Libertação animal

Fundadora da Peta iniciou conversa sobre direitos dos animais quando ninguém sabia o que era ser vegano

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) PETA/Divulgação

"[A causa animal] é uma novidade para muita gente. Se você já amou um cão, um gato ou qualquer animal, saiba que eles são todos iguais. Todos sentem medo, amor, alegria, e querem ser respeitados. E você pode ter um papel vital como consumidor, certificando-se que seu dinheiro não seja usado para machucá-los. Nós o ajudaremos nisso como pudermos.

[O ativismo animal] é sobre o sofrimento, a dor e a morte que podemos evitar hoje. Há muitos seres dependendo de nós."

PETA/Divulgação

Os cabelos lisos prateados, pequenos óculos ovais e fala mansa de Ingrid Newkirk, 73, podem fazê-la ser confundida com uma senhora frágil e de vida pacata. Mas, como fundadora da maior organização do mundo pelos direitos dos animais, seu currículo desmente as aparências.

Ao longo de quase meio século de ativismo, ela tirou a roupa inúmeras vezes para protestar. Invadiu passarelas e o escritório da editora da Vogue norte-americana Anna Wintour na luta contra o uso de peles na moda. Ateou fogo em carros contra os testes de colisão com animais feitos pela General Motors. Por essas estripulias, foi detida pela polícia muitas vezes.

Ingrid - PETA/Divulgação - PETA/Divulgação
Ingrid vai presa em 1992 após libertar pombos em um evento de caça
Imagem: PETA/Divulgação

"Posso parecer pequena, mas nunca fui tímida", diz a Ecoa. "Não se pode pedir que outras pessoas façam o que você não está disposto a fazer."

Nascida na Inglaterra, Newkirk fundou a Peta (Pessoas pelo tratamento ético dos animais, em tradução livre) em 1980, nos Estados Unidos. Era uma época em que ninguém sequer tinha ouvido a palavra vegano.

"Tínhamos que explicar que vegano não era quem mora em Las Vegas, e sim alguém que não come nem usa nada de origem animal", lembra.

Quatro décadas depois, a Peta imprimiu sua marca no ativismo mundial, conseguiu colocar a causa animal sob os holofotes da mídia e provocou mudanças concretas.

Convenceu grandes corporações (como a Coca-Cola) a abolirem a realização de testes em animais, grifes e personalidades (Calvin Klein, Ralph Lauren) a deixarem de usar produtos feitos de pele, pressionou circos e parques temáticos (Ringling Bros., Sea World) a abandonarem ou restringirem as performances com animais e a indústria de alimentos (McDonald's, Burger King) a adotar parâmetros de bem-estar animal.

PETA/Divulgação PETA/Divulgação

Os macacos torturados de Silver Spring

Em 1981, a Peta fez sua primeira investigação com um ativista infiltrado e obteve grande repercussão. Eles entraram no Instituto de Pesquisa Comportamental em Silver Spring, no estado de Maryland, onde 17 macacos estavam sendo usados em experimentos neurológicos.

Os animais eram submetidos a cirurgias na medula que cortavam a comunicação entre o cérebro e seus membros e levavam eletrochoques. Também eram mantidos em gaiolas cheias de dejetos acumulados e privados de comida.

O cofundador da Peta Alex Pacheco se infiltrou no laboratório se passando por um estudante interessado em pesquisas com animais. Fez anotações detalhadas sobre o que acontecia ali e fotografou as condições em que os macacos viviam. Depois, levou as evidências para a polícia.

A denúncia deflagrou uma operação policial inédita - a primeira na história dos Estados Unidos realizada em um laboratório científico por suspeitas de crueldade animal. O pesquisador responsável foi condenado, e o financiamento público para o laboratório, suspenso.

Os macacos foram resgatados e a Peta entrou com um processo requerendo a guarda dos animais. A disputa se estendeu por uma década, chegando até a Suprema Corte norte-americana, que decidiu em favor da organização.

"Foi imenso. Saiu em todos os jornais, rodou o mundo. As pessoas de repente perceberam que podiam fazer algo pelos animais que são torturados em laboratórios. Esse foi o nosso começo", lembra Newkirk.

Investigações desse tipo se tornaram uma das principais estratégias de ação da Peta, que ao longo dos anos expôs a violência contra animais não só em laboratórios como em fábricas, fazendas e circos.

Mas a organização também se preocupa em desenvolver soluções para os problemas que aponta e, ao longo dos anos, trabalhou com muitas empresas para criar alternativas veganas. Em uma das ações mais recentes desse tipo, em 2022, lançou uma competição com prêmio de US$ 1 milhão para a criação de um material substituto para a lã.

William Hawkes/Reprodução
Pamela Anderson posa nua para campanha da Peta

Conflito, sexo e celebridades

Nesses 40 anos, a Peta já deu muito o que falar com suas campanhas e ações midiáticas.

Uma das sacadas publicitárias mais famosas da organização foi a campanha "Prefiro ficar pelado a usar pele", lançada em 1992, que estampou outdoors com celebridades sem roupa em apoio ao fim dessa indústria. Desde então, muitas marcas e varejistas de luxo aboliram o material, levando a organização a decretar o fim da campanha em 2020.

Capturar a atenção das pessoas sempre foi o objetivo da Peta, mas eles sabiam que a disputa por espaço no noticiário seria árdua. Era uma época em que quase ninguém levava os direitos dos animais a sério.

No turbilhão do cotidiano, Ingrid percebia que três assuntos ganhavam destaque e atiçavam as pessoas: conflitos, sexo e famosos.

"Então decidimos colocar esse tema na imprensa usando essas coisas. Vamos ter conflito, vamos ficar pelados e vamos envolver celebridades. Nos tornamos muito provocadores", conta.

A estratégia de "fale bem ou mal, mas fale de mim" ajudou a conscientizar o público sobre os abusos praticados contra os animais e a criar uma conversa sobre esse problema. Mas está longe de ser unânime.

"As propagandas da Peta são tão desagradáveis que às vezes me pergunto se a organização é uma invenção genial da indústria da carne para fazer os ativistas pelos direitos dos animais parecerem ridículos", escreveu uma colunista do jornal britânico The Guardian em 2019.

PETA/Divulgação PETA/Divulgação

Um cachorro é uma criança

Filha única, Ingrid cresceu com um cachorro chamado Shawnee como companheiro. "Éramos basicamente irmãos. Cresci achando que cachorro e gente eram iguais", diz.

Aos 19 anos, nos anos 1970, ela se mudou para os Estados Unidos. A britânica estava estudando para se tornar corretora na bolsa de valores, quando uma vizinha se mudou, deixando seus gatos para trás.

Ingrid decidiu levá-los para um abrigo e acabou tendo contato com os maus-tratos a que os animais eram submetidos no lugar. Aquilo a afetou: em vez da bolsa de valores, foi trabalhar no canil do abrigo com a ideia de minimizar o sofrimento daqueles animais.

Pouco tempo depois, passou a atuar no serviço público, investigando casos de crueldade animal, e se tornou chefe do departamento de controle de zoonoses em Washington. Foi durante esse período que ela fundou a Peta com o colega de trabalho e ativista Alex Pacheco.

O primeiro escritório da maior organização do mundo em prol dos direitos dos animais - hoje com mais de nove milhões de membros e apoiadores - ficava no porão de sua casa.

INGRID CAES - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Newkirk em seu primeiro trabalho relacionado à causa animal, em um abrigo
Imagem: Arquivo pessoal

"Durante o dia eu lidava com pessoas que abandonavam seus animais, normas para pet shops e controle de raiva. Fora do expediente, comecei a Peta", diz.

Nessa época, ela teve contato com as ideias do filósofo Peter Singer, um dos intelectuais fundadores do movimento pelos direitos dos animais. O livro "Libertação animal" mudou sua visão sobre a questão. Singer dizia que se preocupar com os animais ia além de afrouxar sua coleira, colocá-los numa gaiola maior ou ser gentil ao matá-los para comer. Era preciso tratá-los como seres vivos iguais a nós.

Resumidos pela máxima de Newkirk "a rat is a pig is a dog is a boy" (um rato é um porco é um cachorro é uma criança, em tradução livre), os ensinamentos de Singer foram rigorosamente aplicados pela Peta.

"Sempre vi a Ingrid como uma das figuras mais revolucionárias do movimento pelos direitos dos animais. Ela assumiu um posicionamento corajoso sobre o tema antes de ele ser culturalmente aceito como é agora", diz Ashley Byrne, funcionária da Peta há mais de 15 anos, a Ecoa.

PETA/Divulgação 'Somos todos de carne e osso': em Mumbai, na Índia, Newkirk protestou simulando churrasco de si mesma em 2013

'Somos todos de carne e osso': em Mumbai, na Índia, Newkirk protestou simulando churrasco de si mesma em 2013

Churrasco de carne humana

Há 20 anos, Newkirk tornou público seu testamento. Ela decidiu escrevê-lo depois de ter visto a morte de perto - esteve em um avião que, durante uma tempestade, enfrentou uma variação na corrente de vento e quase foi lançado ao mar.
A "experiência perturbadora" a fez se dar conta de que esse poderia ter sido o fim de seu ativismo, a coisa mais importante de sua vida. Ela teve a revelação de que ainda poderia ser útil à causa se doasse seu corpo a ela após a morte.

Ingrid se sentou com um advogado e ditou as instruções para a disposição de seus restos mortais. A decisão final cabe à Peta, mas ela sugere, por exemplo, que sua carne seja usada em um "churrasco humano" e que um de seus olhos seja enviado à Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, como um lembrete de que a Peta continuará de olho.

Mesmo com o testamento pronto, ela ainda é ativa e devotada à organização. Segundo Ashley Byrne, a presidente responde e-mails às cinco da manhã, participa de protestos e celebra as pequenas e grandes vitórias.

"Espero que [sem mim] a Peta continue tão ou mais vigorosa e ativa do que é. Espero que continue a ser a organização oportunista que fundei: que, quando algo é resolvido, vai atrás de outra coisa que precise ser consertada. Ainda temos muitas áreas para atuar", diz Newkirk.

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