Abrindo caminhos

Toni Reis briga desde os anos 1990 para garantir direitos a pessoas e famílias LGBTQIA+

Juliana Vaz Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Theo Marques/UOL

"Temos um projeto que se chama Cumpra-se. Estou coordenando com advogados de todos os estados do país, com parcerias com o ministério público, defensorias, OAB, para que qualquer denúncia, é preciso ir para cima. Não tem que ter acordo para não processar. Se tiver crime, vai ter processo

O Bolsonaro não inventou a homofobia e o patriarcado, ele só escancarou. Acho ótimo pessoas que saiam do esgoto e joguem esses preconceitos para fora, porque aí, nós vamos para a arena. E na arena todos estão vendo.

Eu sou obstinado, mas calmo e paciente. Discuto com o presidente da frente evangélica, tranquilamente. O fundamentalismo religioso é uma ameaça real aos direitos das minorias. O amor não é doença."

Toni Reis nasceu em Coronel Vivida, no Paraná, em 1964, e enfrentou a homofobia, a igreja e a legislação brasileira para se tornar quem é hoje: um homem gay, cristão, casado com o inglês David Harrad e pai de três jovens.

Ele conta que o período que viveu dos 14 aos 20 anos foi terrível. "Eu não me sentia gente. Aos 14 anos, disse para minha mãe: 'sou um anormal, um pecador, um criminoso'. Ela respondeu que ia me ajudar. E me levou ao médico", conta.

Indo à missa desde criança, Toni também buscou aconselhamento com o padre da paróquia, que o orientou a fazer novenas de oração. E a cada "recaída", ele deveria recomeçar o ciclo de orações. "A novena virou uma quarentena, porque nunca me curei de ser gay", conta, rindo. Ele procurou igreja evangélica, umbanda, e pensou em suicídio ao menos três vezes nesse período.

"Isso me tornou uma pessoa indignada: não quero que nenhum adolescente passe pelo que passei." E, assim, Toni decidiu lutar.

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

Luta por um Estado laico

Aos 20, quando cursava Letras na Universidade Federal do Paraná, o mundo se abriu para Toni. No fim dos anos 1980, foi para a Europa. Morou na Espanha, na Itália, na França e na Inglaterra, onde conheceu seu marido, David. Em 1991, voltou para Curitiba, junto com David.

A imigração brasileira, no entanto, permite que estrangeiros passem apenas três meses como turistas no país. Ao fim desse período, devem ter um visto de permanência. E para ter isso, David deveria ter um contrato de trabalho com alguma organização que garantisse o emprego, por escrito, ou se casando com uma mulher brasileira, já que só em 2011 o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a reconhecer a união estável entre casais do mesmo gênero como entidade familiar.

David ficou ilegal por um período, acabou sendo preso em 1995 e recebeu um ultimato: tinha de sair do país em oito dias. "Choramos e avaliamos nossas possibilidades: ou enfrentaríamos o sistema ou nos mudaríamos para uma região remota do país, e seguiríamos 'fugindo'. Nós decidimos lutar", lembra.

E, então, enfrentaram o sistema. Toni já era um ativista e foi, em 1992, um dos fundadores do Grupo Dignidade, a primeira organização da sociedade civil paranaense voltada para a promoção e defesa dos direitos humanos da comunidade LGBTQIA+. Eles tiveram a ideia de organizar uma mobilização pública em torno do problema deles. "Bombou nos jornais, foram ao programa do Jô Soares, matéria do Fantástico. Conseguimos mobilizar o cônsul, embaixador da Inglaterra, a querida Ruth Cardoso e a então deputada Marta Suplicy." Conseguiram uma saída "com o jeitinho brasileiro": David foi contratado como tradutor com a ajuda de amigos do casal e pôde ficar no país.

Nós vivemos em um estado laico e todos os cidadãos são iguais perante a lei, e eu estava sendo sofrendo discriminação na minha forma de amar.

Toni Reis, pós-doutor, professor e ativista LGBTQIA+

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Tudo é política e marketing

Especialista em sexualidade humana, mestre em filosofia e doutor e pós-doutor em educação, Toni sempre acreditou na importância da sociedade civil organizada para a definição de políticas públicas. Ele foi um dos idealizadores e principais impulsionadores da criação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), fundada em Curitiba em 1995. Foi eleito o primeiro presidente da instituição e reassumiu o cargo entre 2007 e 2012.

Foi em 1999 que Rafaelly Wiest conheceu Toni. Ela estava no fim da adolescência e começando a se entender como uma mulher trans. "Ele já era uma liderança importante em Curitiba. Ele e Harry haviam fundado o Grupo Dignidade. Nós criamos laços de amizade, e ele se transformou em uma figura paterna praticamente. Nossa relação se mistura com o trabalho ativista: até hoje sou conselheira consultiva do Dignidade e me tornei diretora administrativa do Aliança", diz Rafaelly.

A luta seguiu para que políticas públicas fossem articuladas e os direitos de pessoas não heterossexuais e outros grupos minorizados sejam reconhecidos, e essas pessoas, acolhidas. Integra desde 2003 a Aliança Nacional LGBTI+, uma organização pluripartidária, sem fins lucrativos, que busca mobilizar a sociedade a defender os direitos humanos e a cidadania.

O grupo atua em proposições legislativas a respeito dos direitos humanos e cidadania plena das pessoas LGBTQIA+, acompanhando ações tramitando no Supremo Tribunal Federal e articulações no poder legislativo.

Theo Marques/UOL Toni Reis ao lado do marido, David Harrard, e dos filhos, Alysson, Jéssica e Filipe

Toni Reis ao lado do marido, David Harrard, e dos filhos, Alysson, Jéssica e Filipe

Sete anos de gestação

Depois que decidiram ter filhos, partiram em busca de meios para adotar uma criança como um casal. Deram entrada na Vara da Infância e Juventude de Curitiba em 2005 para obter a habilitação para a adoção conjunta - o primeiro caso na cidade. Eles poderiam ter evitado a buracria e adotado como solteiros, mas se um deles falecesse o outro não teria o direito da guarda do filho automaticamente. Três anos depois, o juiz acatou o pedido, mas restringiu o gênero e a idade: teria de ser uma menina e maior de 10 anos. Eles entenderam que isso se tratava de homofobia e recorreram.

Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade que para os efeitos de lei a união estável entre casais homoafetivos haveria de ser igual à de casais héteros, abriu-se um novo caminho para a adoção conjunta. Em dezembro daquele ano, receberam a guarda de Alysson, 10. "Foi a gravidez mais longa da história. Fomos o primeiro caso de adoção de um casal homoafetivo do país pelo STF." Em 2014, conheceram Jéssica, 11, e o irmão Filipe, 8, e os adotaram, juntos, um anos depois

O ativista também enfrentou a Igreja: as crianças disseram que queriam ser batizadas no catolicismo. "Fui ao arcebispo, pois o padre se recusou a batizar. Foi um batizado maravilhoso. Com as fotos e vídeos, fizemos um dossiê e enviamos ao Vaticano. Para nossa surpresa, recebemos uma carta assinada pelo Papa Francisco, em 2017, nos parabenizando e desejando felicidades para nossa família."

Do casamento à adoção dos filhos, Toni e David enfrentaram também ameaças de morte, que chegavam semanalmente pela internet. "É preciso ter estratégia para muitas coisas, diálogo, mas se a pessoa cometeu um crime, não é mais comigo. A Policia de Crimes Cibernéticos descobriu quem era o rapaz. Ele irá pagar uma multa de R$ 17 mil e ficará preso por cinco anos."

A gente está nesse momento, mas não podemos segregar as pessoas. Não posso falar só com eleitor desse ou daquele candidato. Lá atrás percebi que seria necessário conversar para além dos partidos de esquerda. Eu tenho que conversar com todo mundo.

Toni Reis, pós-doutor, professor e ativista LGBTQIA+

Theo Marques/UOL Theo Marques/UOL

Em defesa da família

A vida de Toni e sua família é emaranhada com a política e o ativismo. A definição do que é uma "família", inclusive, foi tema de discussão por longas horas com o pastor Silas Malafaia.

Toni faz questão de conversar com todos. Inclusive a ministra Damares Alves, a quem conhece desde 1999, quando ela criou a frente parlamentar evangélica. "Hoje, seguimos debatendo, pois ela representa o Estado. Mas não admito discurso de ódio e preconceito", diz. Toni conta que entrou com processo contra o ministro da Educação por afirmar que pessoas LGBTQIA+ eram fruto de "uma família desestruturada". "É um processo educativo, em que alguns aprendem com o diálogo, outros com manifestações, e outros com uma multa de R$ 200 mil — pesada, até mesmo para um ministro."

Toni vê o quanto o Brasil avançou nos direitos, principalmente no poder Judiciário, com algumas conquistas via Supremo Tribunal Federal. Mas no Legislativo, segundo ele, temos o fundamentalismo, "que nos deixa atrasados em relação a países latinoamericanos". Mas ele tem esperança.

"Quero deixar o mundo muito melhor do que peguei em termos de Direitos Humanos, ecologia. Eu quero dar palestras e escrever. Temos um Manual de Comunicação, do Cristianismo LGBTI+, Como conversar com adversários, aliados e pessoas não mobilizadas", finaliza.

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