Laboratórios de inovação

Juvencio Cardoso abriu caminhos e potencializou educação indígena com rede de escolas baniwa no Amazonas

Juliana Vaz Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Glenn Shepard

"Na entrega da minha dissertação de mestrado, a dedicatória foi para os meus pais que não conheciam essa possibilidade escrita, e para os meus filhos, para lembrarem que há uma possibilidade de igualdade.

Quando me tornei coordenador da escola Pamáali criamos uma rede de escolas baniwas com 20 escolas e cerca de 200 estudantes. Quero mostrar que aqui é rico de conhecimento, mais até do que na cidade.

Nós devemos falar por nós mesmos. Eu também gostaria de fazer um doutorado, mas daqui. Daqui, eu quero criar a oportunidade. Dar essa entrevista é poder expandir nossa voz.

Os nossos direitos foram sendo reduzidos, principalmente dos povos originários, sob esse atual governo. Então, a Txai Suruí falando [como representante do Brasil na abertura da COP26] é mostrar mundo afora nosso protagonismo.

Também quero falar lá na COP um dia, seja através de uma garota baniwa, ou de uma neta minha, das gerações futuras. Esse legado está sendo construído."

Juvencio da Silva Cardoso é uma liderança importante para o povo baniwa. Mestre em ciências ambientais e educador, ele já foi coordenador da Escola Indígena Pamáali, em São Gabriel da Cachoeira (AM), e ajudou a transformar a educação das comunidades nas Terras Indígenas do Médio e Alto Rio Negro.

Sua aldeia, assim como tantas outras, está a cerca de três dias de viagem fluvial do município de São Gabriel, como é conhecido. Logo, a oferta de escolas era escassa e era preciso enviar os filhos para o ensino fundamental em São Gabriel ou em Assunção. Ou seja, uma configuração que só afastava os jovens indígenas da escola. Outro ponto importante dificultava o acesso ao ensino: a escola alfabetizava apenas em português e quase não havia professores que falassem a língua baniwa.

Em São Gabriel da Cachoeira (AM), 90% da população é indígena. São 700 aldeias. 23 povos indígenas e 18 línguas faladas.

Juvencio Cardoso, educador e pesquisador baniwa

Foi só no ano 2000 que a Escola Intercultural Baniwa e Koripaco Pamáali foi criada. Como resultado de uma mobilização coletiva encabeçada pelo ativista e curador de Ecoa André Baniwa e construída por toda a comunidade, com a proposta de alfabetização e formação educacional menos engessada. A escola não podia se tornar um empecilho para eles em suas obrigações na aldeia e levava em consideração, por exemplo, a época de caça e de colheita.

Carol Quintanilha / ISA Carol Quintanilha / ISA

Juvencio foi um dos primeiros alunos desse projeto, aos 15 anos. Era um dos mais jovens da turma, que tinha rapazes de 18 e 20 anos que só então iriam concluir o ensino fundamental.

"Acompanhei de perto seu aprendizado, mesmo sem ser diretamente professora do Juvencio, porque não havia essa divisão na estrutura da Pamáali. Ele se destacava por seu apreço pelo conhecimento e era o sonho de qualquer professor interessado: lia e questionava muito. Ele trazia questões que nós nem tínhamos considerado", lembra Laise Diniz, que foi assessora pedagógica da Escola Baniwa Kuripaco Pamáali até 2010.

A turma de Juvencio era experimental e, no primeiro momento, só havia oferta de ensino fundamental. Ele ficou três anos sem estudar, até que por uma iniciativa municipal, começou a cursar o magistério indígena em Manaus.

Carol Quintanilha / ISA Carol Quintanilha / ISA

Um projeto de inovação

Um de seus sonhos era capilarizar a metodologia de ensino que vivenciou na Pamáali para outras comunidades do rio Içana. Assim, mais e mais jovens poderiam acessar a educação de suas próprias aldeias. E ele conseguiu.

"Quando me tornei coordenador, criamos uma rede de escolas baniwa com 20 escolas e cerca de 200 estudantes. A escola Pamáali, surgiu para ser voltada para a realidade da comunidade e exaltar os saberes", diz Juvencio. A Pamáali foi um exemplo de educação e pesquisa intercultural: em 2016 foi reconhecida pelo MEC como instituição de referência em inovação e criatividade na educação básica no Brasil.

A metodologia de ensino via pesquisa tem como ponto de partida o conhecimento tradicional e dialoga com os conhecimentos acadêmicos e científicos em conexão com a visão da humanidade dos povos baniwa e koripaco. O manejo de recursos está entre os principais temas estudados.

Tornou-se referência também em práticas de sistema agroflorestal e piscicultura por meio da estrutura do Centro de Pesquisa em Formação de Gestão Territorial e Ambiental Indígena, que tem o objetivo de desenvolver pesquisas valorizando os saberes locais. Hoje, está sendo implantado um sistema de captação de água nas comunidades melhorando o cotidiano de quem mora ali. "Aqui no nosso território, fluem rios sem contaminação, mas temos pouca assistência sanitária rural", diz Juvencio.

Natalia C. Pimenta / ISA Natalia C. Pimenta / ISA

Ele conta que a escola baniwa é uma das 100 escolas brasileiras que integram o projeto Escola2030, um programa global de pesquisa-ação que busca criar novos parâmetros para a avaliação da aprendizagem com base na prática da educação integral e transformadora. "Essas escolas são chamadas de laboratórios de inovação. Eu me sinto protagonista dessa mudança, seja como liderança ou pesquisador", conta Juvencio, que hoje é professor na Escola Baniwa Eeno Hiepole, a segunda escola baniwa na linha de frente no movimento de inovação na educação. Por lá, ele também coordena o Centro de Pesquisa e Formação em Gestão Territorial e Ambiental Indígena (Enopana).

A inspiração para Juvencio foi a família. "Minha mãe reconhece algumas letras, meu pai mesmo sem saber ler ou escrever, sabia que era importante estudar. Me emociono ao contar. Ele sempre teve comércio e vivia na luta para manter a família."

O educador mudou a vida de muita gente, como a de Walter Lopes da Silva, de 29 anos. "Conheci o professor em 2008, quando fiz intercâmbio para a Escola Pamáali. Ele já trabalhava com pesquisas sobre piscicultura e me interessei também. Ele me incentivava muito", diz Walter. Ele é da comunidade Canadá, no Rio Ayari, um afluente do Rio Içana, e fica a cerca de 3 horas de carro da escola Pamáali. Desde 2012, ele trabalha como um dos pesquisadores ambientais de mudanças climáticas na fauna local.
"O sentido de liderança de Juvencio tem a ver com a pessoa baniwa que ele é. Sua criação, sua generosidade em escutar, seus valores, e que a escola não rompeu. A escola não pode destruir quem eles são, ou não adianta de nada", finaliza a assessora pedagógica Laise.

A Curadoria Ecoa

  • André Baniwa

    As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à pratica jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por André Baniwa, curador de Ecoa.

    Imagem: Juliana Pesqueira/UOL
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