A cura no olhar

Fotógrafo André François cria projeto que realiza chamadas de vídeo entre pacientes de covid e familiares

Paula Rodrigues de Ecoa, em São Paulo (SP) Paula Poleto

"Eu já viajei fotografando vários países. Vi várias situações de crise. Fui para o Haiti dois dias depois do terremoto e vivi na rua por 30 dias lá fotografando. Também já fui para o Japão depois do tsunami, para você ter uma ideia.

Sabe uma coisa que aprendi? É comum a gente querer se afastar da dor do outro. A gente faz isso por não querer essa mesma dor para a gente, mas eu percebi que isso nos faz vivenciar uma solidão muito triste dentro da gente.

Com a fotografia eu tento fazer as pessoas encararem a realidade do outro e pensar: e agora? O que eu posso fazer? E o que eu digo é que a gente não tem o poder de curar sempre, mas podemos caminhar juntos até o final para tentar trazer mais leveza a quem precisa." André François

Paula Poleto

Não tem nada mais triste que morrer sozinho. Sem ninguém por perto para chorar sua partida ou segurar sua mão, os momentos finais são sempre mais dolorosos. Foi essa a constatação do fotógrafo paulistano André François em março do ano passado. Acostumado a documentar situações catastróficas e trágicas como os dias que sucederam o terremoto no Haiti e o tsunami no Japão, acreditava que essas experiências o tinham preparado para registrar o que aconteceria em hospitais com a chegada da covid-19 ao Brasil.

Era segunda-feira. François tinha passado o final de semana preocupado, com medo de, aos 53 anos, estar se arriscando demais. Foi mesmo assim junto com a jornalista Paula Poleto, que o acompanha documentando em palavras o que ele registra em fotos. Vestiram roupas e máscaras de proteção e entraram na ala de tratamento a pacientes de covid-19 no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Acharam que estavam preparados. Não estavam.

"A intenção era mostrar justamente a conexão entre as equipes de saúde. Só que esse é um momento que eu nunca vi na minha vida. Há 17 anos fotografo pelo mundo, eu nunca vi uma equipe de saúde com medo. E em abril do ano passado, vi pela primeira vez um médico com medo aqui em São Paulo. Ali eu entendi melhor o que estava pela frente", conta.

Entre conversas trocadas entre os profissionais da sáude, um dia ouviu de um desses médicos que, apesar de entenderem que assistir aos momentos finais de uma pessoa fazia parte da profissão, não estavam aguentando ver pessoas morrerem longe de suas famílias. Quando André presenciou isso acontecer em sua frente, entendeu a angústia.

Andre Francois Andre Francois

Conexões do cuidar

Vendo uma matéria de uma iniciativa da Itália que realizava chamadas de vídeo pelo celular entre pacientes e familiares, ele entendeu o que precisava fazer aqui para tentar reduzir a tristeza do momento. Nascia, então, o Conexões do Cuidar.

"Lembro que no começo não sabíamos bem como fazer. Como você se prepara para isso? Falei para as duas pessoas que iniciaram comigo que a gente não tinha técnica nenhuma para isso. O que a gente tinha era a nossa experiência humana, era o respeito e o sentimento por aquelas pessoas", conta o fotógrafo. Ao todo, desde o começo da pandemia até hoje, cerca de treze educadores, como chamam os profissionais que trabalham com essa iniciativa, já visitaram 30 hospitais pelo Brasil.

Um deles foi o Hospital Municipal Tide Setubal, em São Paulo (SP), onde Sérgio Moura ficou internado por 73 dias. Infectado com o coronavírus em outubro de 2020, ele apresentou piora nos sintomas e precisou ser internado na UTI. "Já nesses primeiros dias conhecemos uma pessoa da ONG ImageMagica. Aí eles falaram para a gente que faziam essas chamadas de vídeo", conta Sidnei Moura, filho de seu Sérgio.

"Essa foi a única solução, o único jeito que a gente tinha para falar com meu pai, ter contato com ele. Até que no dia 15 de novembro, ele foi intubado. Depois que ele saiu da intubação, fizemos uma chamada de vídeo com ele ainda desacordado. Falar com ele por chamada de vídeo era o que acalmava a gente."

Os vídeos e fotos que recebia do pai foram a única forma de contato que teve com ele durante esses quase três meses. Por mensagens, Sidnei envia o material que recebeu do pai, aos poucos, se recuperando. E compartilha as boas novas: apesar de ter sido desenganado pelos médicos, seu Sérgio conseguiu se recuperar e recebeu alta. Hoje realiza fisioterapia para conseguir voltar a andar na moto que tanto ama. "Meu pai ficou 73 dias internado e se não fosse a ONG a gente teria ficado todo esse tempo sem ver meu pai. Aí, pensa, o nosso sofrimento aqui fora? Foi muito bom na questão da gente matar a saudade do meu pai. A gente mandava áudio para eles, aí eles colocam para meu pai ouvir, colocam música para ele também. No dia 21 de janeiro ele saiu do hospital", conta Sidnei.

Andre Francois

Fotografia como ferramenta de transformação

"Dentro de um hospital", André começa a refletir, "as pessoas são supercarentes. E não falo só dos pacientes, as equipes de saúde, que sempre trabalham sob pressão, são muito carentes de reconhecimento também", o que o fez pensar em uma reestruturação do Conexões do Cuidar, que passou a abarcar outros projetos que a ImageMagica já desenvolvia, como a troca de cartas motivacionais entre pacientes, profissionais da saúde e familiares.

Apesar de hoje considerar um sucesso, a ideia de criar o projeto pareceu absurda para quem trabalha com André na ImageMagica. Criada por ele em 1995, a organização, que utiliza a fotografia como ferramenta de transformação, empoderamento e desenvolvimento humano" passava por problemas financeiros com a chegada da pandemia. A previsão era a de que só tinham caixa para trabalhar por mais dois meses.

A ideia de ir para o terceiro setor veio de um jeito nada romântico, como ele relembra. Com 17 anos, de alguma forma que não se lembra, uma câmera apareceu em suas mãos. Antes disso, passava o tempo desenhando reproduções de fotos da National Geographic. O sentimento que o levou à fotografia foi justamente a curiosidade que sentia para entender o que estava acontecendo para além daquela imagem.

Assim começou a realizar trabalhos documentando acontecimentos e pessoas. Em um certo dia, registrando o cotidiano de trabalhadores em São Thomé das Letras (MG), um grupo de crianças o cercou. Curiosos com a câmera, mal deixavam o fotógrafo trabalhar. Para se ver livre da criançada, André teve a ideia de dar para o grupo uma câmera pequena cheia de filmes. A surpresa veio quando, ao retornar a São Paulo, revelou material e encontrou duas coisas que o tocaram profundamente:

"Um foi o brilho no olhar daquelas crianças deslumbradas querendo retratar o entorno delas. A segunda foi perceber como eles passaram a visualizar a comunidade em que estavam de outra forma. A fotografia foi algo que aumentou a percepção sobre a realidade deles". Ali, André, que sempre teve dificuldade na escola por ser disléxico, retornou à sala de aula como professor em um curso de fotografia.

"Eu super acredito que, se eu tivesse encontrado esse caminho de transformação pela imagem ao invés da palavra, na escola, a minha experiência como aluno seria muito menos traumática. Hoje, eu acho que a ImageMagica é também o resultado dos meus traumas com minha vontade de pensar educação por um caminho diferente do tradicional," diz. Até o momento, a ImageMagica conta com um total de 400 mil pessoas impactadas.

Ao longo desses anos, eu percebi que todos nós temos as mesmas necessidades, o que muda é a forma de se expressar por causa das diferenças culturais. Eu acho que a gente, da classe média, tem a sensação que consegue viver bem de forma independente, e até consegue mesmo em certo ponto. Mas é muito melhor quando a gente se conecta, quando vivemos pensando mais de forma coletiva. A solidão diminui assim.

André François, fotógrafo e fundador da ImageMagica

Andre Francois

Eu sou, porque nós somos

Já na área da saúde, a organização e o próprio André começaram a desenvolver projetos em 2006. O primeiro foi o documentário "Cuidar", em que retratou os cuidados relacionados à medicina humanizada no Brasil. Depois, vieram dois livros: "A Curva e O Caminho - Acesso À Saúde no Brasil" (2008) e "Expedicionários da Saúde" (2013).

André, que também é péssimo com números, não consegue lembrar há quanto tempo faz esse exercício de empatia nas horas mais complicadas da vida de muitas pessoas. Atualmente, está nas etapas finais para fechar mais um projeto, o "Ubuntu".

Inspirado na antiga filosofia africana do "eu sou, porque nós somos", ele viajou vários países pelo mundo durante 12 anos atrás de situações em que o cuidado era o que conectava as pessoas.

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