida em duas fileiras (dois cordões). Esses cordões representam a dualidade "mouros vs cristãos"

5) Guarda do Terno; vestido como guarda, esse personagem não desfila como os outros. Ele fica se movimentando e protegendo o terno enquanto ele desfila.

As roupas

Cada terno muda, anualmente, suas roupas. Tecnicamente elas não seguem uma simbologia específica, mas buscam sempre se inspirar nos paramentos do continente africano.

Os instrumentos

A ordem dos instrumentos se organiza do mesmo modo em todos os ternos: na frente os instrumentos de corda, seguidos das sanfonas, depois os instrumentos de sopro e, por último, no fundo, os instrumentos de percussão. Cada terno tem um setup diferente desses instrumentos, não há uma regra. Vai de acordo com o que cada grupo de congadeiros sabe tocar.
Os instrumentos mais comuns são banjo, bandolim, cavaquinho, viola e violão, sanfona, surdos, repique, malacacheta, reco-reco, chocalho, trombone, trompete e saxofone.

As cores

Na Congada há fitas coloridas nos santos, nos instrumentos dos congadeiros e também no mastro, que é erguido no começo da festa. As cores dessas fitas têm uma simbologia própria, nada ali é aleatório.

Branco e marrom: São Benedito
Rosa e azul: Nossa Senhora do Rosário
Amarelo e marrom: Santa Efigênia

Joel Corsini/Ecoa

Um encontro com a santa

A senhora do Rosário, aruera
Foi achada no deserto, aruera
Maçambique que encontrou, aruera
O Marinheiro estava perto

Ponto cantado pelo Moçambique de Belém, capitão Ramon Rodrigues

As Congadas chegaram a Minas Gerais com os escravizados trazidos à região para trabalhar no ciclo do ouro e se espalhou pelo sul do estado quando a região passou pela febre da plantação de café, atividade que é até hoje o motor econômico de Machado, conhecida em todos seus sites oficiais como "capital mundial do café orgânico" e localizada a apenas 279 km da capital de São Paulo, estado do qual fez parte antes de ser anexada por Minas Gerais.

Corre a lenda de que as celebrações dos congadeiros, na cidade de 42 mil habitantes, começaram ainda no século 19, após a abolição da escravatura, durante as Festas de São João, realizadas na zona rural. Nos registros oficiais do município, no entanto, a primeira festa dedicada a São Benedito, e organizada pelo comunidade negra local, se deu em 1914 e passou a ser tradição fixa e anual em 1923. O estudioso das congadas Murilo Carvalho coletou, no livro "Artistas e Festas Populares" (1977), um mito originário da congada em Machado. A narrativa foi feita no depoimento de um antigo Rei da Congada machadense, o Rei Perpétuo Joaquim Santana:

"O congo teve um princípio muito bonito aqui no Machado. No tempo do cativeiro tinha uns que gostavam de caçar de bodoque. Aconteceu que, caçando, acharam um nhanbu [tipo de pássaro] que aparecia e sumia, aparecia e sumia. Eles foram indo atrás, aí deu um num rochedo de pedra e o nhambu sumiu derradeiro e eles viram ali uma santa preta, uma estátua, em cima da pedra, no lugar onde o nhambu sumiu. Aí, eles eram três companheiros, levaram a mão na santa, mas ela não saiu do lugar, não puderam tirar. Foram embora para casa, chamaram outros cativos e voltaram, uma porção de homens, rezando, rezando em redor dela. Ainda não puderam tirar a santa, ela não saiu do lugar. Voltaram pra casa e inventaram outro modo, que nem na África: um arranjou uma violinha, outro uma caixa, um pandeirinho e todos vestiram uma saia colorida, que nem na África, e voltaram.

Aí chegaram e tocaram e dançaram em redor da Santa Nossa Senhora do Rosário e cantaram: 'Vamo, vamo Nossa Senhora. Vamo, vamo, Nossa Senhora'. E quando viu, a Santa deitou, eles puderam trazer. Puseram em riba de uma mesa e foram rezando, dançando admirando ela, adorando de vela acesa. Eram todos gente africana, cantavam enrolado numa língua velha que era deles. Daí nós continuamos todo o sempre com o nosso canto e a nossa dança, para homenagear a Santa e ao São Benedito que ajudou Nossa Senhora criar o Menino Jesus Argemiro e foi cozinheiro preto".

Biscoito com Pernil

Infelizmente, este ano a "Festa de São Benedito de Machado" teve de ser apenas virtual, mas você não precisa ficar sem o Biscoito com Pernil, prato mais tradicional da festança, por causa disso.

A iguaria é servida no "biscoito fofo" um tipo de pão de queijo maior e sem queijo, usado para fazer sanduíches.

O pessoal do Toda Carne ensina a receita:

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal
Arquivo pessoal

Os congadeiros

Oh! Bate bumbo aruanda de Xangô - Ora vamo na igreja rezar
Mas lá na mata cachoeira balanço - Ora vamo na igreja rezar
Mas lá invem Nossa Senhora brasileira - Que a Nossa Senhora mandou me chamar
Carregando no braço seu boclero de flô - Ora vamo na igreja rezar

Ponto do Terno Congo Santa Ifigênia, capitão José João, Uberlândia

"Com essa epidemia não dá para fazer uma festa e piorar, mas a turma precisa matar a vontade de bater uma caixa, né? Nóis gosta de tomar uma golinho e bater uma caixa, cantar as músicas do congo", diz Murilo Carvalho Godói, 61, congadeiro do Terno do Boi, o primeiro de Machado.

Sem pandemia, a cidade de Machado sabe que a Praça de São Benedito estaria cheia de barraquinhas vendendo comidas e iguarias típicas, especialmente o biscoito com pernil. "Nós estamos muito chateados porque nóis é congadeiro, né? Ano passado, uma hora dessas eu já teria ido para São Paulo, arrumado minha farda, juntado os filhos, ficado com a casa cheia. Muitas pessoas vem para Machado só uma vez por ano, é uma delícia", lamenta-se Carmen, conhecida como Tia Nêga, de 58 anos.

Apesar de o povo não estar liberado para louvar São Benedito nas ruas, houve um "terno" de lives no fim de agosto. "Esse ano a festa vai ser realizada com essa formatação de mídias digitais, de live. Mas vai ter a subida do mastro, vai ter as procissões. A Festa de São Benedito precisa ter a magnitude que sempre teve", explica Gustavo Ambrósio, 41, congadeiro e vice-presidente da Associação dos Congadeiros de Machado.

O marco para o início das comemorações em homenagem à São Benedito é a cerimônia da Subida do Mastro, quando na parte da tarde, metade dos ternos segue para a residência do Capitão do Mastro. Lá fica um longo tronco de eucalipto enfeitado com flores no seu topo e papéis coloridos em todo seu comprimento. A outra metade dos ternos marcha para a casa do Capitão da Bandeira, um quadro onde está estampada a figura de São Benedito.

O mastro e a bandeira ficam, ao longo de todo o ano, guardados em locais diferentes da cidade. Carregando as preciosidades, os ternos partem em alegre procissão para a Igreja Matriz, no Centro da cidade, quando acontece o encontro do mastro e da bandeira. No interior da igreja os capitães rezam juntos e daí a tropa vai colorindo a rua até a Praça de São Benedito, palco da algazarra mais tradicional do sul de Minas. No último dia da Congada, acontece a descida do mastro.

"Lembro de quando era pequeno, a gente ia na parte da praça das barracas de alimentação, todo sábado, juntava várias famílias e fazia uma confraternização. Lembro do pessoal da minha família que vinha de Campinas, de outras regiões. E você via a emoção deles quando o mastro descia, pessoal chorando, porque teriam que ir embora", conta Gustavo Ambrósio.

Ele, além de vivenciar a festa como congadeiro, levando a sério a parte religiosa, é figura carimbada na "parte profana" com copinho de chope nas mãos durante todos os dias do evento. Seguindo a tradição da família, o congadeiro faz parte do "Terno Nossa Senhora do Rosário", mas também dança no "Terno do Boi", o mais tradicional. Fazem parte deste terno, também, a família da Rainha do Congo Ti Marli, a Marlene da Cruz de Souza, de 60 anos.

"Nunca imaginei que ia ser rainha. Eu fiquei mocinha num festa de congado. Era para a minha irmã mais velha ser Rainha Congo, hoje, mas ela ficou com Alzheimer e morreu na Festa de São Benedito do ano passado. Aí, eu assumi. No ano passado, a primeira vez que subi as escadas da Igreja de São Benedito me deu uma emoção muito forte.", relembra Ti Marli enquanto toma uma cervejinha com Tia Nêga e outros familiares e amigos.

Depois das cervejas, "rolou uma canjiquinha com uma Lili muito importante", nas palavras da Tia Nêga. Lili é o apelido carinhoso para Limeira, uma cachaça de Machado. Em ano de pandemia, São Benedito e seus congadeiros terão que se contentar com brindes familiares de Lili e a transmissão das festanças por lives nas redes sociais.

Getty Images Getty Images

África - Brasil: as Congadas ao redor do país

As Congadas são uma manifestação muito mais pulverizada pelo Brasil do que imaginamos. Basicamente, onde houve presença maciça de escravos, houve Congadas. Hoje, elas se concentram nas cidades do sul e do sudeste. Neste mapa, listamos locais onde a festa ainda é louvada. É um trabalho em progresso e você pode nos ajudar.

Conhece outras cidades que ainda realizam Congadas?

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