Por Janaína, ele salva o mar

Com ajuda da filha e mais crianças, Zé Pescador deixou a pesca predatória para se dedicar à proteção ambiental

Juliana Vaz Colaboração para Ecoa, de São Paulo

"Nos anos 1990 eu já era pescador e trabalhava aqui, na ilha de Itaparica, litoral da Bahia, filiado à colônia de pesca, só que eu não tinha nenhuma consciência sobre ecologia - na verdade, essa palavra nem existia no nosso vocabulário.

Eu ia pro mar e, como todo pescador, trazia de lá tudo o que eu pudesse para comercializar e levar sustento à minha família. E o principal pescado era a lagosta, mesmo que de fêmeas ovadas. Alguns ainda me chamavam a atenção. 'Pô, Zé, você pesca lagosta ovada, assim vai acabar'. E minha resposta era sempre a mesma que de outros colegas: 'Se eu não pegar, outro pega!'

Quem me despertou para essa questão foi minha filha, Janaína. Ela tinha cerca de oito anos, apenas, quando me fez perceber que a forma com que eu trabalhava era errado.

Foi assim: um dia, ao voltar da pesca, enquanto eu separava os peixes, polvos e lagostas, Janaína se aproximou e viu uma das lagostas com bolinhas amarelas na barriga. Respondi que eram ovas. Ela insistiu na conversa, querendo saber o que eram 'ovas', afinal. Eu já sem paciência, cansado após um dia todo de trabalho, disse que cada bolinha daquela era um filhote.

Foi naquele instante que tudo começou a mudar. O olhar dela era de decepção ao perguntar porque eu não esperava os filhotinhos da lagosta nascerem primeiro. Isso foi muito forte para mim. Eu não queria deixar na memória dela a imagem de que seu pai era um destruidor da natureza e isso me abriu os olhos para a pesca predatória que eu, e também meus colegas, praticávamos. O sentimento de sustentabilidade veio antes de aprender essa palavra."

História de pescador

O que você leu aí em cima não é mais uma história de pescador, não. Apesar de manter o apelido, Zé deixou o ofício há muitos anos - mas nunca se afastou do mar.

Dois anos depois do episódio com a filha, Zé, conheceu o oceanógrafo José Luís que estudava os recifes de corais na ilha de Itaparica e logo ficaram amigos. Da troca, se juntaram com outros colegas, também preocupados com o meio ambiente, e criaram a associação PRÓ-MAR, em 2000.

O objetivo era criar projetos que dialogassem com os pescadores e marisqueiras, e também com as crianças da ilha.

"Diante da provocação que Janaína fez, entendemos que os pequenos eram formadores de opinião. Eles levam o que aprendem na escola para dentro de casa e contam aos pais, que vivem da pesca", Zé Pescador

Deu certo. Como o fundador da ONG diz, "a prática tem muito mais poder do que o discurso", e assim a PRÓ-MAR fez mutirões de limpeza de rios, de praias e principalmente dos recifes de corais - que são ecossistemas ricos em biodiversidade, tendo características importantes para o equilíbrio ecológico do ambiente marinho. Uma em cada quatro espécies marinhas vive nos recifes de coral, incluindo cerca de 65% das espécies de peixes.

"Nós conversávamos com as lideranças locais, íamos nas escolas, convidando as crianças a participarem das ações que estávamos propondo com seus pais, e o movimento foi acontecendo. As pessoas viam o envolvimento dos grupos saindo para o mar e trazendo tanto lixo pra praia, que começaram a achar bacana participar também. Elas se sentiam bem de fazer algo."

A necessidade era - e ainda é - tratar os conceitos com uma linguagem simples, que realmente troque conhecimento com os povos tradicionais, segundo Zé. A ideia nunca foi impor nada, pelo contrário: ao estabelecer um diálogo, a própria comunidade é incentivada a propor soluções.

"Falando sobre a escassez de um determinado pescado, discutimos soluções ambientais com quem vive daquele território, estimulando a criatividade de quem está diretamente sendo impactado." Um bom exemplo aconteceu em 2007, em Aratuba, ao sul da ilha de Itaparica. A pesca era a principal atividade econômica até então e os recifes de corais das caramuãs, os locais preferidos para a atividade. Caramuãs ou caramuanas é como são chamados os três bancos recifais situados a sudeste da ilha, a cerca de três quilômetros da costa. Suas paredes podem chegar aos sete metros de profundidade.

Então veio o dia em que os pescadores saíam pro mar e não achavam mais nada. Por iniciativa dos próprios pescadores e com o apoio da PRÓ-MAR, criaram a Associação de Moradores e Pescadores de Aratuba e delimitaram uma área marinha a ser protegida. E na sede criada, com uma taxa mensal simbólica na época, foram realizados gratuitamente cursos de idiomas e culinária.

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL

Ecoturismo vs pesca predatória

Desde a fundação, em 2000, a PRÓ-MAR atua no campo socioambiental, incentivando o ecoturismo e empreendedorismo: iniciaram a capacitação de pessoas a atividades alternativas à pesca, como o mergulho orientado, já que no mesmo mar dos peixes de interesse comercial, há os coloridos e ornamentais budião azul, o borboleta e o barbeiro. Realizaram aulas e palestras sobre educação ambiental, para adultos e crianças, além de centralizar o monitoramento da vida marinha.

Outra frente que Zé encabeça é a conversa com empresas privadas buscando investimento, mostrando na ponta do lápis como fica mais barato mitigar problemas, cumprindo as leis ambientais, e investindo em conscientização. "Ao longo dos anos o diálogo foi se tornando mais fácil porque nesse mercado globalizado, não aderir a causas socioambientais, é mal visto. E os danos são mais noticiados e os setores são cobrados."

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL

A praga dos mares

Trazido da Ásia nos anos 1980, o bioinvasor coral-sol (Tubastraea tagusensis e Tubastraea coccinea) é um animal cnidário (do mesmo grupo das águas-vivas e anêmonas), que se reproduz de forma assexuada e provoca a extinção dos corais nativos. O bioinvasor foi detectado na Bahia pela primeira vez em 2008, no naufrágio Cavo Artemidi, e desde então se prolifera no fundo da Baía de Todos os Santos, colocando em risco a biodiversidade marinha nos recifes. Uma das consequências econômicas é que este invasor pode reduzir a oferta do pescado a longo prazo, prejudicando quem vive da pesca.

O coral-sol tem capacidade reprodutiva de duas a três vezes mais que as espécies nativas. "Onde a espécie se instala, a vida marinha praticamente desaparece. O bicho é muito resistente, trata-se de uma praga. Estamos muito impressionados com a expansão nos mangues, inclusive", diz Zé. Há estudos que comprovam que o coral-sol foi trazido por plataformas de petróleo advindas do Golfo do México. Voluntários de ONGs começaram a remover o bioinvasor manualmente em paralelo às pesquisas acadêmicas. Em 2014 a PRÓ-MAR obteve licença do Ibama para seguir com o trabalho, que pede por especialistas.

E mesmo em recifes artificiais, o coral-sol já foi encontrado, como na marina de Itaparica e nas plataformas da Petrobras, no estuário do Rio Paraguaçu, onde fica a Reserva Extrativista Marinha do Iguape. Para viabilizar o trabalho, que exige recursos financeiros, a PRÓ-MAR negocia com as petroleiras e empresas que atuam no ramo.

"Há pouco tempo o Banco Interamericano de Desenvolvimento nos chamou para fazer um diagnóstico e controle de coral-sol na marina de Itaparica. Para a marina, que já havia sido reformada, não ficar lá cheia de coral-sol. São coisas que influenciam outros segmentos a olharem seus negócios um pouco abaixo da linha d'água, que tem tanta vida lá embaixo", declara Zé.

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL
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A rede conectada de Zé Pescador

A ONG mantém contato direto com outras organizações como o Projeto Tamar, Projeto Baleia Jubarte, Projeto Manguezal, entre outros, para fomentar a troca, além de estreitar o contato com as universidades. "Tem muita gente sedenta por botar em prática as metodologias que aprende na academia, mas está distante da realidade. Nós íamos atrás desse pessoal também."

Uma dessas pessoas foi a bióloga Priscilla Malafaia. Quando ainda estava no segundo ano do curso de biologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), lá em 2008, Priscilla pesquisava sobre pesca artesanal e conheceu Zé Pescador. Mas foi só no ano seguinte que estreitou os laços com a PRÓ-MAR para então se juntar à ONG e ficar por lá dois anos - uma de suas primeiras experiências profissionais. De lá para cá, a bióloga expandiu sua área de trabalho e fez parte da equipe de mitigação de danos causados aos pescadores atingidos pelo rompimento da barragem em Mariana. Enfrentar esse tipo de desafio foi um marco na carreira profissional, percebe a bióloga, mas fazer um trabalho de prevenção de desastres ambientais começou a fazer mais sentido para ela.

Assim, Priscilla voltou a PRÓ-MAR. "Eu me lembrava da experiência na organização de estar mais próxima da linha de frente na preservação ambiental dos ambientes costeiros e marinhos, capaz de unir a ciência e as pessoas e ver a mudança na postura no dia a dia delas. E sentia muita falta disso."

"Uma das principais características de Zé Pescador é ser idealista, desejar uma realidade melhor para todos. Admiro e tenho sinergia com esse idealismo dele.", Priscilla Malafaia

Quem também soma o time da PRÓ-MAR é Karina Martins, bióloga, doutora em Ensino de Biologia, que atua como coordenadora de projetos na PRÓ-MAR. Ela já colaborou com a organização na leitura de algumas propostas e faz parte do time, oficialmente, desde 2018. Karina é a líder do Projeto Maré Cheia, uma iniciativa da PRÓ-MAR em parceria com a Petrobras. A proposta visa a educação ambiental, formação e capacitação de jovens e adultos e inclusão social, e faz parte do Programa Coral-sol na Baía de Todos os Santos. "Em 2018, ano que iniciamos o projeto, atuamos nas comunidades de Vera Cruz, Itaparica, Maragojipe e ilha de Boipeba. Desde então a formação de 17 mergulhadores científicos, 32 professores formados em educação ambiental para locais costeiros e 23 condutores ambientais. Além disso, mais de 120 crianças participaram da 'Tenda Ambiental', um site que agrega conteúdos que criamos sobre educação ambiental, para crianças de 4 a 12 anos, já em formato online."

Agora em 2020, mesmo com a pandemia, a PRO-MAR continuou com as atividades, mas teve que adaptar tudo para o digital, inclusive a formação de condutores ambientais da ilha de Boipeba, que já havia sido iniciada antes da pandemia. O curso tem apoio do Sebrae e Senac em algumas disciplinas.

A PRÓ-MAR é mais que trabalho. É o local que me mostra possibilidades de transformar vidas por meio das das ações de educação ambiental que desenvolvo. PRÓ-MAR no meu dicionário significa transformação!

Karina Martins, bióloga, doutora em Ensino de Biologia

Janaína

(...)A cantar, na maré que vai e na maré que vem
Do fim mais no fim do mar, bem mais além
Bem mais além do que o fim do mar, bem mais além
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem (...)

Canto de Iemanjá, Baden Powell e Vinicius de Morais

Quem teve a vida impactada diretamente pelas ideias de ações de Zé, e com a criação da PRÓ-MAR, foi, obviamente, Janaína Muniz. A filha de Zé Pescador, que leva brasileiro da orixá Iemanjá.

"Naquele dia, se passou como um filme na minha cabeça de criança. Era simples e óbvio: era só meu pai esperar os filhotinhos nascerem e pronto, pescava a lagosta", Janaína Muniz.

A preocupação com os animais e com a poluição, também parecia inata a ela. "Me lembro das inúmeras vezes que os colegas maldosos da escola me viam recolhendo lixo na praia e me chamavam de lixeira - como se fosse algo negativo. Eu não tava nem aí, nem ligava. Eu sempre estive envolvida na Promar, até porque ela nasceu na sala de casa, praticamente."

Janaína passou por diversos setores da ONG e hoje ocupa a cadeira de vice-presidente da PRÓ-MAR, e sente muito orgulho do pai, por esses 20 anos de luta pela preservação ambiental. Do outro lado, Zé, se derrete por ver sua " menina da lagosta" seguir seus passos e co-liderar o caminho que trilhou.

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL

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