Para transformar o mundo

Gus Guadagnini abriu mão do sucesso tradicional para se aventurar a criar um novo modelo de trabalho

Bruna Corsato Colaboração para Ecoa, de Berlim (ALE) Divulgação

"Ter sucesso no mundo corporativo me levou a seguir um caminho sem me questionar se era aquilo mesmo que eu queria. Até que comecei a sentir um conflito dentro de mim. Quando eu olhava para a minha vida e para o que eu fazia no mundo, não via os meus valores refletidos.

Quando eu comecei a me trazer por inteiro para as minhas escolhas de vida, comecei a me questionar também: o que merece meu 100%? Para o que eu realmente quero me entregar totalmente? Meu plano de carreira já não me trazia mais brilho nos olhos, e eu deixei ele para trás sem saber o que ia acontecer depois.

Foi nessa época que comecei a ver que existem outras possibilidades e me envolvi com ideias que antes achava que eram papo de maluco: modelos de trabalho que não são predatórios da vida das pessoas. Foi por isso que o altruísmo eficaz me conquistou."

Gus Guadagnini é diretor executivo do The Good Food Institute Brasil, uma ONG internacional que trabalha para transformar o sistema de produção de alimentos. A missão é que o mundo todo tenha comida saudável no prato, sem acabar com os recursos do meio ambiente nesse processo. Para isso, ele trabalha para que proteínas alternativas se tornem acessíveis e conquistem os brasileiros pela barriga. O desafio é grande: o Brasil é um dos maiores produtores e consumidores de carne do mundo. Mas a construção dessa empreitada vai muito bem, obrigada.

Nos últimos três anos, o setor plant-based (produtos feitos à base de plantas) no Brasil foi de praticamente inexistente a um dos que se desenvolvem mais rapidamente no mundo todo. Se muito desse movimento é resultado do trabalho que Gus e outras tantas pessoas fazem diretamente, muita coisa acontece por trás das cenas. Gus acredita que, para mudar o mundo, é preciso ser inteiro. Para isso, cultiva os valores para tornar isso realidade - em si e nos outros.

Leco Viana/Divulgação Leco Viana/Divulgação

Raíz no interior

Olhando para a vida que leva hoje, é difícil imaginar suas origens. À frente de uma organização internacional, passa o dia entre reuniões com cientistas e membros do governo, visitando grandes empresas e até participando de TEDTalks, formato de sucesso de palestras com especialistas e profissionais de variadas áreas de atuação. Seu trabalho para avançar o setor de proteínas alternativas no Brasil já lhe conferiu lugar na lista de 25 pessoas que estão mudando o mundo segundo a revista "GQ".

Sua trajetória começou no interior de São Paulo, em Botucatu, onde viveu até entrar na faculdade. A cidade pequena e a educação em escola religiosa o mantiveram longe da diversidade. "Apesar de bastante acesso à educação, minha formação não era rica, não tinha acesso a pluralidade de vivências. Eu nunca tive contato com outra pessoa gay, por exemplo. Minha visão de mundo era muito enviesada e isso afetava minha visão de mim mesmo."

Apesar de a alteridade ter inundado seu mundo quando se mudou para a capital, voltar esse olhar para si mesmo ainda levou algum tempo. Guiado pela visão tradicionalista de sucesso, iniciou sua jornada em administração de empresas. Ticou todos os itens da lista: passou em uma faculdade renomada, tornou-se presidente da empresa júnior, foi aceito em um programa de trainee disputadíssimo e efetuado em seguida, passando a ser promovido anualmente. O que era uma vida perfeita do lado de fora, não fazia o coração bater mais forte.

Divulgação Divulgação

Uma jornada pelo desconhecido

A busca por uma vida com mais sentido o levou a trilhar um caminho sem garantias: abandonou o plano de carreira promissor sem saber quais seriam os próximos passos. Tinha apenas uma certeza: queria fazer diferença no mundo, norteado pelo conceito de autenticidade. "Não é sobre ser sempre extrovertido. Autenticidade é expressar quem se é e o que se está sentindo a cada momento". A reconstrução profissional veio junto de uma grande reconfiguração do seu universo interno: saiu do armário para a família, tornou-se vegano pela saúde e amor próprio, e só trabalhou com projetos que causavam impacto positivo, mesmo quando o retorno financeiro para ele era incerto.

Sem saber, o cultivo de espaços autênticos se tornaria um dos pilares do seu estilo de liderança.

Seguir buscando o brilho nos olhos acabou dando certo. Sua escolha pessoal pelo veganismo se alinhou com o trabalho que passou a fazer no mundo, quando foi confiada a ele a missão de começar as operações brasileiras do The Good Food Institute em 2017. A ONG, que tinha começado apenas um ano antes nos Estados Unidos, via o Brasil como peça fundamental em sua missão: transformar o sistema global de produção de alimentos para que produtos plant-based se tornem mais acessíveis a todos. No país do churrasco e da feijoada, muitos achavam que esse era um sonho impossível.

Para enfrentar esse desafio, Gus mais uma vez recorreu a ideias não tão convencionais no ambiente empresarial. Sua principal estratégia foi investir na construção de relacionamentos com quem já era parte da indústria e receber bem quem quisesse chegar junto. Não queimar pontes e abrir portas vingou. "É importante construir coisas com base nas vocações de quem já está fazendo, e não no que eu estou dizendo que tem que ser feito", explica

Com esse approach, conseguiu acelerar e muito o desenvolvimento do setor de proteínas alternativas no Brasil. Em apenas quatro anos no país, o GFI contribuiu para o nascimento de diversas foodtechs e envolvimento de grandes empresas de carne tradicional no setor. O mercado nacional recebeu uma avalanche de novos produtos vegetais e hoje 50% dos brasileiros dizem já diminuir o consumo de produtos de origem animal. Os resultados impressionam, mas ainda há muito a ser feito.

Todo mundo que trabalha aqui acredita na causa, sonha, abstrai, mas se dedica muito, estuda, se prepara, dá o melhor. Acho que muito disso é inerente à própria equipe, mas sem um líder que motive, traga desafios e esteja presente pra pensar juntos, não adiantaria de nada. Crescemos muito rápido, mesmo em uma crise global, e acho que ele tem grande responsabilidade nisso.

Vinicius Gallon, especialista de comunicação do GFI Brasil

Divulgação

A mudança na prática

É preciso mais do que amor à causa para se manter motivado a mudar o mundo. Gostar do dia a dia do que se faz é fundamental, segundo ele. O jeito que encontrou para conciliar seus valores à formação profissional clássica veio por meio do altruísmo eficaz: "eu gosto de poder olhar para as grandes áreas e entender onde posso causar impacto, fazendo o que eu sei fazer bem, que é administrar empresas."

A realidade de criar algo diferente não vem sem desafios. Ainda é necessário mostrar resultados financeiros para justificar a existência de uma oganização, por exemplo. Surgiram também questões muito humanas."Como profissionais, estamos acostumados com empresas que nos ponham pra baixo, sempre devendo produtividade. Isso leva as pessoas a acharem que precisam consertar alguma coisa nelas mesmas."

Fazer o feijão com arroz e operar dentro do padrão vem com certa facilidade. Existem mais referências, padrões de comportamento esperados. "Algumas pessoas estranharam quando não recebiam feedback negativo e uma lista de coisas 'ruins' a melhorar." Os novos processos tiveram uma curva de aprendizado grande. Para ele, foi e continua sendo um processo que vale a pena. "Não seguir os caminhos tradicionais profissionalmente é muito vulnerável. Mas quando começamos a fazer escolhas pela felicidade das pessoas, e não só pela produtividade, passou a dar certo."

Hoje, o GFI Brasil conta com 12 funcionários, além de diversas parcerias com institutos de pesquisa, empresas de todos os tamanhos e órgãos do governo federal. "Meu sonho é que daqui a 10 anos, o que a gente tenha se tornado tenha sido construído por muitas pessoas, porque essa somatória é muito maior do que eu."

A missão é trazer opções mais saudáveis de forma acessível para o prato dos brasileiros, diminuindo o impacto ambiental e incluindo todo mundo na geração de empregos em uma nova economia."Eu vejo meu papel menos como de determinar o que vai acontecer no futuro e mais de criar condições para cada um dar o melhor de si e vencer os fatores limitantes que nos foram impostos." E, com a contribuição de Gus, cada vez mais pessoas estão se envolvendo na concretização deste sonho. "Eu trago a visão, eu ajudo a conduzir, mas no fim das contas eu quero que o futuro tenha a cara de muita gente."

Trabalhei em multinacionais por mais de 15 anos, e quando cheguei no GFI me deparei com um mundo muito diferente do que estava acostumada a viver no dia a dia do corporativo. Presenciei uma ambiente de trabalho colaborativo, leve. O mais importante foi que me senti apoiada e acolhida logo no primeiro dia. Tenho dois filhos pequenos de 5 e 3 anos e eu tive flexibilidade nos horários e uma opção de jornada reduzida durante esses dias para que pudesse me dedicar também aos cuidados deles [durante a pandemia]. Como mãe, sempre me senti invisível no mundo corporativo no qual trabalhei por tantos anos.

Jaqueline Gusmão, assistente executiva do GFI Brasil

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